Orson Welles morreu em 1985. Causa do óbito: enfarto (até que alguém diga o contrário). Nessa mesma época, as músicas de New Order, OMD e Depeche Mode animavam as pistas mais descoladas do planeta. Em Porto Alegre, o pequeno Xerxenesky dava seus primeiros passos.
O que tudo isso tem em comum?
A resposta está em F, romance que desafia gêneros e se coloca numa brecha entre o entretenimento puro e a literatura de reflexão. É o que diz o próprio autor, que se considera um ser estranho no atual cenário da literatura.
Antônio Xerxenesky tem apenas 29 anos, mas já está com quatro livros no currículo, é tradutor, montou uma editora independente (a Não Editora) e faz parte do grupo de jovens escritores eleitos pela prestigiada revista literária Granta. Curiosamente, estudou Física e Direito antes de se decidir pelas letras. Depois de um livro de contos escrito aos 18 (Entre), um romance misturando metalinguagem, faroeste e zumbis (Areia nos Dentes), e um livro de contos em que a literatura é, de certa forma, a personagem principal (A Página Assombrada por Fantasmas), ele chega a F, romance protagonizado e narrado por Ana, adolescente que cresce no cenário mais pesado da ditadura e acaba se tornando uma matadora de aluguel.
O pai de Ana é ligado a órgãos repressores, especializado em métodos de tortura. O tio, afastado da família, a convence a ir morar em Los Angeles, onde descobre seu talento inusitado com armas. As missões vão se sucedendo à medida que ela vai sofisticando seu estilo. Ela vai a Paris e passa a encarar o assassinato como uma forma de arte. Até que se depara com o desafio mais difícil de sua carreira: matar o ator e diretor Orson Welles.
Em meio a tudo isso, Xerxenesky insere habilmente reflexões sobre a comunicação difícil entre pais e filhos, o futuro da música, a cinefilia, os muitos sentidos da arte e a complexa relação entre empatia e estética. O livro traz mil referências divertidas, de Joy Division a Tom & Jerry, e entretém o leitor, que, desavisado, talvez não perceba o travo amargo no fundo da trama rocambolesca.
Brasileiros – Não é a primeira vez que você escreve do ponto de vista de uma mulher. Como é isso para você?
Antônio Xerxenesky: Bem tranquilo, na verdade. Eu criei a Ana com uma dica que uma amiga me deu. Logo que saiu o Página Assombrada, ela comentou um conto em que a narradora é mulher e disse que não funcionava. Perguntei: “Então, como se escreve como uma mulher?”. Ela respondeu: “É o seguinte, escreve as mesmas coisas que um homem faria e pensaria,sóque troca‘ele’ por ‘ela’ e ‘o’ por ‘a’”. Foi exatamente o que eu fiz e parei de me preocupar com isso (risos).
Orson Welles é uma obsessão sua?
Foi durante algum tempo. Essa história na verdade surgiu de maneira muito diferente. Eu estava em um museu, desses de oceanografia, e vi um esqueleto de baleia imenso. Aí, disse: “Nossa, Moby Dick nunca recebeu uma adaptação cinematográfica grandiosa! Imagina se Orson Welles dirigisse, com aquela força, aquele vigor!”. Daí, fui pesquisar e vi que ele tinha feito uma adaptação de Moby Dick para o teatro. Comecei a pirar: “Nossa, imagina escrever um romance sobre a tentativa de adaptar Moby Dick!”. Mas seria muito difícil escrever, teria de fazer uma reconstrução histórica, e mesmo com muita invenção tudo teria de ser calcado em pesquisa, não ia dar certo! Então, comecei a investigar a vida do Orson Welles e vi que ele tinha morrido em 1985. Daí, as coisas começaram a fermentar na minha cabeça.
Ou seja, você associou a morte dele com o universo musical dos anos 1980…
Sim, e escrevendo o F ficou muito claro para mim porque gosto tanto dos anos 80. Já ouviu aquela música Enola Gay, do OMD? Eles disseram em uma entrevista que a música tem três referências: a bomba atômica, a mãe de alguém e não sei o quê. Mas aí você a ouve num contexto de pista de dança! Eu gosto dessa ideia, de escrever um livro de entretenimento puro, mas que se o leitor for mais a fundo vai encontrar ali vários níveis de leitura. A música pop na década de 80 tinha esse pendor artístico e minha ficção também, acho. As epígrafes que escolhi dão uma chave de leitura que acho a melhor para o livro. Ambas falam do som do futuro. Por um lado, Giorgio Moroder, que popularizou o sintetizador, e de outro, Wittgenstein, que não tolerava nada surgido depois de Brahms. E o F, que começou a ser o “f” de falso, de ficção, passou a ser um livro sobre o futuro, o futuro da arte, da leitura, da música. Tudo a ver com os 80, que foram totalmente fissurados pela cultura tecnológica, pela arte das máquinas. Hoje, a gente vive essa questão muito fortemente: o que é máquina, o que é humano. Não é à toa que teve um revival grande dos anos 80.
Outra leitura de F parece ter a ver com a morte, tema frequente em seus livros, mesmo que de forma paródica. Você é muito encanado com a morte?
Na adolescência ou pré-adolescência, quando notei que meus pais eram muito mais velhos do que eu e mais velhos do que os pais dos meus amigos, fiquei mesmo com a encanação de que eles morreriam cedo – eles estão vivos e bem – e por muito tempo isso me apavorou. Eu também era bastante hipocondríaco, achava que ia ter todas as doenças do mundo. Me imaginava indo ao hospital por causa de uma doença e depois pegando uma infecção e uma sucessão desastrosa de doenças sobre as quais eu lia! (risos) Talvez daí tenha vindo uma certa fixação com a morte. Mas nunca tinha pensado nisso como tema central dos meus livros. Agora, curiosamente, tanto Areia nos Dentes quanto F falam sobre a relação entre pais e filhos…
Minha mãe é sempre a primeira leitora dos meus livros. A formação dela é em Crítica Literária. É uma leitora bastante severa, marca muita coisa, é quem melhor revisa português que eu conheço. E dediquei o Areia nos Dentes a meu pai, que é médico, mas também é um grande leitor. Gosto de lançar falsas pistas, para brincar com a ideia de que há alguma ligação com a minha vida, porque as pessoas sempre ligam o autor à obra. Mas, na verdade, meu pai não tem nada a ver com a figura autoritária que aparece nos dois romances, ele é super gente boa. É mal-humorado, ranzinza, e talvez eu tenha herdado a insônia dele, mas no fim é tudo piadinha, um jogo de espelhos, eu diria. É uma relação entre ficção e realidade, mas com a realidade distorcida.
Como foi sua formação de leitor?
Cresci em meio a uma biblioteca monstruosa, que ocupava toda a casa. Agora, meus pais estão se desfazendo de uma parte por falta de espaço, mas ainda tem, pelo menos, uns três mil livros lá. Lia muito Senhor dos Anéis, Brumas de Avalon e Philip K. Dick, Neil Gaiman, ficção científica. Mas ficção respeitada, entre aspas, comecei bem mais tarde, aos 16, com o Cortázar, o primeiro escritor dito sério que eu li pra valer.
Quando e como você descobriu que seria escritor?
Não descobri isso ainda, é muito estranho (risos). Sempre penso: “Bom, lancei esse livro agora e deu, chega, já disse tudo o que eu tinha pra dizer”. Tenho essa sensação muito forte porque tenho cada vez menos ideias. Tenho uns caderninhos de anotações que, há seis, sete anos, continham ideias para uns 20 contos, e esse ano não tive nenhuma! Fico pensando que vai chegar uma hora que vou deixar de ser escritor.
Então, você é daqueles que sofrem para escrever?
Muito! Geralmente, quando estou escrevendo, fico muito obcecado, encanadíssimo, fico pensando nisso o dia todo, durante o banho, sem parar, o tempo todo. Sofro muito e sempre prometo que nunca mais vou escrever um livro na vida. Tenho sempre esse momento em que eu digo: “Chega! Acabou, agora é só não ficção”. Mas não consigo deixar de escrever, é um vício, um hábito desagradável ao qual retorno (risos). Antes, eu escrevia como louco. Mas agora! O trabalho que foi escrever aquele monólogo do Orson Welles, que inferno! Várias páginas foram infernais de escrever.
Como sabe que é hora de dar o ponto final?
Termino porque já estou com nojo do livro, não aguento mais. Preciso me desintoxicar. Tenho já 30 páginas de pesquisas para o livro novo, mas não consigo começar a escrever porque ainda estou no F. E eu não quero escrever um F 2.
Pode adiantar um pouco sobre o novo livro?
O principal tema é religião. Vai ter uma seita que não sei se é satanista, mas vai ter Satã no meio. Por enquanto, estou achando muito cabeçudo, tentando achar o elemento que vai mudar isso. Meu maior medo é escrever um livro chato! Eu morro se escrever um livro chato! E olha que gosto de livros chatos! (risos)
Onde você se coloca como escritor no espectro que vai da vontade de transformar o mundo ao “nada me importa”, um dos dilemas que aparecem em F?
Estou muito mais próximo do “nada me importa” (risos). O F é um caso curioso, pois foi a primeira vez que escrevi um livro que já teve alguma recepção antes. O primeiro capítulo tinha saído em uma versão muito menor na Granta… Muita gente não gostou! A recepção negativa me paralisou, o que é besteira, cada um faz o que tem de fazer. É muito ruim escrever pensando num leitor, não dá para fazer isso, é uma lição besta que eu já devia ter aprendido. Esqueci e precisei aprender de novo. Aí, fiquei pensando: “Putz, se não gostaram desse trecho, por que estou escrevendo esse romance? Por que não joguei ele fora e comecei a escrever algo novo? Mas acho que todo escritor tem de dizer uma hora: “Não vou pensar na recepção”. As coisas mais prazerosas que vivi com meus outros livros vieram de poucas pessoas: uma delas disse ter encontrado meu livro por acaso numa biblioteca e me escreveu um e-mail enorme contando como o livro tinha mexido com ela. Acho que escrevi o F tendo em mente que cinco pessoas iam ser profundamente atingidas pelo livro e não cinco jornalistas da moda ou cinco críticos dos grandes jornais. Não vou mudar o mundo, mas espero que cinco pessoas guardem o livro com carinho. Na verdade, sou um escritor estranho no meio da seleção da Granta. E no meio dos escritores da literatura brasileira contemporânea.
Por quê?
Sinto que a literatura brasileira contemporânea está em dois momentos: de um lado, temos o realismo formado por Daniel Galera, Michel Laub, Carola Saavedra, Cristovão Tezza, Milton Hatoum, escritores que admiro. De outro, tem a literatura fantástica, que está bombando muito em termos de venda: Eduardo Spohr, André Vianco, Raphael Draccon, que estão formando um público leitor, preenchendo um espaço no mercado que é muito importante. Eu me sinto no meio do caminho, porque escrevo histórias muito absurdas, muito divertidas, entre o realismo e o fantástico, entre a ficção dita séria e a ficção dita de entretenimento. Claro que esse é o tipo do trabalho que não ganha prêmio, não é considerado literatura séria. Mas tudo bem, é aquele lance que no mercado dos EUA é considerado middle-brow. Tipo Neil Gaiman ou até Paul Auster. Minha ambição vai em direção ao prazer da leitura e também um pouco em formar leitores. Eu aceito que escrevo o que sei escrever. Não adianta eu tentar escrever o novo Ulisses. O que sei escrever é isso, e é muito eu. Não é autobiográfico, mas é muito pessoal, porque tem coisas que me importam. Nunca vou escrever um livro sobre um homem solitário, deprimido olhando a chuva cair, porque vou querer botar uma espaçonave no meio. Minha tendência é sempre colocar uma espaçonave em algum lugar. No F tem Orson Welles, assassina de aluguel, Joy Division… Talvez, o único autor com quem me identifico mais, realmente, é o Samir Machado, autor do Quatro Soldados, ele tem as mesmas preocupações estéticas que eu.
E fora do Brasil?
Aí é mais fácil. O Rodrigo Fresán é um ótimo exemplo. A gente não tem o mesmo estilo. Ele tem aquelas frases longas, concatenadas, mas as preocupações estéticas e filosóficas são muito similares. Eu colocaria também o Philip K. Dick. É um cara que as pessoas muitas vezes não entendem, porque seus romances se passam em colônias marcianas, mas na verdade ele está transmitindo preocupações muito pessoais sobre o que é realidade, por exemplo. Outro nome essencial, que me influenciou muito, é o Thomas Pynchon. Ele é capaz de escrever um romance histórico, passado em 1900, e inserir um cara que é claramente o criador do Tetris. Faz coisas assim, um mar de referências, que vão da altíssima cultura a Mario Bros. E sempre digo que alta e baixa cultura é com grandes aspas irônicas. Enfim, Pynchon é o cara!
Bolaño?
Bolaño é o cara que mais estudei na vida: meu trabalho de conclusão foi sobre ele, o mestrado foi sobre ele. Se sou especialista em algum assunto, é esse. O F tem um pouco do Estrela Distante, por causa do poeta serial killer, que está presente na assassina de aluguel que vê o assassinato como uma forma de arte. Mas ele está muito mais no A Página Assombrada, no lance da metaliteratura, de livros falando de outros livros, de contos falando sobre contos, de uma autoconsciência muito pesada, mas que ao mesmo tempo é muito humana. Porque o problema da metaficção e da metaliteratura e todos esses “metas” é se perder em uma espiral de referências e não significar nada. É um negócio a se evitar, isso de escrever para um público que já leu tudo o que você já leu. No A Página Assombrada, pensei: “Bom, vou escrever um livro sobre outros livros, mas tem de ser pelo viés do leitor, tem de falar de como os livros mexem com a nossa vida, pois senão vou me perder”.
E Thomas Bernhard? Você já deu cursos sobre ele, não é?
É engraçado, tem muitos escritores que adoro que não entram na minha ficção. Thomas Bernhard é um deles. O André Sant’Anna e o Reinaldo Moraes, que para mim são os dois grandes autores brasileiros de ficção no momento, também. O que tem deles na minha literatura? Nada! Não tem nem rastro! Os temas são totalmente diferentes. É isso, dá para ler e admirar muito um escritor sem ser influenciado por ele.
Ao mesmo tempo, dá para ser influenciado por outras linguagens, como o cinema, que também aparece bastante em seus escritos.
Frequentei muito cineclube em Porto Alegre. Via sistematicamente um ou dois filmes por dia, durante muito tempo na minha vida. Eu pegava um cineasta que eu gostava, como o Brian De Palma, e assistia a todos os filmes dele. E assim foi indo. Tem um nível de TOC. Do Sergio Leone, devo ter visto 30 vezes cada. Pensando no F, sempre gostei de filmes de assassinos de aluguel, especialmente um do Wong Kar-Wai, que se chama Anjos Caídos. É meu favorito.
O que você pensa dessa tendência em escrever ficção misturada com ensaio?
Acho muito legal. Para mim, a ficção é um laboratório de ideias. Nos meus livros, mesmo no Areia nos Dentes, os personagens estão sempre discutindo cinema, literatura, etc. E isso embrenhado numa ficção. Às vezes, eles se fazem perguntas que eu não saberia fazer em um ensaio. Discutem ideias que me interessam, Joy Division ou New Order, cinema francês ou americano, Sam Peckinpah ou Sergio Leone, o que é arte… Na verdade, acho tudo interessante, se tem algo que não entendo é o tédio. Tendo um computador e internet, vou pesquisar sintetizadores modulares, um caso bizarro da Segunda Guerra Mundial, uma seita satânica, doenças diversas (já fui muito hipocondríaco) e o som do Chromatics.”
E quanto à ditadura? Ela tem um papel desencadeador no F, mas não chega ser desenvolvida como tema.
Bom, a minha personagem é muito ambígua em relação à ditadura. É bom deixar bem claro que meus livros não refletem minhas posições políticas. É sempre um risco isso de fazer piadinhas, como dizer que a Ana tem um sobrenome cheio de consoantes, impronunciável, como o meu, mas na verdade ela não tem nada a ver comigo. Ela não consegue ter empatia. A grande jornada dela é justamente essa, começar a desenvolver empatia, a refletir sobre isso. Acho que a ditadura ainda é um assunto horrível. A caricatura que parece no F é a visão distorcida de uma garota de 25 anos, uma visão maniqueísta, de guerra entre o bem e mal, em que ela, no fim das contas,não se encaixa. Ela é do início de uma geração que não consegue se engajar. É um tema ainda muito complicado, que não pode ser tratado com leviandade. Minha base foram as histórias que minha mãe contava. Ela se formou em Direito em 1968, no pior momento da ditadura. Enfim, é um assunto que não dá para ser tratado brandamente. Mas meu livro é sujeito à visão de mundo da personagem. O Fnãopretende dar conta disso, como, por exemplo, os livros doKucinski, que são excelentes.
Conta um pouco sobre sua editora.
Quando comecei a escrever, a editora Livros do Mal, do Daniel Galera e do Daniel Pellizzari, estava em hibernação. E a minha geração de escritores, que vem logo depois da deles, ficou sem ter onde publicar. Então, pensamos na Não Editora, inicialmente para publicar autores do Sul, bairrista como é nossa turminha gaúcha, mas a verdade é que o Brasil estava com falta de editoras independentes. Estou me referindo a 2006, 2007. Nosso objetivo era fazer livros bonitos, com cara profissional mesmo. A gente era meio mambembe no assunto, mas tinha dois designers na equipe. A ideia é que, se levássemos livros realmente bonitos para as livrarias, eles seriam expostos ao lado dos da Cosac & Naify. E deu muito certo, a gente conseguia destaques nas livrarias grandes que só pagando! Também rolava muito um marketing de guerrilha, pelas redes sociais, usamos muito a internet a nosso favor. Um dos primeiros livros que a gente publicou foi o Pó de Parede, que é excelente, da Carol Bensimon, que depois conseguiu um contrato com a Companhia das Letras. Hoje, todo mundo tem uma editora independente, surgiram várias boas! É muito difícil um autor novo não conseguir ser publicado.
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