Com seis álbuns lançados nos últimos quatro anos (leia discografia comentada no box abaixo), o cantor e compositor Negro Leo segue obcecado em desestruturar e reorganizar estatutos de nossa canção. Sem bandeiras, mas com o propósito latente de dar continuidade à chamada linha evolutiva da música popular produzida no País (tese defendida por Caetano Veloso para chancelar a proposta modernizante da Tropicália), Leonardo Campelo Gonçalves, nome de batismo do artista nascido em Pindaré-Mirim, no Maranhão, e radicado na infância no Rio de Janeiro, é personagem ímpar. Formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, a música, no entanto, é seu principal campo de pesquisa.
Multifacetado, tanto nas letras quanto na escolha dos parceiros e dos arranjos, ele incorpora elementos das chamadas alta e baixa cultura sem o menor receio de ser submetido a qualquer forma de patrulhamento estético. Seguro de si, une guitarras dissonantes a baterias ruidosas, melodias grudentas a cacofonias, com o mesmo ímpeto que constrói harmonias sutis e texturas oníricas para, depois, fazer o ouvinte mergulhar em atmosferas caóticas.
O convívio com Ava Rocha – filha de Glauber Rocha e outra grande expressão de nossa música contemporânea, com quem Leo tem uma filha, a menina Uma, que completa 4 anos nesta quarta-feira (23) –, para além da dimensão afetiva, também resulta em parceria artística poderosa e bilateral, como comprovam as fichas técnicas dos discos de ambos, repletas de composições de Leo para Ava e de Ava para Leo. Não por acaso, na ocasião em que esta entrevista foi feita, num pingue-pongue de e-mails feito no final de outubro, o casal estava em Bogotá, onde participava de uma residência artística com a finalidade de produzir um novo álbum, em parceria com a banda local Los Toscos.
A seguir, Negro Leo explica qual é a dele.
CULTURA!Brasileiros – Com que idade você saiu de Pindaré-Mirim e foi para o Rio de Janeiro? Como era a vida no Maranhão e como foi a transição para o Rio?
Negro Leo – Vim para o Rio antes de completar 2 anos de idade. Minha memória de Pindaré-Mirim, durante anos, foi toda inventada por minha mãe, Lindomar, e pela convivência com meus tios no Rio. Com 21 anos voltei lá pela primeira vez, sozinho, fiquei três meses, conheci todos os ecossistemas do estado e todos os familiares espalhados. Foi uma aventura.
Houve influência de sua família para o despertar de seu interesse pela música? Como se deu a mutação do ouvinte para o criador musical?
Minha mãe tinha discos incríveis em casa. Lembro agora de Roberto Carlos, The Commodores, Beatles, trilhas de novela, Diana Ross, Michael Jackson, Jackson Five, etc. Ela foi minha segurança e sempre me incentivou. Comprou todos os instrumentos que não logrei aprender. Meu pai, Jorge, é de Manguinhos (bairro suburbano da zona norte do Rio de Janeiro) e com ele veio a festa, o primeiro contato com a favela, com a pobreza dura dos anos 1980, o pagode, Vila da Penha, Carnaval. Ele profanava o universo mais católico de minha mãe. Minha convivência muito cedo em Manguinhos, onde minha avó, Sebastiana, morreu quando eu tinha 8 anos, marcou indelevelmente meu caráter. Quando, nos anos 2000, comecei a frequentar bailes de favela, soube que o combate ao tráfico de drogas ali era parte de um projeto genocida do Estado. A repressão às drogas no Brasil é focada no tráfico de varejo, que acontece nos bolsões de pobreza. O episódio do Helicoca (a apreensão de 443 quilos de pasta base de cocaína em um helicóptero aterrissado em uma fazenda do senador Zezé Perrella -PTB/MG) mostra indubitavelmente porque políticos se empenham no discurso conservador de combate às drogas.
“A música no Brasil sempre foi um veículo de construção da realidade. Nossa primeira universidade veio muito depois de Pelo Telefone, de Donga, ou de A Cocaína, de Sinhô”
Você chegou a atuar profissionalmente em sua área de formação? Em que aspectos a experiência acadêmica contribui para sua produção artística?
Sim, como bolsista, realizei algumas pesquisas, mas sempre fui menor aí. Vejo minha formação mais concretamente ligada ao período escolar no Pedro II (tradicional colégio da rede pública federal, sediado no bairro de São Cristóvão, no Rio de Janeiro). Ali aprendi a transitar por classes sociais, conheci meu compadre Jefferson Plácido, basicamente o único amigo daquele período, quem me apresentou um mundo novo de música, manguebeat, punk-rock, etc. Creio que foi ele que me levou a um palco pela primeira vez. A UFRJ foi o desbunde: chá de cogumelo, Carnaval em Santa Teresa, banho de cachoeira pelado, em um meio em que quase não havia negros, quase todos playboys com pouca ou romantizada vivência em classes populares, máquinas desejantes com o dom de sonhar.
Como aconteceu sua aproximação com Ava e o início de suas parcerias?
Primeiro eu conheci a música de Ava. Um amigo tentou nos aproximar, conversamos bastante por e-mail, a convidei para gravar voz numa música que eu tinha feito para o filme As Figurantes, de Luiz Rosemberg Filho, e nos apaixonamos. Sempre trabalhamos juntos nos bastidores, mas cada um sabe o que é seu.
Que distinções há entre seu trabalho e o dela?
Quase nenhuma, exceto as que sabemos nossas. Trabalhamos com as mesmas pessoas, os mesmos amigos, transitamos nos mesmos lugares, estamos sujeitos às mesmas dificuldades, assistimos ao processo criativo um do outro, criamos uma filha e moramos juntos num apartamento de 40 metros quadrados. Tudo em prol da coesão. Ela, assim como eu, um dia acorda doce, no outro fel, e é essa a dinâmica das nossas vidas. No trabalho é igual. Ela faz canções para mim, eu para ela, mas cada um veio de um lugar e talvez isso faça alguma diferença.
“Detesto ser chamado de neotropicalista a cada novo lançamento. Nossa imprensa tem um horizonte mesquinho, paternalista e limitador”
Como é dividir as contingências familiares – casamento, paternidade – com os compromissos musicais? Aliás, qual foi o impacto de ser pai para sua produção artística?
Fui pai aos 29, quando minha energia juvenil já estava em declínio. Prolongar a mesma energia dos 20 nos 30 seria trágico, então a criança veio em boa hora. Nunca compus tanto, porque nunca tive tanto tempo em casa. Conforme disse há pouco, moramos num apartamento de 40 metros quadrados. Um casal com sete anos de relacionamento e uma criança precisa amar muito para conciliar individualidades e idiossincrasias num espaço tão pequeno.
Como você definiria o que faz? Você tem a preocupação de dar a elementos como letra, melodia, harmonia e ritmo um aspecto de unidade?
Faço canção popular e não estou exatamente interessado na superação disso, embora considere importante a introdução progressiva de “maldade” nesse universo. A música no Brasil sempre foi um veículo de construção da realidade, e não de leitura e interpretação da mesma. A primeira universidade brasileira (a USP, de 1934), veio muito depois de Pelo Telefone, de Donga (1916), ou de A Cocaína, de Sinhô (1923). Então eu me considero, humildemente, parte desse precário operariado chique. Meus discos são unidades rígidas formalmente, e as letras acabam encontrando esse espírito. Uma estratégia do neoliberalismo foi fomentar diferenças onde havia lutas identitárias. Onde havia camponeses, hoje há quilombolas afrodescendentes, indígenas em processo de etno-gênese, diferenças das diferenças, lutas minoritárias que complicam a compreensão, por exemplo, do fenômeno neo-pentecostal na América do Sul. Meu próximo trabalho, Meu Reino Não é Desse Mundo, será uma tentativa de “solução brasileira” a partir de uma nova exegese dos textos bíblicos para as liberdades individuais e diferenças minoritárias num País cada vez mais fundamentalista.
No início deste século não foram poucos os teóricos e compositores que falaram sobre o suposto fim da canção, até Chico Buarque versou sobre o tema. Isso faz sentido para você? Qual é o papel da canção e do conceito de álbum em um tempo em que os ouvintes têm cada vez mais o hábito de ouvir música de forma fragmentada?
Chico disse que a canção que ele havia ajudado a construir tinha deixado de existir, enfocando mais precisamente o rap. Mas o funk carioca, com suas repetições exaustivas, seus sampleadores e mensagens explícitas de sexualidade nas favelas, onde a presença do Estado é a força policial e a violência tem um aspecto quase redentor da pobreza, construiu algo mais forte, potente e afirmativo que qualquer música em qualquer tempo no Brasil. O funk carioca é a expressão mais rica de onde se vive conforme se canta.
“Estamos vivendo um golpe de estado e já não é demais falar em ditadura. A urgência maior é lutar contra o governo Temer”
Algumas resenhas que li classificam Água Batizada como um trabalho que dialoga com certos elementos pop. Você concorda com essa análise? Você, que é um artista de estética multifacetada, lida com rótulos e gêneros de que forma?
Água Batizada foi o disco que mais deu trabalho, o mais bem acabado, o único que envolveu uma produção mais complexa, e é justo que ele seja catalogado como pop, porque todo investimento no disco foi nesse sentido. A única coisa que eu detesto é ser chamado de neotropicalista a cada lançamento. A nossa imprensa tem um horizonte mesquinho, paternalista e limitador, “isso me lembra aquilo”. A estrangeira também me chama de neotropicalista, mas age de forma diferente porque esses não são os fantasmas deles. Então, para mim, a ignorância deles é mais cândida.
Em tempos de retração conservadora no País – vide as vitórias de Crivella e João Doria para as prefeituras do Rio e de São Paulo –, a música popular pode ainda ser frente de resistência?
Acho João Doria muito pior que Crivella. As igrejas chegaram com sua rede de proteção social onde a esquerda descuidou. Se Crivella cuidar materialmente da população que o elegeu, me dou por satisfeito, mas também acho que a disputa que pode assegurar as liberdades individuais tem que ocorrer no terreno religioso. Agora, que destruíram a força da esquerda institucional e do único partido popular de esquerda, o PT, penso que neste País, que tem um quarto da população evangélica, quem for se meter com política vai ter que disputar a interpretação dos evangelhos, trazê-la para a política e esquecer o Estado Laico. Não sei até onde a música pode ser frente de resistência, mas sei que é preciso pregar uma nova onda nos trens da Supervia, nos ramais Japeri, Belfort Roxo e Santa Cruz. Estamos vivendo um golpe de estado e já não é demais falar em ditadura. A urgência maior é lutar contra o governo Temer.
Para concluir, gostaria que você falasse sobre o projeto que está tocando agora com Ava em Bogotá…
Estamos gravando um disco com a banda Los Toscos, no estúdio Matik Matik, e Thomas Harres (baterista e percussionista, também músico da banda de Ava Rocha e da Abaoymi Afrobeat Orkestra) também veio somar. Leticia Brito, que é sua namorada e minha produtora, também veio para uma feira internacional de música em Medellín. Estamos em família gravando um disco e, de quebra, aprendendo a língua.
Discografia comentadaConvidamos Negro Leo para registrar impressões sobre seus seis álbuns. Leal com seus |
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The Newspeak (Independente, 2012) É um disco lento, com harmonias obscuras e arbitrárias. Passei seis meses compondo as seis canções do disco, de temática catastrofista e que basicamente dizem: “Não haverá salvação”. Com Vitor Barros, guitarra, Daniel Fernandes, bateria, e Pedro Dantas, baixo. |
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Ideal Primitivo (Independente, 2012) Gravado ao vivo, foi meu primeiro contato com músicos que influenciariam meus discos a partir daí. Foi nele que me aproximei do Quintavant (coletivo de artistas que também mantém a gravadora QTV), Audio Rebel (casa de shows no Rio de Janeiro), a banda Chinese Cookie Poets, DEDO (coletivo multimídia baseado no RJ) e do Cadu Tenório (músico experimental carioca). Com Chinese Cookie Poets, Thomas Harres, Maurício Calmon e Daniel Fernandes, bateria, Caetano Salles, baixo, Felipe Ridolfi, mixagem, Iuri Nicolsky, sax contralto, Gabriel Ballesté e Pitter Rocha, guitarra. |
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Tara (Independente, 2013) Foi gravado na Tijuca, no quarto de Thomas Harres. Soa lo-fi com sexo. Com Thomas Harres, bateria, Marcos Campello, guitarra, e Pedro Dantas, baixo. |
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Ilhas de Calor (QTV, 2014) É um delírio completo. Reminiscências da infância, da juventude, situação geopolítica, caldo de cultura. Foi composto a partir de sessões de improvisação. É o disco que mais gosto. Com Eduardo Manso, guitarra, Felipe Zenícola, baixo, e Thomas Harres, bateria. |
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Niños Heroes (QTV, 2015) É a continuação de Ilhas de Calor. Usamos os mesmos procedimentos, os textos são igualmente caóticos, mas ele tem uma atmosfera política mais contundente. Com Felipe Zenícola, baixo, Thomas Harres, bateria, e Eduardo Manso, guitarra. |
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Água Batizada (Rock It, 2016) É o disco mais bonito, mais doce e otimista em que estive metido. Foram seis meses de gravação, como se fazia antigamente, e também é o primeiro vinil da minha vida. Estou muito satisfeito com o resultado. Com Eduardo Manso, guitarra e piano, Estevão Casé, sintetizador, Domenico Lancellotti e Marcelo Callado, bateria, Pedro Dantas e Bruno di Lullo, baixo, Bruno Schiavo, violão, Roberto Pollo e Ricardo Dias Gomes, órgão. |
MAIS
– Ouça a discografia, compre os álbuns e saiba mais sobre Negro Leo na página oficial do músico
– Ouça abaixo, no canal do Youtube da gravadora RockIt, o álbum Água Batizada