Júlio César Prado Pereira de Souza era para nem ter nascido. Com esse heráldico nome de senador, o nosso personagem acabou não só sobrevivendo ao parto que os médicos desaconselharam, como se tornou valente jogador de futebol, campeão paulista nos tempos da “Democracia Corinthiana”, comandada por Sócrates nos anos 1980 do século passado.
À minha frente, na modesta sala de visitas de uma casa térrea com dois quartos, sala, cozinha e banheiro, próximo ao cemitério de Campo Grande, na periferia da zona sul de São Paulo, encontro agora um senhor de 49 anos, pai de Leandro, 11, de quem ele cuida com carinho – um brasileiro que já passou por tudo e mais um pouco, ficou completamente surdo depois de parar de jogar futebol e agora está cheio de planos na vida.
O entusiasmo dele é tanto, que começa a falar muito e alto antes mesmo que lhe faça a primeira pergunta – até porque, como ele não ouve, não tem jeito de perguntar. Júlio César aprendeu a fazer leitura labial, me informaram quando marquei a entrevista, mas minha dicção não ajuda muito. Ainda bem que sempre preparo um roteiro quando vou entrevistar alguém. No caso dele, nem precisava. Ansioso para falar, dá uma rápida olhada no papel, coloca-o de lado e, já sabendo o que eu quero, começa a me contar sua incrível história de vida como foi desde o começo.
A família paulistana tinha ido morar em Viña del Mar, no sul do Chile, no começo da década de 1960, por conta do trabalho do pai, o publicitário Edison Pereira de Souza, que estava no Estádio Nacional de Santiago quando o Brasil conquistou o bicampeonato mundial em 1962. Logo depois, a mãe, dona Odette Prado, ficou grávida novamente (ela já tinha um filho de 3 meses). Nos exames pré-natal, os médicos constataram deficiência de cálcio no seu organismo para formar os ossos da criança. E deram-lhe a sentença:
– A senhora não vai poder ter esse filho. A senhora vai ter de fazer um aborto.
E o aborto foi marcado para dali a 15 dias. Quando Odette já estava em cima da maca para tomar a anestesia, comunicou ao médico:
– Eu não vou fazer este aborto, vou enfrentar a situação.
A mãe fez um severo tratamento à base de cálcio e Júlio César acabou nascendo em setembro de 1963, sem nenhum problema de saúde. Também ele começou a tomar cálcio e foi isso, muitos anos mais tarde, que o faria perder a audição, como veremos mais adiante.
Quando tinha 2 anos, um terrível terremoto no Chile levou a família a voltar ao Brasil. Foram morar em Pirituba, na Grande São Paulo. Em sua casa, ninguém ligava para futebol e o menino nunca tinha tocado em uma bola, mas na conquista do tricampeonato do Brasil no México, em 1970, a festa foi tão grande que Júlio César descobriu a sua vocação.
– Naquela hora eu me perguntei: “Meu Deus do céu, o que é isso? É mágica! Eu quero aprender a fazer isso”. Falei para o meu pai: “Eu já sei o que vou fazer quando crescer. Eu vou ser jogador de futebol”.
Júlio César passou a jogar bola todos os dias com a molecada da rua em um campinho no alto do morro perto da sua casa. Na mesma época, ganhou um violão.
– Eu adorava música. Então, eu passava o dia com a bola no pé e a noite com o violão na mão. Um dia, meu pai entrou no quarto ao meio-dia, eu ainda estava dormindo, e ele falou: “É assim que você quer ser jogador de futebol? Dormindo até meio dia?”. Acho que ali foi o marco da minha determinação que levo até hoje.
A partir dessa bronca, o futuro craque passou a acordar às 7 da manhã. Já saía de casa com a bola no pé, mas tinha de treinar sozinho, chutando a bola na parede, na porta da garagem, inventando dribles em ninguém, porque os outros meninos continuavam acordando tarde. Na escola, jogava até na hora do recreio no pátio com uma tampinha de refrigerante. Até que um dia, a Portuguesa de Desportos começou a treinar em um gramado do Centro Esportivo de Pirituba, perto da estação de trem.
– Já que ninguém ia comigo, eu botava a minha mochila no gramado como se fosse um lateral. Como gostava de jogar de ponta, driblava a mochila, chegava na linha de fundo e cruzava. O campo ficava perto de um viaduto. Quando fazia um gol, comemorava como se estivesse num estádio. Pensei: “Meu Deus, será que eu estou ficando louco?”. Quando olhei para cima, o viaduto estava cheio de gente me gozando. E assim eu fui passando a minha infância.
Como todo moleque que gostava de jogar bola naquela época (também passei por isso, mas fui dispensado logo no primeiro teste pelo José Poy, no São Paulo), Júlio César foi tentar a sorte na “peneira” de um time grande, o Palmeiras. Só que outros 300 meninos entre 15 e 16 anos tiveram a mesma ideia e estavam lá no dia para fazer o teste com o técnico Godê.
– Entrei na ponta-direita. Recebi a bola e resolvi partir para cima do lateral, igualzinho eu fazia com a mochila. Corria muito, tinha velocidade. Mas aí o cara deixou a perna, caí e saí me arrastando naquele terrão, e ali eu percebi que, quando chega na hora do vamos ver, a coisa é diferente. Não era mais a minha mochila. Levantei todo esfolado e eles queriam me tirar logo, mas pedi para ficar. Na segunda bola, fiz a mesma coisa, ele não conseguiu me pegar, fui na linha de fundo, cruzei e o centroavante fez o gol. Ali eu entrei no Palmeiras.
No final daquele ano, o juvenil foi convidado para disputar um quadrangular no Chile. Em um dia de folga, o time fez um passeio, justamente até Vinã del Mar, onde Júlio César voltava pela primeira vez.
– Comecei a chorar, e a molecada ficou me gozando. Conhecer a cidade onde nasci, para mim, foi muito emocionante. Mas quando nós voltamos para o Brasil, houve uma mudança de técnico. O cara começou a pegar no meu pé, me botou no banco. Decidi ir embora. Três meses depois, meu pai conseguiu um teste no Corinthians. Eu era palmeirense roxo e odiava o Corinthians. Falei pro meu pai: “Mas nem morto vou jogar lá”. Aí, de novo, meu pai me ensinou: “Se você quiser ser jogador, não tem essa de torcedor. Você tem de jogar no clube que te dê melhores condições”.
No primeiro treino, Júlio encontrou Casagrande, em um campo de terrão onde ficava o estacionamento, atrás do estádio do Parque São Jorge. Logo ficaram amigos. No início de 1981, os dois foram jogar nos juniores, tudo ia muito bem, mas um dia o pai comunicou secamente à família: por problemas financeiros, eles iriam morar em um sítio que haviam comprado em Registro, às margens da rodovia Régis Bittencourt, a estrada que liga São Paulo ao Sul do País. Ou seja, muito longe do Parque São Jorge. Eles não tinham parentes em São Paulo e o jeito foi seguir com a família para o sítio.
O técnico dos juniores era Julinho, o grande Júlio Botelho, ponta-direita como ele, que rivalizava com Garrincha na Seleção Brasileira de 1958. Na volta das férias, contou seu problema familiar ao treinador e pediu um lugar para morar no alojamento do clube, mas Julinho cortou logo suas esperanças.
– Esse é o seu primeiro ano nos juniores. E você não vai começar jogando porque tem caras mais velhos, que estão para estourar a idade. Nem você, nem o Casagrande. E o alojamento é só para os titulares porque custa muito caro. Se você não tem onde ficar em São Paulo, eu te sugiro que fique com a sua família e largue o futebol. Vai estudar, é melhor para você.
Para qualquer outro jovem, depois dessa ducha fria, poderia ser o fim de uma carreira que, na verdade, ainda nem tinha começado, menos para Júlio César.
– Eu sabia da história do Julinho Botelho no Maracanã, quando ele foi escalado no lugar do Garrincha em um jogo da seleção, e acabou calando as 200 mil pessoas que o haviam vaiado quando entrou em campo. Olhei para ele e fiquei imaginando: “Esse homem é um dos maiores pontas-direitas que o mundo viu jogar. Se ele acha que devo parar de jogar, eu deveria aceitar. Mas não vou aceitar. Vou calar a boca desse homem igual ele fez no Maracanã”.
De volta para o sítio, Júlio César conta que subiu em uma montanha e teve sua primeira conversa com Deus.
– Eu sempre fui muito espiritualizado e resolvi pedir ajuda. E falei assim: “Agora que estava tudo dando tão certo, você me enfia no meio desse mato? Como eu vou fazer agora?”. E eu só ouvia ele dizer: “Continua. Enfrenta as dificuldades”. E eu desci dali, procurei meu pai e falei para ele: “Já me resolvi. Vou-me embora para São Paulo”. Meu pai começou a rir. “Ah, já decidiu? Mas você não decide nada, você é menor de idade”. Respondi que iria embora nem que fosse a pé. Meu pai olhou para mim com uma admiração e um respeito que eu nunca tinha visto antes, porque o velho tinha me passado essa determinação. Ele que tinha me cobrado cuidar da minha vida.
Pois é, e agora? Essa história só não acaba aqui porque Júlio César lembrou-se de uma antiga empregada da família que morava na periferia de São Paulo e cuidava sozinha dos quatro filhos. Foi pedir para morar com ela. A hospedagem grátis durou apenas um mês.
– Você é muito pobre, seu pai não tem dinheiro para me ajudar, você não vai mais poder ficar aqui.
Às sete da manhã, ele pegou a velha mochila e foi caminhando a pé até a Estação da Luz, de onde saía um ônibus para o Corinthians. O dinheiro que sobrara no bolso dava certinho para pagar a passagem – só de ida. Treinou o dia inteiro para ter direito ao almoço e no final da tarde sentou-se na arquibancada para pensar o que iria fazer.
– Veio um colega de time e me falou: “Vem, Júlio, a gente enfia você escondido no alojamento”. No dia seguinte, bem cedo, o seu Amadeu, diretor que tomava conta da concentração e do time de basquete, bateu na porta do quarto: “Bonito, hein, seu Júlio… Veio me pedir, eu não deixei, e agora você vai me complicar”. Fiquei com tanta vergonha que peguei minhas coisas e saí, mas continuei treinando. À noite, eu dormia nas cadeiras de madeira da arquibancada. Com a ajuda de custo que eles me pagavam, só dava para comprar um lanche.
– Às vezes, eu acordava à noite com uma dor na barriga de fome, vendo aquele céu estrelado e o gramado na minha frente, até sonhava fazendo jogadas. E eu pensava: “Meu Deus do céu, o que mais eu preciso fazer pra mostrar que eu quero ser jogador de futebol e que eu não vou desistir?”.
Na saída para o intervalo do jogo de juniores que faziam a preliminar de Corinthians e São Bento, de Sorocaba, no Parque São Jorge, o técnico o chamou: “Júlio, vamos para o vestiário fazer o aquecimento que você vai entrar no segundo tempo”.
O jogo estava 0 a 0. Era a chance que ele esperava. Júlio César se lembra de tudo, nos mínimos detalhes, e seus olhos brilham como se o jogo tivesse acontecido ontem.
– A primeira bola que eu peguei, acostumado a treinar no terrão, e agora pegar aquele gramadão, eu parecia um cavalo puro sangue… Eu não era muito habilidoso, desses de dar driblezinho curto. Eu era corredor. Enfiei a bola pra linha de fundo e voei. Chegou na linha de fundo, cruzei. O Casão entrou de cabeça e fez 1 a 0. Aí, eu vou te falar, eu até chorei. Pouco depois, eu fiz o segundo gol.
A partir desse dia, tudo começou a mudar rapidamente. Quando soube que o herói do jogo nem lugar no alojamento tinha, Marcos Torres, diretor do departamento amador, providenciou na hora.
– O Julinho mesmo foi me levar até o alojamento. Dali em diante, virei a estrela do time. E nós fomos campeões dos juniores naquele ano.
Semanas depois, o técnico Mário Travaglini o chamou para treinar com o time principal. Sua estreia foi justamente contra o Palmeiras, no Morumbi lotado. Como o time não vinha bem, resolveram trocar o diretor de futebol. Júlio César não esquece o dia em que foi apresentado a Adilson Monteiro Alves.
– Aquilo foi o marco, o primeiro dia da Democracia Corinthiana. Me entra o Adilson Monteiro Alves, junto com o Flávio Gikovate e o Washington Olivetto ao lado. Apresentou os caras e começou a falar: “Ninguém é obrigado a jogar no Corinthians. Desse jeito, um dia vamos cair para a segunda divisão. Zé Maria, Sócrates, o que está acontecendo? Vocês desaprenderam a jogar? Eu não vou contratar ninguém. E outra coisa, nem vai ter mais concentração. Primeiro, que o clube não tem dinheiro pra ficar gastando com esse troço. Depois, o médico que opera, que tem muito mais responsabilidades do que vocês, por acaso o hospital paga concentração pra ele ficar um dia antes da cirurgia? Não paga. Então, por que eu tenho que pagar para vocês? Quem chegar aqui bêbado ou jogar mal, vou atirar pros leões, vou meter no jornal e a torcida vai ficar sabendo”. Não era que cada um fazia o que queria. Ele era foda. Falou: “Tá aqui o Washington Olivetto que vai trabalhar a imagem de vocês. Tá aqui o Flávio Gikovate que vai fazer uma coisa de terapia de grupo. Quem quiser falar alguma coisa particular não precisa ficar com medo, não”.
Tão rápido quanto subiu, logo Júlio César viu sua estrela se apagar. Virou titular no time campeão de 1982, graças a uma contusão de Eduardo Amorim. Mas, antes do primeiro turno acabar, o clube contratou Ataliba, do Juventus, que tomou seu lugar, e ele voltou para o banco. Na volta de Eduardo, ele virou segundo reserva.
– Aí eu falei: “Pô, preciso sair do Corinthians pra conseguir jogar”.
Foi parar na Ponte Preta. Um ano depois, estava no Comercial de Ribeirão Preto, onde foi vice-artilheiro do campeonato paulista e eleito o melhor ponta-direita de 1985. Isso lhe valeu um convite para jogar na Bélgica, e lá foi o nosso Júlio César correr atrás do seu destino. Ficou dois anos e aproveitou para estudar informática. Foi lá que conheceu o presidente da Pirelli, empresa onde iria trabalhar depois de largar o futebol.
Júlio César parou de jogar em plena forma física, depois de passar uma temporada no Paysandu, de Belém, no Pará. Estava com 28 anos.
– Tinha pelo menos mais cinco anos para jogar, mas eu via tanta bandalheira no futebol, os empresários tratando os atletas como gado, que desisti. Até hoje é assim. Só que hoje os jogadores são um pouquinho mais espertos… Meu problema não foi físico, mas filosófico. Quando eu estava na concentração lendo um livro, os outros jogadores me gozavam. E eu me sentia um peixe fora d’água.
Depois de largar o futebol profissional, ou ser por ele largado, Júlio César ainda chegou a jogar na Seleção Brasileira de masters montada por Luciano do Valle, quando recebeu o convite do presidente da Pirelli para mudar de ramo. Como era bem falante, foi trabalhar no setor de vendas. Quatro anos depois, notou que estava começando a perder a audição.
– Procurei vários médicos e hospitais, mas ninguém conseguia descobrir o que era. Aí, eu coloquei um aparelho no ouvido e continuei vendendo. Com dez anos de empresa, virei gerente. Até que o doutor Antônio Douglas, um médico famoso, me falou: “Você tem é otosclerose. O tratamento de cálcio que você fez calcificou os ossos do ouvido médio, estribo, bigorna e martelo. Esses ossos têm a função de vibrar para passar o som, mas se endureceram e não vibram mais. Nem com o aparelho eu ouvia mais nada.
A única saída era partir para a cirurgia, um ouvido de cada vez. A primeira deu certo: após 15 dias, ele passou a ouvir tudo novamente. Mas seis meses depois, quando iria operar o outro ouvido, já tinha perdido a audição de novo.
– Por isso eu brinco dizendo que sou o único cara do mundo que ficou surdo duas vezes… Eu fiquei revoltado de ficar surdo. Mas foi isso que me fez voltar a trabalhar com futebol.
Júlio César morava na Granja Viana, um bairro de Cotia, na Grande São Paulo, estava bem de vida. Em vez de ficar se queixando, não demorou para encontrar um novo caminho. Ao se separar da mulher, voltou para a capital para ficar mais perto do filho.
– Ganhei muito mais dinheiro com vendas do que com o futebol. Pensei comigo: “Já estou com uma situação financeira boa, vou passar um pouco da minha experiência pros moleques”. Fui trabalhar na Secretaria Municipal de Esportes de São Paulo, junto com o Zé Maria e o Vladimir, que foram meus colegas nos tempos da Democracia Corinthiana. Trabalhei num projeto educacional para 1,5 mil crianças em Carapicuíba junto com o Netinho de Paula (cantor, ex-vereador e hoje secretário municipal em São Paulo).
Nas voltas que a vida dá, o fato de ter ficado surdo levou a secretária de esportes Nádia Campeão (hoje vice-prefeita de São Paulo) pedir a ele um projeto para crianças com problemas auditivos montado no Parque da Aclimação.
– Eu nem sabia como iria começar esse projeto, mas no primeiro dia dei de cara com o pessoal do Helen Keller, o maior colégio para surdos de São Paulo. Por isso, é o que eu sempre falo: parece que é Deus que encaminha as coisas. Helen Keller era uma educadora americana cega e surda, um marco na educação de deficientes.
Júlio César tornou-se o coordenador do projeto e chamou para ajudá-lo o ex-jogador Dudu, um volante que fez história no Palmeiras. Ao ver Dudu no meio do campo com o apito na boca e os moleques correndo de um lado para o outro, deu-lhe um toque.
– Foi muito engraçado… “É assim que você vai treinar os meninos surdos, apitando?”, perguntei para ele. Aí entrou meu lado de observador, de virginiano, de educador. Eu não sabia falar em libras, então pequei um colete do chão e comecei a sinalizar. Foi o marco do projeto. As crianças começaram a prestar atenção no que tem importância: a bola e o juiz. Com dois ou três treinos, eu já via o moleque olhando pra bola, olhando pra três, quatro pontos ao mesmo tempo. Começaram a desenvolver a coordenação motora.
Do futebol, Júlio César passou para o vôlei e o basquete, e começou a ensinar outros professores a educar crianças surdas. Chegou a dar aulas para cinco mil crianças surdas em seis escolas. E foi em frente, sempre buscando novos desafios para transformar seu limão numa limonada para muitas crianças.
– Eu criei a primeira escola de danças para crianças surdas no Brasil. O que eu fiz? Virava a caixa acústica para o chão de madeira do teatro, botava o som no último volume. O alto-falante grave fazia tremer todo o chão. Então eu botava a criança descalça e ela absorvia o impacto e conseguia marcar o ritmo para dançar. Os caras falavam: “Você não é surdo nada. É mentira”. Um dia bateram na porta de casa e eu gritei: “Deixa a porta aberta”. O cara me falou: “Ué, você não é surdo? Como você me ouviu?”. É que quando você bate na porta treme a casa inteira. Deslocamento de ar. É o som grave.
Três anos depois, o trabalho de Júlio César ganhou o prêmio de melhor projeto inclusivo do Brasil concedido pelo Ministério da Educação. Mais uma vez, porém, a sua alegria durou pouco. São Paulo mudou de prefeito e o projeto premiado foi abandonado.
– Em 2009, cortaram a verba, mandaram os antigos jogadores embora e acabaram com o projeto. Bom, aí o que eu fiz? Eu tive um convite para escrever um livro e contar a minha história. Depois de ler o livro, um amigo meu, o professor Roberto Wagner Dias, professor da UniÍtalo, me falou: “Júlio, sua história é maravilhosa. Por que você não vai dar uma palestra sobre motivação para meus alunos de Administração de Empresas?”. Na metade da palestra, estava todo mundo chorando, emocionado. Ele me ensinou a montar uma palestra motivacional que faço até hoje.
Júlio César abriu uma empresa de educação empresarial chamada Jogadas da Vida, mesmo título do seu livro, de um projeto para levar sua história ao cinema e do concerto que compôs depois de aprender a tocar piano. Além disso, foi convidado pelo Sindicato dos Representantes Comerciais do Brasil a dar aulas sobre vendas todas as segundas-feiras. Em 2010, fundou um instituto, também chamado Jogadas da Vida, junto com amigos famosos, como Osmar Santos, Ademir da Guia e Zé Maria, para desenvolver projetos esportivos, educacionais e culturais para crianças com deficiência. Para continuar, depende de recursos do governo ou do patrocínio de alguma empresa privada, o que está difícil, mas ele nunca desanima.
– Na realidade, eu uso o futebol para falar de conceitos que servem para todo mundo, desde a faxineira até o presidente da empresa. O grande recado que eu dou é o seguinte: não peça nada para Deus. Deus, quando te fez, ele já te deu tudo, coisas que você nem imagina. Tudo que você faz com amor pela tua profissão e, principalmente, de forma ética, para que o mundo se beneficie através das tuas ações, o plano divino abre os caminhos para você. O único que falta acreditar em você é você.
Esse é um problema que Júlio César nunca teve. Espírita, ele sempre acredita no seu taco e busca novos desafios aparentemente impossíveis para o comum dos mortais, mesmo para os que não são surdos, como tocar piano por exemplo. Pois Júlio César decidiu aprender a tocar piano para compor um concerto que não lhe saía da cabeça, coisa mais maluca.
– Eu não conseguia dormir com aqueles acordes que começaram há três anos na minha cabeça. Procurei aqui perto de casa o Mau-Mau, um músico dos bons e, com muita paciência, ele começou a me ensinar. A minha voz é desafinada, mas usei minha habilidade no violão porque eu me lembrava da escala musical, então eu não preciso ouvir para tocar.
Depois das primeiras aulas com Mau-Mau, ele passou para as mãos da professora Amália De Vicenzo, que ensina também as minhas netas. A nova professora o apresentou ao maestro Rodrigo Vitta, da FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas). Para dar o ritmo, a aula de Amália consiste em dar batidinhas nas costas do aluno surdo e, dessa forma, ele foi compondo seu concerto para piano em três movimentos e uma introdução (Direito à Vida): Glórias e Vitórias, O Som do Silêncio e Celebração ao Divino. O maestro Vitta fez os arranjos para um quarteto de cordas.
Está tudo pronto para Júlio César, que lutou muito para ser jogador de futebol, finalmente estrear como pianista. A saga dele lembra um pouco a de João Carlos Martins (Brasileiros, edição 21), o grande pianista de Bach que perdeu os movimentos das mãos e se tornou maestro. Agora, só falta Martins, que é torcedor da Portuguesa de Desportos e já voltou a tocar piano, depois de uma luta imensa, começar a jogar futebol com Júlio César. Daria uma bela dupla de brasileiros que aprenderam a reinventar a vida.
Antes da gente se despedir, duas horas depois, Júlio César vai até o seu piano eletrônico Yamaha e toca o Hino Nacional no capricho. A sua emoção nos emociona, seu sorriso é de um vencedor. É um belo fundo musical para encerrar esta narrativa sobre a capacidade de superação do ser humano.
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