Não, você não leu errado… Pode estar aí matutando: “Como assim? Depois de falarmos de Edu Lobo, de dois clássicos do samba-jazz e de ouvirmos o requinte de grandes músicos cariocas e paulistanos, vamos, agora, falar de funk?! Ah, le-lek?! É isso?! Tá lo-loko, colunista?”. Não. Nada disso, caro leitor… O funk do qual falaremos hoje será apreciado até mesmo por aqueles que repelem o genericamente chamado “funk carioca”. Trata-se do bom e velho gênero musical egresso dos ensinamentos dançantes do reverendo James Brown.
A história exige um salto cronológico. Partimos do mais recente post, que tratou do álbum de estréia de Edu Lobo, de 1965, e vamos agora para os estúdios paulistanos da gravadora Copacabana, em 1977. Os protagonistas dessa impressionante incursão afro-funk, chamada Black Soul Brothers: o cantor, compositor e guitarrista Miguel de Deus, associado a um grupo de músicos “da pesada”, como se dizia naqueles dias de consolidação de uma forte cena Black Power, majoritariamente composta por jovens negros das periferias e dos subúrbios de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde o movimento ganhou o nome Black Rio.
Baiano de Ilhéus, Miguel de Deus mudou-se para a Cidade Maravilhosa em 1969, e ganhou projeção nesse mesmo ano com o lançamento do único disco de sua primeira banda no Sudeste, Os Brazões (RGE). Sobre o quarteto, Nelson Motta sentenciou na contra-capa do álbum: “Sai falando para todo mundo que havia um conjunto genial acompanhando Gal Costa. Mas eles têm um longo caminho pela frente, um caminho cheio de luzes estranhas e do imprevisto mais claro. Como acompanhantes, foram perfeitos, de uma saudável humildade, sem querer superar o solista. Como conjunto, tocando sozinhos eles são perfeitos. Músicos de uma arte séria e madura. Além dos Mutantes, para quem não conhecia Os Brazões, havia uma pobreza muito grande no campo da música jovem instrumental.”
A banda era formada por Miguel, voz e guitarra base, Roberto, guitarra solo e voz, Taco, voz e contrabaixo, e Eduardo, baterista. Como enalteceu o produtor carioca eram mesmo músicos de técnica exemplar e demonstravam forte personalidade ao misturar, do figurino à ousada sonoridade, elementos estéticos do rock psicodélico e da cultura africana. Não tardou para Os Brazões se aproximarem de tropicalistas como Jards Macalé (tocaram com ele Gotham City, no IV Festival Internacional da Canção, de 1969 – ouça), Gal Costa (foram banda de apoio da cantora em uma série de shows, entre 1969 e 1970) e Tom Zé (dividiram palco com ele no IV Festival da Record, quando o baiano foi o grande vencedor com São, São Paulo – veja vídeo da apresentação histórica).
Depois de encerrar a carreira efêmera de sua banda posterior aos Brazões, chamada Assim Assado em óbvia referência aos Secos & Molhados (ouça Pedaços, de 1974, regravada em Black Soul Brothers), Miguel caiu de cabeça no funk até concluir este álbum, um dos mais importantes do gênero no Brasil – entre eles, Maria Fumaça, da Banda Black Rio, o disco homônimo de estreia da União Black, os primeiros de Toni Tornado, Gerson King Combo e Carlos Dafé (a lista vai além e muitos desses álbuns logo terão destaque em Quintessência).
Gravado em São Paulo, no Estúdio Reunido, Black Soul Brothers tem produção de Santiago “Mister Sam” Malnati e arranjos de Branco e Eduardo Assad. Instigante desde a capa caleidoscópica (criação de Luiz Tadeu da Silva) o álbum reúne oito canções, com longas teias instrumentais, assinadas por Miguel, sendo duas em parceria: Mr. Funky Samba, com o patriarca dos B-Boys brasileiros, Nelson Triunfo (aliás, é dedicada a ele); e a poderosa faixa que dá título ao disco, de Miguel e Paulo Rocco.
O álbum é pleno de uma atmosfera festiva e despretensiosa. E não espere grande lirismo das canções reunidas por Miguel – cantadas e um estilo para lá de peculiar, muitas vezes aos berros, em tom de deboche e português displicente. Algumas letras, como a de Cinco Anos, resumem-se a três ou quatro frases: “Fazem (sic) cinco anos que você saiu de casa / Eu não sei se você está vivo / Fazem (sic) cinco anos que você saiu de casa / Eu não sei se você está morto). Na contracapa do LP, além de agradecer as equipes Soul Machine e Black Soul, responsáveis por bailes épicos na capital paulistana, Miguel deixa um texto de agradecimento que dá pistas de três músicos envolvidos na gravação (infelizmente, o disco não traz ficha técnica completa e não credita todos eles): “E, de repente, sou grato ao Dimas, Paulo Rocco e Sam. Aos músicos que participaram do trabalho, e em especial ao Dirceu, “Bolão” e Antenor. No departamento ‘astral de teatro’ agradeço ao pessoal do Victor. Antes, agora e depois, porque na lua cheia… E para a semente, aí vem o amanhecer!”
Após ser coadjuvante de luxo de estrelas do primeiro time da MPB e legar disco tão importante para a história da música brasileira, Miguel caiu em ostracismo e viveu, dos anos 1980 até 2007, quando morreu em Campinas, no interior de São Paulo, de pequenos shows e participações medianas com músicos da noite em bares e casas de shows. Um fim injusto para nosso Soul Brother n°1.
Ouça aqui a íntegra do álbum Black Soul Brothers Mas afaste a cadeira, o sofá ou a poltrona, pois é bem provável que você terá como reação imediata sair dançando.
Boa audição e até a próxima Quintessência (acesse outros textos)!
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Em 2008, o cineasta Rubens Pássaro dedicou a ele um documentário de 86 minutos, que conta com vários depoimentos de Miguel. Veja abaixo
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