O resgate da importância histórica de Luiz Gama, poeta, jornalista e advogado que teve a vida dedicada à defesa da igualdade de direitos, vem ganhando forma com o lançamento de Com a Palavra, Luiz Gama – Poemas, Artigos, Cartas e Máximas (Imprensa Oficial) e a reedição de Primeiras Trovas Burlescas – Luiz Gama (Editora Martins Fontes), único livro do menino que nasceu livre, mas virou escravo aos 10 anos, quando foi vendido pelo próprio pai.
Com a Palavra, Luiz Gama tem o mérito de reunir as diversas faces do poeta, cuja obra une literatura, jornalismo e política – a organização é de Lígia Fonseca Ferreira. Filho de Luiza Mahin, quitandeira africana livre de Costa Mina, e de um fidalgo de nome nunca revelado – sabe-se que fazia parte de uma tradicional família baiana de origem portuguesa -, Gama, o Vate Negro, como ficou conhecido, nasceu em Salvador em 1830. Embora tenha vindo ao mundo como homem livre, conheceu a escravidão aos 10 anos, quando foi vendido pelo pai a um mercador de escravos, que o levou ao Rio de Janeiro e depois a Santos, de onde seguiu a pé até Campinas.
Como escravos de origem baiana, tinham fama de rebeldes, o menino acabou ficando com o mercador, que se tornou o seu senhor. Cativo, Gama chegou à capital de São Paulo, principal cenário de sua atuação no combate às arbitrariedades dos que detinham o poder.
Alfabetizado aos 17 anos, graças a um estudante de Direito que alugava um quarto na casa do mercador, ele também recebeu de seu “professor” as primeiras noções jurídicas – ato corajoso, já que na época ensinar um negro tinha conotação de crime. Só mais tarde, Gama reuniu documentos que provariam seu nascimento como homem livre e conseguiu alforria, defendendo-se por conta própria e antecipando seu futuro como advogado. Aliás, a atuação dele no universo do Direito, que lhe rendeu a fama de “advogado dos escravos”, acabou por soterrar sua imagem como homem de múltiplos talentos.
Livre aos 18 anos, ele ingressou na Guarda Municipal, onde conheceu Conselheiro Furtado, uma das maiores autoridades de São Paulo da época. Mas a carreira militar durou apenas seis anos e terminou depois de Gama ter cumprido pena de 39 dias por insubordinação. Em seguida, escreveu: “Desde que me fiz soldado, comecei a ser homem, porque até os 10 anos fui criança; dos 10 aos 18 anos fui soldado“.
Nomeado escrevente da Secretaria de Polícia de São Paulo, Gama começou a ter contato com os problemas dos mais carentes, que apareciam por lá ávidos por justiça. Também se aproximou de personalidades republicanas e, em pouco tempo, colocou seu nome entre os intelectuais do período.
Personagem-símbolo da luta abolicionista, Gama passou a defender escravos e parte da população menos assistida do Estado de São Paulo como rábula (profissional autorizado a exercer a advocacia sem curso superior), desde que comprovasse conhecimento na área. Também participou da libertação – sempre por meios legais – de trabalhadores escravizados. Não cobrava por esse trabalho. Há registros de que ele foi o responsável direto pela libertação de mais de 500 escravos. Mas há quem diga que foram mil.
Lírica de Carapinha
Primeiras Trovas Burlescas de Getulino, único livro de Luiz Gama, foi publicado em 1859 e teve apenas duas edições na época. Depois, foi empurrado para o esquecimento nas décadas seguintes. O que poucos perceberam é que o surgimento do poeta Luiz Gama representava um marco na literatura brasileira – era a primeira vez que um autor negro tinha sua obra publicada. Agora, o livro ganha uma reedição, Primeiras Trovas Burlescas. Também organizado por Ligia Ferreira, o livro traz textos extraídos do original e outros publicados pelo autor em jornais da época.
Gama apropria-se de referências dos poetas brasileiros e europeus que o influenciaram, mas assume sua raça e posiciona-se como uma nova voz desde o título do livro. Embora assine com seu nome de batismo, as trovas são creditadas a Getulino, pseudônimo retirado de uma tribo guerreira nômade oriunda da África, os getulos.
O poeta se apresenta como o Orfeu de Carapinha, tomando de empréstimo a lírica do musicista encantador de deuses e mortais da Grécia mitológica clássica, porém substituindo sua lira por instrumentos de origem africana. Canta pela primeira vez a beleza da mulher negra, declamando que, à alva Vênus dos poetas clássicos prefere “a musa de Guiné, cor de azeviche”.
Embora cante as belezas do espírito como faziam seus contemporâneos, Gama mostra sagacidade e domínio da ironia em versos satíricos de forte conteúdo político e social – uma de suas marcas em poemas publicados, mais tarde, na imprensa paulistana. Sua pena não dá trégua aos poderosos, mas sobra também para os “mulatos falsários”, como ele definia os mestiços que renegavam sua ascendência africana. Também ataca o preconceito dominante de parte da elite intelectual (“Ciências e letras/Não são para ti/pretinho da costa/não é gente aqui“).
Naqueles tempos em que jornalismo e literatura se confundiam, não é de estranhar que alguém com tanto a dizer como Luiz Gama estendesse seu campo de atuação às redações. Como jornalista, ele também fez história, podendo ser considerado um dos precursores da imprensa independente. Em 1864, uniu-se ao cartunista Angelo Agostini para fundar o semanário de humor Diabo Coxo, que durou pouco mais de um ano. Foi o primeiro jornal ilustrado da cidade de São Paulo e marcou a descoberta da imprensa como canal difusor de suas ideias. A partir daí, Gama passou a participar da criação e edição de títulos, como Cabrião, O Polichinelo e O Radical Paulista – o último, ao lado de Rui Barbosa.
Talvez um dos maiores exemplos da cordialidade hipócrita de nosso racismo, Gama foi acusado por seus detratores de negro com pretensões literárias frustradas e até “agente da Internacional”. Durante muito tempo, a indignação e virulência de seu texto foram rotuladas como um rancor enraizado contra a parcela de pele branca da sociedade. Seu discurso, no entanto, não era pautado pela distinção racial e seus principais alvos eram as instituições dominantes no Brasil da segunda metade do século 19: a monarquia e a igreja.
Vítima de complicações causadas pelo diabetes, Gama morreu aos 52 anos, no auge de sua popularidade como republicano e abolicionista. A morte do poeta movimentou a capital paulistana. O velório teria reunido mais de três mil pessoas. Conta-se que, em meio à cerimônia, o féretro teria sido “tomado” das mãos de seus companheiros republicanos por ex-escravos e populares, que tinham Gama como protetor, e conduzido nos braços do povo até o Cemitério da Consolação, onde está enterrado. O evento ainda seria assunto na mídia nos meses seguintes em artigos e homenagens de notáveis, como Rangel Pestana e Raul Pompéia.
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