Dom Pedro Mourão, bispo da Diocese do Alto Cristalino sabia que São Sebastião do Alto era uma cidade de jovens migrantes. Povo valente que veio do sul para plantar o futuro. Era uma ilha de gente, num imenso mar de soja. Sabia que a cidade se deixara levar por sua juventude e sua riqueza. Sabia também que dinheiro e hormônios não combinam com temperança. São Sebastião, tão pequena, trepidava.
O que Dom Pedro não sabia é que a alma do padre Borelli, a quem indicara para cuidar da paróquia, não harmonizava com combate à luxúria. Se, no momento da indicação, prestasse atenção nas pálpebras do padre, teria notado que tremiam à medida que ouvia sobre a lascívia que embebia o tecido social da paróquia. Teria notado que o cura abaixava a cabeça em pungente contrição. Mas, bispos não prestam atenção nessas coisas e padre Borelli foi para São Sebastião.
Chegou num sábado e logo na madrugada de domingo ouviu a turba ao longe. Ritmada, urrava: é hoje só, só, só; vai acabar já, já; aproveita macacada que amanhã não tem mais nada! Ficou assustado, mas logo voltou a dormir. Pensando na vida.
No princípio a cidade ficou intrigada com o padre. Não por seu tipo siciliano discreto. Nem por sua voz, que sinalizava indulgência. Mas pelo que deixava sobre sua mesa: um crânio com a inscrição eu fui o que tu és e tu serás o que eu sou. Era seu memento mori, estas coisas simbólicas que, desde Roma, nos lembram que haveremos de morrer e assim nos advertem sobre o viver. Era esta a explicação que oportunamente dava aos que a ele vinham. Mas, é difícil fazer jovens verem que haverão de morrer e, mais ainda, que a morte deve balizar seu viver, pelo temor às punições.
Com paciência, pe. Borelli foi se inteirando das coisas. No confessionário foi conhecendo a tal lascívia que embebia o tecido social. Ouvia tudo sereno mas, nos temas lúbricos, não resistia. Espreitava pela treliça do confessionário. E assim o calor da cidade foi subindo por suas pernas e, para seu desespero, começou a lhe pegar as gônadas.
Constatou que aquele crânio sobre sua mesa era pouco para segurar o devasso rebanho. Como tinha sido pouco para segurar a si próprio, haja vista o filho que deixara em Dourados.
Assustado com tudo aquilo, anunciou que mandaria entalhar uma grande Dança Macabra, a alegoria medieval em que esqueletos dançam de mãos dadas rumo ao cemitério. Nela, estão representados todos os segmentos da sociedade, desde o peão até o prefeito, indignou-se no sermão. Lembrará a todos nós que do pó viemos e ao pó tornaremos, exaltou-se. Pagaremos, todos, após a morte, o que aqui cometermos, qualquer que seja nossa posição social, nosso ofício, nosso dinheiro, encerrou forte, sempre amargurado por sustentar seu filho com o dinheiro da Igreja.
A idéia foi boa. Pe. Borelli esperou alguns meses por resultados, mas nada mudou em São Sebastião. Nada. A Dança Macabra efetivamente não assustou ninguém.
Pe. Borelli então foi mais longe. Deixou escapar a ameaça de que o entalhador retrataria a feição dos grandes pecadores. Aí sim, o padre passou da conta. A iminência e a inevitabilidade de uma dura sentença só fizeram aumentar a devassidão. Foi assim na Peste Negra e foi assim em São Sebastião. A volúpia recrudesceu. Pecaram muito mais e confessaram muito menos. Para desespero do padre, que já havia incorporado a picância do confessionário ao cotidiano de sua vida gris.
Pe. Borelli passou então à reflexão. Foram três semanas até a iluminação. Decidido, guardou o memento mori, descartou a Dança Macabra e não tocou mais no assunto.
São Sebastião então pegou fogo e o pe. Borelli ardeu junto. Mas, desta vez não teve filho. Graças à Providência, que o levou a tomar suas providências, considerava o padre sempre em reconciliação.
*Marcos Rodrigues é engenheiro civil pela Escola Politécnica da USP, PhD pela University of Cambridge, Inglaterra. Desde 1990 é Professor Titular da Poli – USP, na área de Informações Espaciais. Dedica-se também à literatura
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