Reconhecimento tardio de um grande contista

Muitos dos principais autores hispano-americanos são desconhecidos, ou qua-se, do leitor brasileiro. A grande difusão de obras produzidas nos anos 1960 – época do chamado boom na literatura do continente – foi importante para tornar conhecidos entre nós Carlos Fuentes ou Gabriel García Márquez, por exemplo. O carrossel das editoras brasileiras, com raras exceções, passou a privilegiar seus livros e provocou o efeito perverso de obscurecer autores decisivos que não se afinavam, no tempo, no estilo ou na ideologia, com os escritores do boom. Dessa forma, demoramos muitíssimo para ler traduções nacionais do ótimo uruguaio Felisberto Hernández ou os impressionantes contos de Julio Ramón Ribeyro – como os que constam da antologia Só para Fumantes.

Ribeyro nasceu no Peru, em 1929 e seu primeiro livro saiu em 1954 – Los Gallinazos sin Plumas, cujo conto-título, traduzido por Urubus sem penas, já indica algumas das vertentes pelas quais o autor caminharia. Lá estão os personagens desaprumados, sintomas do crescimento urbano do Peru daquela década e dos desníveis sociais cada vez mais notáveis no tecido peculiar das cidades expandidas. O olhar manifesto nos contos atesta o fato – sabido, mas tantas vezes negligenciado ou subestimado – de que o crescimento econômico pode trazer sequelas e deixar alguns de seus personagens à margem.
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A criteriosa antologia, organizada e bem traduzida por Laura Janina Hosiasson, percorre a obra inteira de Ribeyro (morto em 1994) e recolhe indícios fortes dessa atenção contínua por homens e mulheres à deriva numa época de efusividade – homens e mulheres não sincronizados com a celebração do progresso. Na contramão do empenho identitário e do impulso épico que marcou boa parte da ficção hispano-americana dos anos 1960 em diante, o registro narrativo de Ribeyro valoriza as tensões cotidianas e os dramas íntimos, tantas vezes mais fundos que uma revolução, tantas vezes mais densos que a evocação de um passado mítico. Mostra o homem sozinho, sem mistificação.

O recurso ao conto e à sua capacidade de conciliar histórias diversas, explícitas ou subterrâneas, em um mesmo texto e de forma breve intensifica a angústia do leitor que acompanha as trajetórias precárias de humanos que se divisam com animais, que partilham horas mortas ou não ultrapassam o umbral do passado que atormenta, do presente que paralisa, do fracasso iminente – espelho do futuro. A perspectiva realista de Ribeyro combina o repertório temático e a expressividade do cinema e da literatura neorrealista italiana com a guinada subjetiva de Proust ou Faulkner para produzir uma espécie de estética da derrota e, dela, extrair e expandir um sentido político que não aceita saídas salvacionistas.

Longe do esforço – levado adiante por tantos autores do boom, em uma entonação que hoje soa algo ingênua – de caracterizar os passos da redenção nacional e continental, Julio Ramón Ribeyro expõe a face crua do fracasso e do ridículo, deixa seus personagens à mercê da “velha ordem enigmática, repleta de hábitos aberrantes”, os situa em espaços tão importantes quanto incontroláveis, sintetiza diversos olhares em uma só perspectiva. Sabe que, afinal, em pleno quadro de modernização acelerada, é a precariedade que se impõe.


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