Resgate fotográfico

São 160 mil cópias fotográficas e 700 mil negativos. Esse é o acervo fotográfico do jornal carioca Última Hora que está sendo recuperado e digitalizado por pesquisadores do Arquivo Público do Estado de São Paulo (leia box abaixo). O objetivo é disponibilizar esse material via internet num banco de dados e tornar acessível ao público um dos momentos mais impactantes da mídia – e da história – brasileira. Criado no Rio de Janeiro nos anos 1950 pelo jornalista Samuel Wainer, o Última Hora revolucionou a imprensa brasileira, especialmente no que diz respeito ao uso da fotografia.

Com uma posição política de apoio a Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart, o jornal também tinha grande apelo popular, tratando de temas como futebol, cotidiano, cinema e arte. Talvez por isso tenha ficado com a fama de jornal populista. “Na verdade, o jornal era mais popular do que populista”, diz Lauro Ávila, diretor do Departamento de Preservação e Difusão da Memória do Arquivo Público do Estado de São Paulo e que tem o jornal como tema de sua tese de mestrado. “Ele nasce popular, mas se torna populista após 1964, quando vem a ditadura. O Wainer deixa o jornal em 1968. O jornal sobrevive até 1971, mas já não existe mais como proposta inicial.”
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Grande parte das fotografias do acervo do Última Hora permanece inédita. “Apenas duas pessoas tiveram a oportunidade de vê-las: o fotógrafo que as tirou e o editor que as descartou”, diz Ávila. Todo o material foi adquirido pela Secretaria Estadual de Cultura – à qual o Arquivo estava submetido na época. Há um ano ele está ligado à Casa Civil – no começo dos anos 1990. A primeira seleção de reconhecimento do material foi feita, na ocasião, pelas pesquisadoras Margareth Pavan e Helouise Costa. O resultado dessa pesquisa preliminar foi uma exposição na Casa das Rosas, em São Paulo, em 1993. Em 1997, já sob o comando de Ávila, as fotos foram publicadas em seis livros que seqüenciavam as editorias mais importantes do jornal. Tanto a exposição quanto os livros foram produzidos com fotos que já haviam sido estampadas no jornal. A grande expectativa é em relação ao material inédito. Nos últimos dois anos, uma equipe de sete profissionais tem se debruçado nesse imenso acervo para fazer a identificação correta, limpar e digitalizar todo o material fotográfico para, de alguma maneira, resgatar a memória de um momento importante de nossa história.

Segundo a escritora norte-americana Susan Sontag, “ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas idéias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar”. Se isso vale para toda e qualquer imagem, é ainda mais contundente quando falamos de fotojornalismo: uma expressão aliada à noção de credibilidade. Bastante discutível, diga-se de passagem. Essa frase torna-se ainda mais apropriada quando temos a oportunidade de recuperar um arquivo fotográfico, observar a totalidade de suas imagens de uma só vez e perceber a construção de um imaginário. Ou seria de uma realidade?

Toda imagem depende do momento sócio-histórico ou cultural de uma sociedade. Elas acabam por concretizar a mentalidade de uma época, são condicionadas culturalmente. Assim como os textos, para existir, as fotografias dependem de personagens e situações. Elas podem contar histórias, ao criar em nosso imaginário uma idéia de cidade, de modernização, de fatos. Mas, acima de tudo, criam uma idéia de representação. “O Última Hora sintetizou as inovações que estavam esparsas em vários jornais. O Samuel Wainer juntou o que de melhor estava acontecendo e mudou a abordagem, a forma como contar um assunto”, diz Ávila. “Era como uma televisão de papel, um jornal absolutamente imagético, com notas curtas e bastante agradáveis para o leitor”, lembra.

A representação depende da ambientação, portanto, da descrição daquilo que se vê. Apesar de a câmera fotográfica querer agir como testemunha ocular de um tempo, ela acaba funcionando muito mais como ficção, como criação daquilo que se imagina. Há fotos criadas para emocionar o público pela temática ou pelo enfoque, como o desastre de um trem, o circo ou a menina que chora ao encontrar o presidente. Mas, além da questão ideológica das fotos, com este acervo também é possível passar a limpo a história ou um pedaço do fotojornalismo brasileiro. “O importante é que este é o material bruto, não selecionado ou pré-escolhido. Tivemos boas surpresas”, afirma o pesquisador Marcos Blau.

De acordo com o historiador francês Jacques Le Goff, “a história é a forma científica de memória coletiva e aquilo que sobrevive não é aquilo que existiu, mas resultado da escolha de historiadores e das forças que operam com o desenvolver temporal do mundo”. Portanto, diante desse material bruto, pode-se acompanhar não só o olhar do fotógrafo ou como ele pensou a imagem, mas também o desenvolver do olho de uma época. “Você pode, por exemplo, acompanhar a evolução tecnológica da linguagem fotográfica”, conclui Blau. Ele cita a mudança de equipamento de câmeras de grande formato (4X5) para as câmeras de 35 mm, usadas até hoje. Seu aparecimento, ou o fato de serem adotadas pelo fotojornalismo, mudou a estética da imagem, devido a uma maior mobilidade do profissional. “Isso fica muito evidente quando falamos de jogos de futebol. Dá para perceber nitidamente que alguma coisa mudou com a nova tecnologia. É maravilhoso!”, diz Blau.

Um trabalho de arqueologia, quase cirúrgico, que aos poucos vai resgatando a memória. Mas, além das imagens, os jornais propriamente ditos também estão sendo restaurados e recuperados pela empresa Advanced Micro Devices (AMD) e, assim como as fotografias, também estarão em breve disponíveis para consultas (www.amigosdoarquivo.com.br/uhdigital/).

Cada época constrói o olho do período, ou seja, construímos ou produzimos conhecimento por meio de representações. Daí a importância desse trabalho, pois, depois de concluído, ele poderá adaptar-se às mais diversas finalidades, principalmente para ilustrar o que foi e como foi visto um período da história do Brasil. E, parafraseando o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, “a realidade é criada e não encontrada!”.

O MESTRE DAS IMAGENS

Paciência, delicadeza e muita dedicação. Munidos desses requisitos, Magali Pinhati, Raquel Moliterno, Naoju Kimura, Shirley Silva, Carla Angulo, Raphael Cordeiro e Marcos Blau estão há dois anos envolvidos na recuperação do arquivo de imagens do jornal carioca Última Hora. Sob a coordenação de Millard Schisler e consultoria técnica de Patrícia de Filippi, eles atuam como verdadeiros cirurgiões na hora do trabalho. “É muito complicado tratar um material como este. É preciso ter muito cuidado, pois as fotos e os negativos são muito delicados. Se forem muito manuseados, podem ser danificados”, explica Millard. Todo material fotográfico é limpo, tratado e recolocado em novos envelopes com PH neutro, para que os negativos não sejam agredidos. As imagens também são protegidas em locais climatizados para impedir a sua deterioração. São respeitadas todas as informações anteriores e acrescentadas novas, como o ano de recuperação do material. Os pesquisadores também devem ser um pouco detetives. “Nem sempre temos todas as informações no envelope original onde ficou guardado o negativo. Às vezes encontramos apenas a data ou o nome de um fotógrafo. É tudo muito solto”, diz Millard. Naquela época, não havia muita preocupação com a preservação da memória histórica. Os negativos costumavam ser jogados todos dentro de um mesmo envelope, sem qualquer referência. “Ao digitalizar, na verdade, você está criando um fac-símile. Com ele você pode organizar exposições, ou publicações, enfim o que quiser sem nunca mexer no original.”


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