Lembro-me bem do fim da União Soviética. Na época, eu trabalhava em uma companhia de assessoria econômica e, na função de consultor, havia formado um grupo de executivos de empresas multinacionais chamado Brazilian Business Forum. Esse grupo foi uma das manifestações de meu desejo pessoal e profissional de “interpretar” o Brasil para os estrangeiros. Numa reunião do Forum, logo após do anunciado fim da União Soviética, simbolizado pela queda do muro de Berlim, um dos membros do grupo declarou em alto e bom tom: “Ganhamos!”. Eu respondi que a única coisa que “ganhamos” foi a oportunidade de demonstrar que o capitalismo poderia realizar a promessa da sua propaganda: de melhorar a condição material da humanidade, e, se falhasse neste empreendimento, tudo começaria novamente.
Verbalizei o meu ceticismo a respeito do “ganhamos” em vários seminários internacionais sem convencer ninguém, pois a euforia era tanta que se chegou a proclamar até o fim da história. Os Estados Unidos emergiram como a única superpotência do planeta. Achava eu que isso significava uma grande responsabilidade que transcendia a questão de “vitória”. Contudo, apareceram aqueles que tiraram a conclusão contrária. Segundo eles, agora os EUA poderiam fazer o que bem entendessem. A América passou a ser o que se chama de rogue superpower, – uma potência cujas determinações ninguém poderia desafiar.
Em 1993, na esteira da queda do muro, o mundo atingiu um nível de integração econômica que só havia sido alcançado antes em 1913, até que a economia “global” foi destruída pela Primeira Guerra Mundial, iniciada um ano depois. A Primeira Guerra gerou a Segunda, e o mundo só começou a se reintegrar economicamente a partir de 1945; porém dividido entre dois modelos distintos e competitivos. A guerra “quente” cedeu lugar para a Guerra Fria. Era um mundo bipolar com o poder dividido entre duas superpotências.
Defendo a tese de que um mundo bipolar é um mundo “instavelmente estável”. Se tiver somente uma potência, não há quem possa se opor. Se tiver três potências, cada uma desconfia de que as outras duas possam unir forças para derrubar a terceira, portanto é um arranjo geopolítico inerentemente instável. Se tiver mais de três, tudo vira bagunça, pois acaba em comitê e nada fica resolvido. Mas enquanto há uma potência para servir de contrapeso para a outra, o “alinhamento” das outras nações com uma ou outra assegura certo “equilíbrio” em que as duas potências competem para angariar aliados a seus respectivos “modelos” societários. É claro que haveria confrontos e conflitos, mas o mundo seria controlado pelas limitações e interesses das duas potências.
Agora, lamenta-se ou celebra-se (dependendo do ponto de vista) o fim do “império” norte-americano. A meu ver, o suposto “império” dos EUA foi sempre meio fajuto qua império. Com efeito, era um império cultural construído sob predominação econômica e não militar. As tentativas dos EUA em criar um império militar inicialmente limitavam-se às questões internas – na expansão das fronteiras dos EUA pela conquista de tribos nativas e a conquista militar do Sul pelo Norte na Guerra de Secessão. A tentativa de conquistar território mexicano fracassou na batalha do Álamo, quando os americanos foram dizimados pelo exército de Santa Ana. Exércitos de verdadeiros impérios são exércitos de ocupação – vide os impérios romano e britânico. E os EUA já demonstraram que ocupar militarmente um país não é o seu forte. Isso não significa que os não quiseram ou não querem ser um poder “imperial”. Só significa que não têm os requisitos necessários para sê-lo.
No momento, os EUA e a China encontram-se num abraço mortal. Os EUA passaram a ser uma nação consumidora (das grandes) e a China tornou-se uma nação produtora (das grandes). A China incumbiu-se de financiar o consumo americano por meio do acúmulo de reservas provenientes desse “modelo bilateral” desequilibrado, investidas nos papéis do Tesouro americano para financiar o déficit em suas contas. A situação é semelhante àquela em que dois caminhões carregando explosivos se encontram em uma estrada na qual só pode passar um. Quem vai recuar? Um confronto seria desastroso para os dois. Contudo, não podem ficar parados, pois impedirão que todos os outros na estrada passem. É uma situação que só pode ser resolvida com negociação. Cada um poderia concordar em coordenar as “entregas” em dias ou horários diferentes para evitar o impasse. Alternativamente, podem se comprometer a usar caminhões menores que permitam a passagem dos dois, ou ainda concordar em um projeto para alargar a estrada para que dois possam passar simultaneamente. Mas o importante nesse cenário é que um não pode agir sem levar em consideração as alternativas e ações do outro.
Portanto, sustento a tese de que o mundo dirigir-se-á em direção a um G-2. Agora, em vez de usar o poder de armas e arsenais nucleares, é o poder econômico que será utilizado para gerar um mundo “instavelmente estável”. E o G-20, repositório de tantas esperanças no início da Grande Recessão? Com certeza, o G-20 teria pelo menos a função de árbitro da disputa entre as duas superpotências econômicas. As duas procurarão aliados dentro do grupo para aumentar o seu poder de barganha. Porém, sustento a tese de que o G-20 não seria o driver da economia global e nem a fonte das determinações geopolíticas. A razão é simples: enquanto o desequilíbrio entre produção e consumo continuar sendo fonte de conflito e esse desequilíbrio ficar essencialmente concentrado entre os EUA e a China (embora se manifeste em outros países também) a emergência de um G-2 torna-se mister para corrigir o curso da economia global.
E o Brasil nesse cenário? Certamente, o Brasil terá um papel mais importante nesse cenário do que teve no G-2 anterior. Porém, como antes, o país ficará entre a espada e a cruz. A política cambial chinesa afeta a dinâmica brasileira e o acesso ao mercado mundial, enquanto o protecionismo americano cria obstáculos para vender para a maior economia do mundo. Como competir com a China ou ter acesso ao mercado dos EUA? Alguns dos desafios do Brasil têm a sua origem dentro das suas fronteiras, – isto é, o famigerado Custo Brasil. Porém, como competir com uma economia como a China, cujo custo bruto de manufatura é US$ 5 por hora/homem trabalhada (versus US$ 25 nos EUA)? Haja eficiência! Isso nada tem a ver com o Custo Brasil. Contudo, o Brasil goza de certas vantagens comparativas que podem ser exploradas. Uma é a tecnologia na produção de biocombustíveis combinada com a influência regional do País na America Latina. A America Central, por exemplo, é composta de economias frágeis e pequenas que vivem à mercê do preço de petróleo e têm uma dependência grande de turismo. O clima nesta região é ideal para o cultivo de cana-de-açúcar. Outrossim, a América Central faz parte do Caribbean Basin Initiative dos EUA, que permite a venda de etanol para os EUA sem a onerosa taxa cobrada contra as exportações com origem no Brasil (embora a região seja sujeita a cotas). Infelizmente, um dos obstáculos à expansão da influência econômica do Brasil na economia regional e global é a limitação imposta pelo Mercosul, que faz com que seja necessária a negociação de acordos em bloco. Será que os interesses da Argentina, Uruguai e Paraguai são ou serão os mesmos do Brasil na economia global? E agora, se entrar a Venezuela, a possibilidade de consenso torna-se mais difícil ainda, pelo menos no que diz respeito aos interesses comerciais.
A meu ver, cabe ao Brasil determinar qual seria a sua estratégia dominante na nova ordem mundial de G-2. Uma estratégia dominante é definida como a que é melhor em algumas circunstâncias e pior em nenhuma. Por exemplo, lembra-se do Indiana Jones? Quando na busca do Santo Graal os nazistas atiram no pai dele. Somente a água tomada do cálice do Graal evitaria que o pai morresse. Jones é obrigado a escolher um cálice entre vários e, se escolhesse o errado, tomar a água seria fatal. Jones escolhe, e antes de dar a água para o seu pai, ele prova a do cálice escolhido. O momento é dramático. Mas estrategicamente foi uma decisão errada. Se escolhesse errado, Jones morreria e o pai também do seu ferimento. A estratégia “dominante” seria dar a água primeiro para o pai, que morreria em qualquer das circunstâncias, menos a da escolha certa. Se escolhesse certo, o pai seria salvo. E Indiana também. Se escolhesse errado, os dois morreriam.
Parece-me que a estratégia dominante para o Brasil na nova ordem econômica global, como player, seria a de evitar o alinhamento sempre que não combinar com os seus objetivos financeiros, buscar confrontos quando necessário (quem não chora não mama!), e concordar quando convém. Enquanto isso, deve-se buscar unilateralmente aumentar a sua influência regional, o que aumentará o seu poder de barganha. De certa forma, isso combina com as posições do Brasil em períodos anteriores, com uma diferença singular desta vez. Agora, deve-se evitar posições ideológicas. Embora a China seja comunista, o seu posicionamento na economia mundial é claramente mercantilista e capitalista – mais até que os EUA em certas áreas. O comércio não é movido por ideologias e sim por objetivos concretos. Há uma nova ordem embrionária. Carpe diem, Brasil!
*Jim Wygand é consultor nas áreas de investigação de fraude, due diligence, gestão de risco e diretor na CCI – Critical Corporate Issues (www.criticalcorp.com.br)
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