Recém-instalado na linha divisória que separa ou une – as opiniões divergem – a planície da Pompeia das montanhas das Perdizes, em um final de tarde desse último inverno paulistano, eu me reencontrei com a alma da cidade onde nasci e cresci, depois de um hiato de quase 25 anos de exílio, usando o veículo favorito da minha infância. Informado por amigos sobre uma alternativa apropriada para ciclistas, tanto de meia-idade, quanto de meio de semana, rumei direto para a enorme ciclovia, até então desconhecida por mim, disposto a fazer um reconhecimento minucioso dessa Pauliceia Desvairada da minha maturidade, a partir de um logradouro pouco frequentado por seus habitantes: as margens do Rio Pinheiros.
Passadas algumas semanas do choque propiciado por essa aventura, mesmo agora tenho de admitir que nada nem ninguém poderia ter me preparado para a surpreendente visão de São Paulo, que se descortinou ao longo desse suposto curso de pobres águas mortas e há tanto tempo desprezado por seus conterrâneos. Ao longo dos 40 km que permitem ir da ponte da Cidade Universitária até os confins de Interlagos e voltar, uma cidade bem diferente daquela que conheci me recebeu, novamente, de abraços abertos, ávida por contar alguns de seus mais íntimos segredos, mesmo sem deixar de expor todas as suas mazelas, como uma amiga querida que há muito não nos vê e sente, angustiada, ter pouco tempo para nos por a par de tudo que ocorreu na nossa ausência. Por duas horas, acredite se quiser, esse Pinheiros combalido, fedido, decorado acintosamente com toda a sorte de detritos, dejetos e desmandos, mais parecia um Sena, um Tiber, um Tâmisa, dada a singeleza com que ele me guiou, ainda que meio sem jeito e claramente envergonhado por seu estado de abandono, por uma cidade que eu não conhecia. Foi percorrendo a ciclovia vazia, à luz de um inesquecível pôr-do-sol paulistano, que fui deixando para trás quilômetros e quilômetros de trânsito engarrafado na autoestrada que ladeia o mesmo rio, ora sendo ultrapassado por trens apinhados de gente até o último bóson disponível, ora seguindo os rolos de fumaça que anunciavam mais um do meio milhar de incêndios de favela que permanecem inimputáveis. E, de repente, me deparei com aquele que indubitavelmente deve ser o grupamento social mais feliz da cidade, porque mais bem aquinhoados pelas (ou falta de) políticas públicas do último prefeito de São Paulo. Sem a menor inibição, desfrutando do mais irrestrito dolce far niente, um bando de capivaras, ostentando ótimo estado de saúde e excelente bom humor, surgiu do nada e tomou conta da paisagem ao redor. Dispersas pelas amplas margens do rio que muitos já rotularam como incompatível com qualquer forma de vida, as capivaras desfrutavam dos últimos fótons da tarde, socializando numa algazarra em câmara lenta, típica de roedores com mais de 60 kg e incisivos de respeito, espalhadas por uma enorme área de lazer privada, farta alimentação e muito tempo para gastar filosofando sobre o que realmente importa na vida.
Foi nesse momento que, como exilado recém-chegado à cidade, eu me dei conta de que o prefeito de São Paulo, bem como seu predecessor, deve ser membro do Partido do Bem-Estar das Capivaras, o famoso PBEdoC. Afinal, qualquer ciclista imparcial que tivesse seguido o mesmo percurso não hesitaria em rotular aquele mundo às margens do Pinheiros, em um final de tarde idílico no planalto de Piratininga, como um verdadeiro paraíso. Infelizmente, até o momento, restrito apenas àquele bando de roedores sortudos.
Que, a partir dessa eleição histórica, outros milhões de mamíferos que habitam essa megalópole apaixonante também tenham acesso a todas as oportunidades para construir e desfrutar da sua própria felicidade. Está mais do que na hora de São Paulo deixar de ser apenas o Nirvana das capivaras!
*Paulistano e palmeirense de nascença, é professor titular de Neurobiologia, codiretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke, na Carolina do Norte (EUA), e idealizador e diretor do Instituto Internacional de Neurociências Edmond e Lily Safra em Natal (RN). Faz parte do Conselho Editorial da Brasileiros.
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