“Não é o que a França lhe dá, mas o que ela não lhe tira.” Assim a poeta norte-americana Gertrude Stein respondia quando perguntada sobre o êxodo que levou escritores e artistas americanos e ingleses a Paris entre os anos 1920 e 1940.
Homossexual, Gertrude Stein encontrou em Paris não só a liberdade que contrastava com o puritanismo vivido em seu país no pós-guerra, mas também um ambiente propício para exercer seu projeto de vida: escrever. Como ela, muitos outros tiveram a mesma ideia. O que deu origem à chamada “Geração Perdida”, encabeçada por escritores como F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Ezra Pound e Henry Miller.
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Sedentos de liberdade criativa, jovens escritores, poetas, jornalistas com veleidades literárias e editores rumaram para Paris em busca não só de fama, mas também de uma “lenda viva à qual se associa a lembrança dos poetas desaparecidos, dos pintores vindos do frio, da boêmia altruísta e dos marginais de toda espécie”. E para reviver o mito da Cidade Luz, construído dois séculos antes por artistas ilustres como Balzac, Victor Hugo, Baudelaire, Verlaine e Rimbaud, os novos habitantes escolheram o bairro de Montparnasse, ao qual chamavam de The quarter.
É dessa longa viagem realizada por uma geração de artistas que se atém Jean-Paul Caracalla em Os exilados de Montparnasse. Para além de todos os atrativos ideológicos, a França, naquele momento, representava uma opção vantajosa em termos financeiros, já que o dólar valia o dobro do franco. Assim se forjou o ambiente favorável à livre criação de intelectuais pouco preocupados com questões comezinhas do cotidiano, como trabalho e dinheiro.
Além dos mais, formou-se uma espécie de cooperativa entre os artistas reunidos ali, onde as criações eram, de imediato, colocadas à prova na infinidade de periódicos e revistas literárias que pipocavam na França ou mesmo nos Estados Unidos. Hemingway, por exemplo, quando chegou a Paris, em 1921, ganhava a vida como correspondente esportivo do Toronto Star Weekly, o que lhe obrigava a assistir a todas as manifestações esportivas da cidade.
Autor de vários perfis sobre personalidades europeias, Caracalla constrói um mosaico de múltiplas formas em Os exilados de Montparnasse. Além de esmiuçar o contexto histórico que propiciou o “desbunde” da “Geração Perdida”, o autor faz do livro um apanhado de boas histórias envolvendo os grandes intelectuais da primeira metade do século XX. Mais do que elucidar o caminho dos exilados anglo-americanos, Caracalla recheia sua narrativa com histórias de outros exilados famosos, como Picasso, Stravinsky e Brancusi, que serviram de cicerones aos habitantes que depois deles aportaram na cidade. A esses, soma-se uma grande quantidade de “nativos”, tais como Jean Cocteau, Jean-Paul Sartre e Tristan Tzara, que interagiam com os expatriados. É o encontro de duas gerações fantásticas que fizeram de Montparnasse o metro quadrado mais criativo da Europa durante duas décadas. Com mais de 250 escritores, poetas e jornalistas anglo-americanos vivendo em Paris em 1924, Caracalla compilou um farto e divertido anedotário sobre os mais diversos personagens, quase todos famosos, é claro. Entre causos hilários e dramáticos, vemos Hemingway ensinando Ezra Pound a boxear; acompanhamos o surgimento do surrealismo e de sua corrente mais radical, o dadaísmo; e somos surpreendidos com as peripécias alcoólicas de Fitzgerald e sua relação de amor e ódio com o pupilo Hemingway.
Mas as grandes histórias não são feitas apenas pelos protagonistas, e Caracalla tira da manga personagens que, pelas beiradas, ajudaram a escrever a história daquele período de grande prosperidade artística. É o caso de Helena Rubinstein, criadora da rede mundial de cosméticos que leva seu nome, que foi, a contragosto, mecenas de diversos escritores na Paris dos anos 1920. Casada com Edward Titus, um amante inveterado da literatura, Helena foi levada pelo marido a patrocinar diversos escritores que nunca leu. “Nenhum dos escritores, por mais célebres que sejam, gozam de seu favor. Todos merecem apenas desdém e desprezo. Seus comentários são ferozes: Joyce não enxerga nada, come como um passarinho e cheira mal; Hemingway é um gritalhão amado pelas mulheres, mas certamente não por ela; D.H. Lawrence é apenas um homenzinho tímido que passa horas olhando para o vazio”, escreve Caracalla sobre o desprezo que Madame Rubinstein nutria pelos ídolos do marido.
Outra personagem secundária que se tornou essencial durante o período foi Sylvia Beach, a jovem americana dona da livraria mais pop de Montparnasse, ponto de encontro de jovens e veteranos escritores que estavam em Paris. A Shakespeare and Company, centenária livraria que existe até hoje, foi o epicentro da movimentação literária que moveu Paris naqueles anos. Além de servir de quartel-general para as figuras mais carismáticas e talentosas, a livraria eventualmente funcionava como albergue para artistas sem eira nem beira. Era também um dos poucos lugares onde se poderia ler literatura inglesa e americana em Paris.
Mas o maior feito da Shakespeare and Company foi ter editado, pela primeira vez, Ulysses, a obra-prima de James Joyce. Sem recursos para rodar o livro que lhe consumiu sete anos de trabalho, Joyce encontrou na jovem Sylvia a editora ideal, ainda que sem experiência. Sylvia dedicou tempo e dinheiro para tornar realidade o grande projeto daquele que, para ela, era o maior escritor de todos os tempos. Por capricho de Joyce, as mil cópias iniciais de Ulysses começaram a ser distribuídas no dia em que ele comemorava o quadragésimo aniversário, em 2 de fevereiro de 1922.
O livro de Caracalla ainda traz mais um punhado de boas histórias, como a narrativa da vida miserável que Henry Miller levava em Paris antes de conhecer Anaïs Nin, e se encerra no limiar da Segunda Guerra Mundial. Depois dos anos 1940, Paris ainda seria cenário de muitas outras experiências intelectuais, tal como a fundação da mitológica Paris Review, nos anos 1950, e o Maio de 1968. Mas aí é outra história.
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