A rebelião das classes médias e a crise política brasileira

Manifestação a favor do impeachment de Dilma na avenida Paulista - Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
Manifestação a favor do impeachment de Dilma na avenida Paulista – Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

As classes médias, ou boa parte delas, foram o epicentro da rebelião social contra o governo deposto de Dilma Rousseff. Nas ruas e nas redes sociais, multiplicaram-se as vozes e os panelaços a favor do impeachment da presidenta, e até pela volta da ditadura militar. A esquerda, sempre autocomplacente com suas virtudes na luta pela justiça social, ficou um tanto perplexa com o ódio espumante das “pessoas comuns”, donas de casa, profissionais liberais, altos burocratas de corporações privadas, comerciantes e (bem) assalariados em geral, incluindo até alguns funcionários públicos que já esqueceram como governos anteriores aos do PT os trataram. Para os grupos mais à direita desses novos rebeldes políticos, havia um governo comunizante (sic!) no País desde 2003, que inventou a corrupção em alta escala e se sustentou eleitoralmente por causa de uma espécie de “voto de cabresto” dos mais pobres que vêm recebendo alguma “bolsa” ou benefício. Obviamente, nessa argumentação um tanto delirante, sustentada até por colunistas de importantes órgãos de imprensa, vêm embutidos os velhos preconceitos que a classe média brasileira (do Sul e Sudeste maravilha, principalmente) sempre gostou de brandir contra pobres, negros e nordestinos, em geral. E como são argumentos que têm como base o ressentimento, não há debate racional possível. Até as boas e urgentes causas, como o combate à corrupção, se afundaram no mar de lama da intolerância e do reacionarismo, posto que foram mobilizadas contra os defeitos do petismo, para combater efetivamente suas poucas virtudes (apud Darcy Ribeiro, sobre a deposição de João Goulart em 1964), como as políticas sociais voltadas para as populações de baixa renda e as ações afirmativas, ainda que tímidas, em torno dos direitos civis e humanos.

É claro que nem toda crítica que se faz aos governos de coalizão encabeçados pelo PT são dessa natureza delirante, algumas até são críticas pertinentes de natureza política, e poderiam gerar um bom debate em outra conjuntura. Mas o fenômeno que me parece mais intrigante é que há um novo extremismo de direita que se ancora no ressentimento das classes médias, de estilo agressivo e jactante, que ganhou o espaço público e parte da imprensa conservadora. O ressentimento, vale lembrar, não precisa de fatos, mas de valores, e tem uma premissa básica: se os fatos estiverem contra os meus valores, pior para os fatos. Esse fenômeno parece arrastar, sobretudo em contextos eleitorais, até partidos de centro-direita “republicana”, que deveriam ser o lastro da racionalidade e da responsabilidade política, como quer ser o PSDB. A esquerda petista e não petista, acomodada com a autoimagem de ser a reserva moral contra uma sociedade injusta, contando com o óbvio apoio popular, não conseguiu assimilar plenamente esse fenômeno. Até a filósofa perdeu a paciência: “A classe média é uma merda!”, desabafou Marilena Chauí. Mas será que o ressentimento dessa classe não teria alguma base histórica ou causas estruturais que vão além do fato de esta classe ser uma “merda”?

No Brasil, aquilo que chamamos pelo genérico de “classe média”, aliás uma categoria sociológica um tanto fantasmagórica, sempre evocada e pouco definida, tem sua origem nos grupos profissionais que serviam às elites oligárquicas regionais. Profissionais liberais, pequenos e médios comerciantes, funcionários públicos de alto e médio estrato que na virada do Império para a República viviam à sombra das elites agroexportadoras de produtos primários. A diminuta classe média brasileira de então também se aproveitava da mão de obra baratíssima e abundante fornecida por ex-escravos e migrantes miseráveis que vinham do campo para trabalhar nos serviços domésticos. Nesse mundo patriarcal e oligárquico, cujas origens estão muito bem esquadrinhadas por Machado de Assis, o elitismo era a regra e o clientelismo uma necessidade. O Estado estava organizado para garantir o andar de cima e reprimir o andar de baixo. Para sermos justos, é preciso também reconhecer que foi no seio da classe média letrada que surgiram muitas vozes críticas ao mundo criado pela oligarquia, e que se expressavam pelos vários ismos dos anos 1920: tenentismo, comunismo, modernismo.

Muita água rolou no moinho da modernização brasileira ao longo do século XX, e a classe média se expandiu e se modernizou, tornando-se a base da sociedade de consumo a partir dos anos 1950 e 1960. Aos antigos profissionais liberais que serviam às elites juntaram-se altos e baixos assalariados do setor público e privado expandido, que pareciam depender pouco das oligarquias em crise. Entre o final dos anos 1950 e início dos anos 1960, o conjunto da classe média brasileira parecia cada vez mais sofisticado e progressista, até que as marchadeiras e os marchadeiros de 1964 mostrassem qual era a essência ideológica do núcleo duro desse segmento social, ao pedir o golpe civil-militar que derrubaria João Goulart. Mas o regime militar, em seu ocaso, não mais conseguia agradar à classe média que o inaugurou. Expandidos pela modernização, os setores assalariados médios viam seus rendimentos serem comidos pela inflação e pelo desemprego que veio na esteira do “milagre econômico”.

Assim, entre o final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980 parecia surgir uma classe média cada vez mais progressista e de esquerda, disposta a abraçar a democracia política e social de uma vez por todas. Uma parte das forças sociais que criaram o petismo veio dessa base social, em aliança com operários e camponeses organizados em movimentos sociais vigorosos.
Teria sido uma ilusão, um fogo de palha ideológico essa aliança democrática entre setores importantes da classe média e as classes populares em nome da radicalização democrática? Em algum momento esses setores mais à esquerda efetivamente redesenharam a cultura política conservadora e elitista das classes médias? Se não foi mero fogo de palha, em que momento da história pós-ditadura a classe média foi para a direita, mais ou menos extrema? Ou seu núcleo majoritário sempre esteve à direita, e só a esquerda não percebeu a tempo?

Vale lembrar que a classe média, na literatura da ciência política e da sociologia, sempre é apresentada como vocacionada para o centro político-partidário ou, no máximo, para um radicalismo reformista que não chegaria ao autêntico socialismo. Muitos autores liberais, por outro lado, destacam que a existência de uma classe média vigorosa é a chave para a estabilidade social e política que só o centro “democrático” do espectro partidário poderia fornecer às sociedades modernas. No caso brasileiro, essa dupla função histórica da classe média, base de uma democracia moderna que pudesse assimilar um reformismo mais ou menos moderado e inclusivo socialmente, parecia consolidada na transição política da ditadura para a democracia. Penso que essa configuração se sustentou até meados dos anos 1990 e suas expressões partidárias eram o PT e o PSDB de então. Mas, sintomaticamente, esses dois partidos nunca conseguiram estabelecer uma “concertación” à brasileira que fosse a base para a reforma do sistema político e da sociedade. Ambos, uma vez no poder do Estado nacional, realimentaram as forças partidárias arcaicas, conservadoras e fisiológicas que, ao fim e ao cabo, diluíram o vago liberalismo tucano e o igualmente vago socialismo petista. Ao que parece, ambos os partidos que prometiam modernizar a sociedade brasileira não tinham nem força política, nem abrangência nacional, nem estratégia eficiente para superar as mazelas do nosso sistema político e da nossa cultura política fisiológica e autoritária. Sob esses governos, as classes médias se expandiram e se diversificaram.

Se a classe média ligada ao funcionalismo público se rebelou contra o governo tucano da era FHC, a classe média rentista se rebelou contra o governo Dilma. O governo Lula representou uma breve acomodação política e material entre os interesses dos vários segmentos das classes médias e as demandas das classes populares, mas não conseguiu se tornar sustentável enquanto política de Estado, por motivos que escapam aos limites deste artigo. A ruptura entre PSDB e PT, que se aprofundou a partir de 2005, quando os tucanos perceberam que os petistas tinham vindo para ficar e Lula era um sucesso de público e crítica, abriu uma fenda histórica nas principais forças que lutaram contra o regime militar. Foi por essa fenda que exalou todo o conservadorismo recalcado das classes médias brasileiras, estimulado por grandes interesses econômicos ainda pouco mapeados, mas que também se alimentou de mudanças socioeconômicas estruturais ainda pouco assimiladas.

As mudanças na estrutura produtiva do capitalismo mundial a partir dos anos 1990 fizeram crescer a classe média rentista, o pequeno empreendedor e o trabalhador-empresário (aquele que tem que se transformar em pessoa jurídica para ter emprego em uma grande corporação). Ao lado da antiga “pequena burguesia” e dos profissionais liberais, arrisco dizer que esses grupos constituíram a base do antipetismo radical e deram uma guinada à direita à medida que as mazelas morais da esquerda, reais e inventadas, eram expostas diariamente pela grande mídia.

Além disso, vale lembrar, a classe média assalariada no Brasil tem sido submetida a uma dupla pressão econômica. Por um lado, é a base social da arrecadação de impostos que incidem pesadamente sobre os salários; por outro, não pode contar com serviços públicos gratuitos de boa qualidade, tendo que pagar (muito) por serviços privados de saúde, educação e transporte.

Sob os governos petistas, a alta classe média viu o acesso dos seus filhos à universidade pública, um dos poucos serviços públicos que ainda se mantêm de boa qualidade no Brasil, ao qual tinha acesso privilegiado, ser dividido com cotistas raciais e sociais. Ao mesmo tempo, a ampliação da classe média consumidora criou uma pressão por serviços privados e bens de consumo que antes eram voltados para poucos, e que na era Lula passaram a ser disputados pelos novos assalariados recém-ingressantes no mercado de consumo. Completando o quadro de pressões materiais e simbólicas sobre as classes médias, a ampliação dos direitos trabalhistas a trabalhadores que tradicionalmente vendiam sua força de trabalho à classe média sem nenhum amparo legal (como as empregadas domésticas) demonstrou que o mundo do patriarcado clientelista que a moldou não mais se sustentava.

A partir de 2013, a somatória dessas pressões se transformou em uma rebelião política contra o governo em geral. As Jornadas de Junho, que começaram com um protesto da nova esquerda jovem, na verdade foram o début da velha-nova direita, numa operação lancinante de oportunismo político por parte dos grupos conservadores que roubaram a cena. Uma mistura confusa e difusa de antipolítica e antigovernismo, com toques de anarquismo juvenil, se somou nas ruas à antiga cultura política autoritária e antirreformista das classes médias brasileiras. Dentro do sanatório geral que passou, obviamente, havia uma divisão clara nos protestos, mas o bônus político de médio prazo foi menos para a esquerda do que para a direita. Em outras palavras, a partir de 2013, paradoxalmente, a direita se percebeu como massa, lançando as bases para a tomada das ruas em 2015, que contaminou o sistema político e culminou na deposição de Dilma Rousseff.

Os autores marxistas não gostam de acreditar no protagonismo real das classes médias, sempre vistas como tropa de choque da burguesia, esta sim o verdadeiro ator político por trás da boca de cena. Talvez haja muita verdade nisso, mas no mundo real e pragmático da política não se pode menosprezar a classe média como caixa de ressonância de projetos ideológicos e políticos que, muitas vezes, não nascem em seu seio. O fato é que sem uma classe média progressista, dificilmente um projeto efetivo que alie democracia, modernização sistêmica e justiça social poderá se sustentar no espectro político-partidário brasileiro, para júbilo dos autoritários e fisiológicos de agora e de sempre.


Comentários

Uma resposta para “A rebelião das classes médias e a crise política brasileira”

  1. Eu tenho a sensação difusa que o artigo se perde no final. 2013 deu espaço pras manifestações de 2015 contra Dilmão? Certeza. Mas eu acho que foi mais e maior que isso. Se deu espaço para este renascimento à direita – coisa que vemos no mundo inteiro, não canso de notar – também deu espaço para organizações “horizontais”, como a gente gosta sempre de falar em alguns grupos.
    Junto com as iniciativas “hackers”, que divulgam novos usos para dados abertos, visualizações de gastos e usos de espaços públicos, pressões para abrir mais lugar para pessoas nas cidades, vejo pontinhas de esperança no cenário.
    De todo jeito, 2013 tem uma lição importante: ocupar a rua, sempre, apesar da PM assassina.

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