Reacionário, mas autocrítico

Há mais de um Nelson Rodrigues, como todos sabem, ao menos três são bem conhecidos. O teatrólogo é já objeto de reconhecimento adequado, constantemente encenado e revisto por diretores de primeiro plano, seu teatro é estudado em toda parte em que haja inteligência crítica. O narrador de contos e romances passou da intensa recepção popular em seu tempo de vida (Nelson viveu entre 1912 e 1980) ao quase esquecimento na década seguinte, até ganhar nova vida em adaptações para a televisão, muitas vezes girando em torno do título A Vida Como Ela É…, de vocação realista, mas não nos esqueçamos das reticências do título, que Nelson tanto prezava.

Mas há o Nelson cronista que, examinado de perto, não é bem um cronista (assunto para daqui a pouco). Em vida, publicou milhares de textos em várias colunas de muitos periódicos ao largo de vários anos, versando assuntos sem muita nobreza, muito em especial o futebol, um dos temas de eleição de seu espírito. (Nascido no Recife, veio com a família para o Rio de Janeiro, onde viveu a partir dos 4 anos. Era torcedor do Fluminense.)

Pois esse lado de sua produção escrita ainda está por merecer mais atenção. No campo editorial, podemos considerar que ele anda circulando bastante: depois de uma década inteira de ausência nas livrarias, depois de sua morte, eis que renasceu, primeiro pelas mãos de Ruy Castro, autor de sua biografia e editor de uma excelente coleção de textos seus, os de prosa de ficção e as crônicas, que colocou no mercado mais de dez volumes, pela Companhia das Letras. Depois, Caco Coelho deu às prateleiras mais um punhado de volumes, que iam além do material preparado por Ruy Castro. Mais recentemente, já pela Editora Agir e sob responsabilidade de Sônia Rodrigues, vários volumes reapareceram com outra concepção editorial. Em 2012, nova rodada de edições pela Nova Fronteira. (Para quem é do ramo, essas mudanças têm profundas implicações, de forma e conteúdo. Poupo o prezado leitor disso, porém.)

O Nelson do teatro é cada vez mais reconhecido como um raríssimo caso de dramaturgo trágico, no mundo moderno, o ficcionista dos contos e romances parece ser lido por motivos outros, ligados à fotografia dos costumes das classes médias brasileiras dos anos 1950, costumes que estariam mais ou menos vivos, ainda. E o cronista?

Crônicas e livros

Em vida, Nelson publicou quatro livros no campo da crônica (em seguida, vamos ter de mudar o termo). São eles: A Menina sem EstrelaMemórias (1967), O Óbvio UlulantePrimeiras Confissões (1968), A Cabra Vadia – Novas Confissões (1970), e O ReacionárioMemórias e Confissões (1977). Deu para ver que o autor os qualificou com dois termos, isolados ou combinados: memórias e confissões. Não usou “crônica”.

Ocorre que o termo crônica é familiar, evoca o texto relativamente ameno, bem escrito, com doses variáveis de dengo, singeleza e humor no jornal, na revista ou em livro. Tal cartaz procede basicamente de Rubem Braga, que fez sua carreira especificamente como cronista. Depois dele e muito por causa dele, sobe à vintena, ao menos, o número de brasileiros praticantes em alto nível: Antônio Maria, Paulo Mendes Campos, Ivan Lessa, Aldir Blanc e Luis Fernando Verissimo sirvam de exemplo elevado.

Nelson não faz boa figura nessa companhia. Não porque não tenha domínio análogo do texto ou porque lhe falte algum dos ingredientes, ocorre que nele há outros elementos centrais, especialmente dois: um apetite para as profundezas dos temas abordados, que desmente o aspecto relativamente turístico da crônica acerca dos assuntos que aborda; e um humor ferozmente crítico e autocrítico, muito longe das amenidades com que a crônica em geral se contenta.

“Memória” e “confissão” são os dois termos eleitos pelo autor para qualificar seus livros. Eu acrescento “ensaio”, em um sentido específico, no mesmo terreno real e no mesmo espaço imaginário das crônicas. Nelson Rodrigues praticou o ensaio à maneira de Montaigne. Um misto de memória, confissão, autoexame, palpite, relato sobre a realidade presente, tudo isso e mais alguma coisa. Mas sempre em uma levada que funciona, para o leitor, como um espetáculo dramático em escala pequena, é como se Nelson falasse mais para si, para o espelho, para sua própria consciência, sem desconhecer que estava, em cada um dos parágrafos, sendo visto pelo leitor, transformado em testemunha de um processo comovente e movimentado.

 

O reacionário

As datas dos livros de Nelson não podem ser ignoradas: 1967, 68, 70 e 77. Os três primeiros reúnem crônicas de fevereiro de 1967 a outubro de 1968 – o que equivale a dizer que foram escritos e circularam, em sua primeira encarnação, a de jornal, antes do fatídico AI5, promulgado em dezembro de 68 e responsável por um enorme recrudescimento da censura e das perseguições ao mundo cultural universitário e de esquerda.

Vale uma nota semiacadêmica: um texto de Roberto Schwarz que merece revisitação – a propósito, é Cultura e Política, 1964-1969, alguns esquemas, de seu livro O Pai de Família – foi escrito no calor da hora e constata a relativa hegemonia de esquerda no panorama cultural posterior a 1964 e anterior ao AI5: editava-se muito, discutia-se bastante, experimentava-se de todos os modos. (O mesmo Schwarz publicou em 2012 um ensaio de fôlego para analisar as memórias, por sinal também ensaísticas, de Caetano Veloso, saídas em 1997 com o título de Verdade Tropical: cenários, dilemas, posições políticas e estéticas, tudo ecoa ainda aquele período.) O mundo dos políticos profissionais estava desde abril de 1964 sob ditadura, mas o universo cultural a rigor só passou a tomar porrada mesmo na virada de 1968 para 69.

Naquele momento anterior ao AI5, se apresentaram na mesa alguns dados tão essenciais para o futuro do Brasil que por vezes se tornam invisíveis: a melhor geração da canção brasileira de todos os tempos, hoje na maturidade setentona, ali deu as caras, nos meios elevados da canção de protesto ou da Tropicália, mas também nos meios pop da Jovem Guarda e da música negra brasileira. Em teatro e cinema, outra era dourada, com escritores, encenadores, atores e diretores excelentes. Por seu lado, a tevê não sabia o que fazer direito ainda e a literatura parecia estar sentindo o golpe dos meios mais quentes de comunicação, o debate político corria solto, com forte presença de posições de esquerda, em particular no mundo universitário – em outubro de 1968 ocorreu o famoso Congresso da UNE em Ibiúna. Pois foi nessa especial esquina histórica que o ensaísta Nelson Rodrigues atingiu seu ponto de excelência no texto curto, nos três primeiros livros. O quarto traz já no título o rótulo que Nelson recebera – sem reclamação, e pelo contrário, com visível gosto – do mundo cultural, este em que a esquerda jogava de mão: reacionário. De fato, o cronista se identificava com os militares no poder e criticava a esquerda cultural, jornalística e universitária, não será por outro motivo que esse é um livro carregado de melancolia, bem mais sombrio, menos humorado que os anteriores. Há matizes, mas no centro é isso mesmo.

Voltas que o mundo dá: agora, sob Lula e Dilma, alguns comentaristas antiesquerdistas evocam Nelson Rodrigues em seu favor, como seu aliado ou álibi. Têm razão? Quanta razão?

 

O patético

Que eu saiba, ainda não foi feita uma leitura minuciosa das posições políticas de Nelson Rodrigues que estendesse na linha do tempo, em momentos específicos, as condições de seu inegável reacionarismo. O autor das presentes linhas, que se identifica politicamente com a esquerda reformista, enfrentou alguma cara feia quando decidiu escrever seu doutorado sobre a crônica de Nelson; por sorte, sempre teve a parceria de leitores de alto discernimento, em particular Aníbal Damasceno Ferreira. Uma conta assim poderia ajudar a posicionar com clareza a coisa.

Exemplos. Nos três primeiros livros de crônica, aparece já a posição anticomunista de Nelson, com clareza, mas ela sempre vem marcada por elementos que transcendem a conjuntura imediata, ou porque enfocam temas mais amplos (a arte de vanguarda séria versus a vida cotidiana, afetuosa; o paulista empreendedor e calado versus a cálida socialidade carioca; situações da memória familiar em contraste com a cultura exigente, etc.), ou porque fazem caricatura com certos tipos sociais (a grã-fina de inclinações esquerdistas que lê Sartre e Marcuse e entende pela rama, as elites sociais conformistas, o padre de passeata que se recusa a considerar a transcendência, o esquerdista que não corre riscos, porque vive no bar, bebendo, o intelectual subdesenvolvido, que tem medo de pensar autonomamente, o jovem endeusado pela avassaladora moda da época, entre outros), nos dois casos avançando comentários sobre a condição geral do País no Ocidente.

Em esquema: até o AI5, o ensaísta Nelson Rodrigues é sim antiesquerdista, mas o que mais ressalta em seu texto é algo de superior à política. Algo que combina humor e verve analítica, insights sobre a vida brasileira, em particular a do Rio de Janeiro (já ex-capital administrativa, mas ainda o centro da cultura letrada do País), mais alguma melancolia pessoal cifrada em reminiscências sempre duras, tudo isso mesclado a depoimentos de sua carreira de escritor. No campo estritamente político, ressalta uma clara intenção de diferenciar-se das posições comunistas: Nelson abomina a União Soviética (“um monumento de excremento e sangue”), a China e Cuba, ridiculariza os que levam a sério o exemplo de Mao e os que atendem ordens de Cuba, “uma Paquetá”. Isso tudo deriva, talvez, de uma questão espinhosa – Nelson exorciza o apavorante fantasma de sua geração, o pacto Hitler-Stálin, que, confessa, não teve coragem de combater em seu momento, em 1942, por conveniência e medo, medo que o maduro cronista desconhece, em 1967 e 68.

Já o que se lê no quarto livro, de 1977, é de outra ordem: reunindo textos que foram ao jornal entre 1969 e 74, este volume carrega uma amargura assustadora, nas antípodas de seu humor característico. Nele, o autor declara que saudou a intervenção militar desde o começo; defende Gilberto Freyre contra o ostracismo a que o relegou a esquerda; ataca a educação sexual e a psicanálise.

Mas também nesse volume, vamos encontrar uma constante, que estava já nos livros anteriores e não deixa de existir nem mesmo em seu mais apavorante reacionarismo: a defesa da liberdade artística, acima de tudo. Não aceita a censura, ele que foi uma vítima constante dela, ataca a prisão de Augusto Boal, em 1971, como havia saudado o ataque de Caetano à plateia, em 1968, e o lirismo de “Sabiá” no mesmo ano. Em uma palavra, em todo o momento, Nelson pratica, em sua crônica-ensaio, a defesa intransigente, de vez em quando patética (e alguma vez paradoxalmente combinada com a defesa do mando militar no País), da liberdade individual.

Colocado no mapa da tradição moderna ocidental cujo epicentro é a França, para o Nelson Rodrigues pensador, este que se expressa diretamente nesses preciosos textos, pesa mais a liberdade do que a igualdade e a fraternidade. E nisso ele é um dos grandes, porque sabe combinar a genuína defesa da condição individual, dele ou de qualquer cidadão autônomo, com a coragem para o autoexame e a autocrítica (em seus endeusadores atuais há algo disso?), tudo escrito numa linguagem que, bem, vou te contar. Nem vou te contar.

*Luís Augusto Fischer é autor, entre outros, de Inteligência com Dor – Nelson Rodrigues Ensaísta, livro originado de sua tese de doutorado pela UFRGS, vencedor do Prêmio Açorianos de Literatura 2010, na categoria Ensaio de Humanidades

 


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