Neste sábado (31), aconteceram duas das mesas mais esperadas de todo o Fórum das Letras. “Perfis biográficos: entre a realidade e o mito?”, com as presenças de Ruy Castro (biógrafo de Nelson Rodrigues e Garrincha, entre outras personalidades), Humberto Werneck (autor de um perfil de Chico Buarque e da biografia de Jayme Ovalle, entre outras obras) e Paulo Markun (que, entre outros, biografou o jornalista Vladimir Herzog, morto durante a ditadura); e “Memória reinventada”, com Edney Silvestre e o escritor bósnio Sasa Satanisic, ambos estreantes na ficção.
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Com Castro, Werneck e Markun o que se viu foi uma conversa entre amigos. O fato de os três já terem sido colegas de trabalho na época em que Humberto foi editor de Playboy e de volta e meia se encontrarem em eventos literários certamente fez com que a mesa fluísse de uma maneira muito agradável. Não que as outras também não tenham sido agradáveis, mas quando os autores se conhecem, o diálogo fica mais fácil, um não tem receio de afirmar algo que possa causar algum desconforto em outro. E isso permite que uma discordância momentânea se torne, em seguida, um novo assunto a ser comentado, sem ter a necessidade de o mediador intervir. O trabalho de quem media se torna mais fácil e o “debate” se torna mais interessante. Mas, óbvio, não é em toda mesa que isso acontece. O fato de eles serem alguns dos mais talentosos biógrafos brasileiros em atividade foi determinante para o sucesso da conversa.
Ao comentarem sobre o que um bom biógrafo deve ter, Ruy Castro fez menção ao livro O pai dos burros, um dicionário de lugares-comuns, de Werneck, e brincou dizendo que se deve ter uma “vasta cultura geral”, ou seja, saber de tudo um pouco, ter interesses pelas mais diversas áreas e conhecer, ao menos superficialmente, o biografado. Humberto Werneck complementou dizendo que foi justamente esta curiosidade que o levou ao jornalismo e, à la Gay Talese, disse que o biógrafo precisa “colocar o pé no barro”, “sair pra ver as coisas”. Falou-se, também, sobre o gênero perfil, que era mais praticado antigamente. Para Werneck, o perfil é o embrião da biografia. Mas Castro observou que o perfil, algo que ele mesmo já fez diversas vezes, por ser geralmente feito em tempo curto muitas vezes deixa informações importantes sobre o “perfilado” de fora. Então, é necessário um cuidado maior ao se escrever um, apesar de geralmente o tempo para escrevê-lo ser mínimo.
Outro perigo que envolve as biografias é o “fio da meada”. A depender de quem seja o biografado, é muito fácil o biógrafo, na ânsia de revelar o máximo possível, de contextualizar o tempo em que o retratado viveu, perder-se no meio de tanta informação. A observação, de Paulo Markun, foi muito pontual, e serve não apenas para quem escreve biografias, mas também para quem atua no jornalismo ou mesmo em outras áreas envolvendo a escrita.
Foi comentado, também, sobre a “indústria dos herdeiros”, que às vezes atrapalha os biógrafos muito mais do que ajudam. Ruy Castro foi incisivo: para não ter problemas com herdeiros, o biógrafo deve escolher alguém que tenha sido filho único, órfão, cujos pais também tenham sido filhos únicos, solteiro e “broxa”. Assim, ele não tem antepassados nem descendentes, e isso livraria o biógrafo de eventuais problemas. Claro, isso arrancou risos da plateia. Mas, em seguida ele retomou o tom sério e disse que é um tanto melhor se o biografado estiver morto há pelo menos dez anos, porque esse distanciamento temporal faz com que as pessoas se sintam mais à vontade para falar sobre as imperfeições do alvo da biografia e os herdeiros, quem sabe, estejam mais”?mansos”.
A mesa com Edney Silvestre (que fez aqui em Ouro Preto o pré-lançamento de seu belo romance Se eu fechar os olhos agora) e com o bósnio Sasa Stanisic foi também muito proveitosa. Mediados por Marcelo Backes, um dos melhores autores da nova geração brasileira e tradutor do livro de Stanisic, Como o soldado conserta o gramofone?, Edney e Sasa falaram sobre as coincidências entre seus livros, como, por exemplo, ambos terem crianças como protagonistas e também citarem o astronauta russo Iuri Gagarin. O que levou Edney a mencionar Gagarin foi o fato de ele, primeiro homem a fazer uma viagem espacial, representar o mundo novo que se descortinava na época em que seu romance é ambientado, início dos anos 1960. Já Stanisic, mais jovem que Silvestre, conheceu Gagarin em suas aulas de História, e desde então admira o astronauta. A citação é uma espécie de homenagem.
A questão da memória, assunto principal da mesa, remete à relação entre a realidade e a ficção, abordada nas conversas sobre biografias. Afinal, tanto Edney quanto Stanisic fazem uso de suas lembranças em seus livros. Stanisic com seu protagonista e família fugindo da guerra na pequena cidade de Visegrad e Edney com dois garotos de 12 anos no período de transição entre adolescência e maioridade em 1961, época de mudanças importantes em todo o mundo, que mudaria ainda mais no final da década (1968) e que faria os amigos de infância, agora já distantes geograficamente, perderem contato totalmente.
Duas curiosidades desta mesa: Edney Silvestre, que, entre outras coisas, é um excelente entrevistador de escritores, teve de resistir muito para não fazer perguntas a Sasa. Fez, se não perdi as contas, duas. A outra: é bom ver dois autores talentosos. O romance de Edney é mesmo muito bom, e o de Stanisic vem com o selo Marcelo Backes de qualidade.. É mais uma lição que fica para escritores, jornalistas e, enfim, todos nós.
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