Certo dia, há setenta anos, Laurinha Pereira Bento, índia xerente, e sua filha Guilhermina colhiam buritis para merendar nos caminhos da Serra do Porco, no Jalapão. Pés encharcados, cesta cheia e o medo de sucuri fizeram as duas retornar. Guilhermina lembra: “Nesse instante, deu nos olhos da minha mãe aquela vereda toda dourada pelo Sol e que se estendia quase até o horizonte. Toda aquela terra era de um amarelo forte e brilhante. Minha mãe exclamou: ‘Filha, que coisa mais linda esse capim! Vou colher um pouco para fazer um chapéu e uma bolsa’. Ela teve a ideia de usar aquele material para também fazer cestas, potes e bandejas”.
A história das artesãs do capim dourado pode ser contada pela trajetória de Guilhermina Ribeiro Silva, mais conhecida como dona Miúda, agora com 81 anos. Ela se inicia num tempo em que todos no quilombo de Mumbuca eram rongós (muito pobres). Viviam da roça. “Dinheiro pra quê, se não tinha nada pra comprar?”
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Guilhermina, então com 14 anos, começou a fazer peças com essa fibra dourada, costurando-a com os fios retirados da palma dos buritis. Do hábito e da necessidade, o ofício passou de uma geração a outra – foram nove filhas e dois filhos -, estendendo-se para a maioria das mulheres do lugarejo. Quando um dos filhos chegava nas feiras de Porto Nacional e Novo Acordo, com o carro de boi reluzente levando a produção do mês, vendia tudo quase na hora. Era o primeiro a voltar para casa e com o dinheiro da venda comprava café, sal, arroz e querosene.
Meu primeiro contato com o capim dourado, porém, se deu muito longe das paragens de dona Miúda: na Itália. Uma década atrás, no Mercado da Palha, em Florença, onde estão expostos artigos confeccionados com fibras naturais do mundo inteiro, uma pequena bolsa se destacava. Seu tom ensolarado reverberava luz nas outras, e isso me chamou a atenção. “Ela é pequena, mas muito cara”, disse uma vendedora baixinha e peituda. “Nenhuma se compara em originalidade de material a esta bolsa. É o único exemplar, vendemos todas”, e sem que eu perguntasse, avisou: “Custa 300 euros, pois é feita de um vegetal raro lá do Brasil”. Ela não sabia, mas identifiquei de imediato o capim dourado.
O tempo passou e ficou aquela vontade de saber mais. Só que não é fácil chegar ao Jalapão. O calor vem em ondas e há momentos em que é quase impossível não perguntar: “O que é que eu estou fazendo aqui?”. Mas são as escolhas do coração. Vim para conhecer as artesãs do capim dourado.
E é por estradas sinuosas, poeirentas, sem sinalização, perdidas entre formações rochosas, que cortamos uma porção do cerrado, onde se desenham paisagens extremas. Despontam visões surrealistas, como a da enorme faixa cor de açafrão cortando o verde das copas do buritizal. São as dunas do Jalapão. Um lugar em que, à noite, nenhuma nuvem se atreve a encobrir as estrelas.
Ainda nas estradas do Jalapão está Mumbuca. Distante 350 km de Palmas, sem atrativos turísticos nem infraestrutura e com apenas 40 famílias, o lugarejo tinha tudo para ficar esquecido no sertão de Tocantins. Nada há no lugar que seja preciso preservar da passagem do tempo. Só que as mulheres desse lugar remoto sabem costurar com o capim dourado. Fazem mandalas, jarros, potes, cestas, pratos, sous plats (suporte para prato), fruteiras, chapéus, caixas, brincos, pulseiras, colares. Todas aprenderam com dona Miúda, transformaram esse artesanato em patrimônio cultural e estão ajudando a inserir Mumbuca no mapa.
O olhar curioso de quem passa pode flagrar pelas janelas das casas de adobe um ambiente desprovido de quase tudo. Por vezes, não há nada além de uma rede e mulheres de mãos hábeis trabalhando peças de capim dourado. Numa dessas casas, de dois quartos, com uma cozinha que não passa de um espaço sem parede e recoberto de palha de buriti, vive dona Miúda, a herdeira da magia de atar fios da natureza, dando forma a um dos mais requintados artesanatos do Brasil. É de apertar o coração.
Um pouco de sua história e experiência vão se desfiando. Depois de ouvi-la, o que, de início, se apresenta como pobreza revela um processo de conquistas. Se a luta agora é pelo manejo comunitário sustentável do capim dourado e pela melhoria das condições de vida, na década de 1980 era apenas para matar a fome. “Hoje, moço, não somos mais perrengues, agora tá bão.”
As artesãs são unânimes em apontar dona Miúda como a pessoa que fez todo mundo melhorar de vida na aldeia, mas ela se lastima: “Agora me sinto fora de tudo, meu filho. Não consigo ter uma produção boa e com isso sou muito prejudicada. Vivo contra a parede. Todo mundo vem aqui, me abraça, já recebi toda ‘posição’ pelo trabalho que desempenhei com o capim dourado, mas na minha casa não tem nem unzinho sofá pra sentar. Outro dia, veio uma comitiva de dezesseis carros. Ninguém me avisou antes para que eu pudesse preparar umas peças. Quando chegaram, tinha poucas para vender. Recebi a homenagem, me deixaram um troféu, levaram meu artesanato, pagaram só a metade”.
Guardiãs da natureza
Se as condições de vida ainda estão bem longe do ideal, há uma perspectiva. Em 2008, foi inaugurada a sede da Associação Capim Dourado do Povoado de Mumbuca. É uma das quatro entidades do gênero criadas no Jalapão, com, aproximadamente, uma centena de mulheres e aprendizes. Seu objetivo é integrar a produção e difundir o conhecimento. “Agora, temos um lugar para expor e vender nosso trabalho. As peças estão catalogadas por artesã, e isso nos ajuda muito”, explica sorrindo a “reguelecha” (brincalhona) Ana Cláudia. No interior do galpão, há só algumas peças nas prateleiras. “São poucos os compradores, mas quando vêm, levam quase tudo”, conta.
O tempo e a habilidade para fazer uma peça têm seu preço, resta apenas criar variações. O básico dos novos desenhos para o artesanato foi aprendido nos cursos ministrados pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), mas as artesãs sabem que sua arte só pode sobreviver com trabalho em equipe e respeito pelo talento individual. Esse capim permite quase tudo o que se pensa fazer com ele. A criatividade e a competência técnica precisam apenas encontrar novos e bons aliados.
A beleza de um lugar não se limita às suas paisagens; envolve também a natureza dos moradores. Basta olhar para essas mulheres para se encantar com Mumbuca. Elas transmitem alegria. São expansivas, marotas… espertas. Cada figurinha! Personagens que só teriam a enriquecer nosso cinema, teatro e literatura.
“Sente o bafão”, brinca Evaniu, filha de dona Miúda, referindo-se ao calor já intenso. Mal acabava de amanhecer. Caminhávamos pela mesma vereda onde, décadas atrás, a índia Laurinha (a avó de Evaniu)começou a saga desse artesanato. Era final de setembro, a única época do ano para a colheita do capim dourado. Por isso, a produção é restrita e as peças, muito valorizadas. A rigor, o “capim dourado” não é bem um capim. É uma espécie de sempre-viva (Syngonanthus nitens) que brota nos solos úmidos às margens das veredas. Vegetação delicada, tem hora certa e bem delimitada para ser colhida.
É rara a oportunidade de contato com essa arte produzida em um dos rincões mais perdidos do País. Ali, a tradição comanda: “Quando chuvisca na vereda, pode ir no dia seguinte que o capim brotou”, ensina Martina, que usa um pano vermelho enrolado na cabeça. Ela e Ana Cláudia, Taine, Ilana, Marijane, Jivoene, Evaniu e Elizabete vão me ensinando os ri-tuais da colheita. Entre eles, usar tal pano na cabeça, vestir saia, colher em grupo para afastar as sucuris e, sobretudo, bater o capim para espalhar as sementes maduras e, assim, garantir a colheita seguinte. O que faz dessas mulheres também guardiãs da natureza. Para completar tamanho encantamento, elas cantam sempre. Suas melodias ecoam e se misturam aos gritos das araras na imensidão do cerrado: “Nosso Jalapão tem algo que eu não posso deixar de falar/É do lindo capim dourado que devemos preservar/Colhendo na época certa e deixando a semente no seu lugar/Para que o lindo capim dourado continue a brilhar”.
A colheita termina, vamos embora. Mas o encanto não. Porque Ilana pede: “Você me tira uma foto minha, com as pulseiras do capim dourado, aqui nas dunas? E coloca aí: ‘paixão total pela minha terra’”.
JALAPÃO? ONDE
O Jalapão é a maior atração turística no mais recente Estado da Federação, Tocantins. De certa maneira, tudo é muito novo. Tocantins tornou-se um Estado – ocupando uma área antes pertencente a Goiás – em 1988. Três anos depois, o Jalapão foi transformado em Parque Estadual, com 34 mil km2, área equivalente a Sergipe. Há mesmo muito o que preservar na natureza local. Rios, riachos e ribeirões de águas transparentes cortam uma região que reúne cerrado, cerradão, campos limpos, campos rupestres e floresta equatorial em transição. Nessa imensidão moram veados-campeiros, tamanduás-bandeira, lobos-guarás, raposas, símios, etc e etc. Mas há pouca gente. É a menor densidade populacional do País: 0,8 habitante por km2. Pode-se andar horas sem topar com uma alma viva. A capital de Tocantins, Palmas, está a 1.776 km de São Paulo e a 2.124 km do Rio de Janeiro. Como se vê, longe demais das principais cidades do País. Mumbuca, um ex-quilombo, pertence ao município de Mateiros e fica a 350 km de Palmas.
Associação Capim Dourado do Povoado de Mumbuca – (63) 3579-1092 Povoado de Mumbuca, Mateiros – TO – (63) 77593-000
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