Quarto de vestir

As visitas que recebo aqui em Nova York, felizmente, são raras. Não pense que sou anfitrião relutante. Sirvo de guia turístico até para gente que nunca vi na vida. E até pago o almoço. O problema ocorre com aqueles que querem dormir na minha casa. Os poucos que se aventuram às lonjuras de Riverdale – fora do brilho de Manhattan – são amigos íntimos. Trato-os muito bem, entenda-se. Mas confesso satisfação em vê-los partir ou, melhor, nem chegar. Isso se deve ao fato de que descobri a maravilhosa experiência do chamado “quarto de vestir”. O nome diz tudo: um aposento reservado exclusivamente para acomodar as roupas do morador, e onde se pratica o ritual da vestidura. Pois este escriba, caros e invejosos leitores, possui um espaço desses.

O problema é que o quarto de vestir era absurdamente considerado “dormitório de visitas”. Pode? Esse tipo de ocupante temporário, quando muito, vem uma vez por ano. Será, diga-se, submetido a um rigoroso sistema de seleção prévia, obedecendo a critérios muito bem-estabelecidos. Compõe-se de membros da família – e nesse grupo estão incluídas relações de parentesco com indivíduos que compartilham códigos genéticos dos habitantes permanentes, além de turma reduzida ligada por laços de amizade selada a sangue. Ou, em último caso, indivíduos portadores de graves condições que requerem atendimento urgente. A todos, recomenda-se a brevidade da estada.

Quem haveria de negar que um espaço de imóvel como esse grita por outras atribuições além de abrigar bicos? É claro que o pedaço virou quarto de vestir! Duas belas araras grandes – aqueles aparatos móveis em que se dependuram cabides de roupas -, dois armários embutidos, uma ararinha só para acomodar gravatas e echarpes, além de engenhosos porta-sapatos. Somem-se a isso várias caixas de madeiras aromáticas: prontas para receber lenços, meias e abotoaduras, prendedores de gravatas, anéis, relógios e alguns mementos de valor sentimental.

É muito gay? Pergunto ao leitor arguto. E respondo: de modo algum! Esse tipo de retenção anal nada tem a ver com preferências sexuais. Se o sujeito é um marrento, patola, machista, mas elegante, também verá a necessidade de um bom quarto de vestir. Do mesmo jeito que um homossexual na estica, sofisticado e um tanto obsessivo dará qualquer coisa – incluindo a coleção de filmes da Judy Garland e CDs da Donna Summer – para ter um recanto desse tipo. Em meu caso, trata-se de necessidade que há anos me acompanha, mas só agora teve remédio. Foi preciso atirar minha filha na rua para estabelecer meu domínio sobre o território que um dia foi seu reino encantado. Ainda posso ver parte de sua coleção de bichos de pelúcia, em prateleiras para as quais planejo novos volumes. Dá uma certa saudade da pequena. Mas a troca valeu a pena: para ela e para mim.

Claro que minha mulher, aquela santa que mora lá em casa, não tem permissão de compartilhar do santuário das vestimentas. É tudo meu! Ela que se vire com os dois armários que lhe cabem. Afinal, já divido a cama com a santidade. Que mais ela poderia querer?

E se com a Santinha eu já imponho limites no uso do quarto de vestir, imagine com pessoas estranhas. Desse modo, aqueles que planejam esticadas de compras natalinas em Nova York, considerem que o hotel da família Freitas está sem vagas. A ocupação agora, e para sempre, está reservada ao fabuloso guarda-roupas do almofadinha que paga o aluguel do pedaço.


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