Retratos de Denise

Há 25 anos, a carioca Denise Rodrigues Fraga é uma das atrizes mais queridas dos brasileiros. Descobriu na arte do humor uma saída para a timidez e fez muita gente rir. Impôs recordes ao teatro quando interpretou por mais de 1.500 vezes a empregada Olímpia, de Trair e Coçar é Só Começar e invadiu os lares de milhões de brasileiros, durante oito anos, no quadro Retrato Falado, do Fantástico, um marco da trajetória profissional que estabeleceu ao lado do marido Luiz Villaça. Desde 1994, encontrou em Luiz um parceiro para o trabalho e para a vida. Laços fortes que renderam duas carreiras bem-sucedidas e dois filhos, Nino e Pedro. Denise é dessas mães que não abrem mão de seus ideais. Trabalha muito e se desdobra para estar sempre presente. Ao longo dessa entrevista, revela que amamentou em sets de filmagem e que durante a gestação de Pedro, o caçula, chegou a protagonizar várias histórias de Retrato Falado com uma barriga imensa.

A carreira de êxitos de Denise ascendeu em meio a grandes transformações no País e ela recorda que foi uma jovem engajada. Saiu às ruas pelas Diretas Já e fez campanha para Lula, em 1989. Hoje, celebra conquistas, mas teme pelo futuro, quando pensa na degeneração da educação. Formou-se no ensino público e sabe quanto o declínio da qualidade foi vertiginoso. Denise defende o planejamento para alcançar objetivos e celebra novas conquistas. Dois novos projetos, em breve, ganharão vida. À partir de 13 de maio, no teatro TUCA, em São Paulo, ela interpretará Vicky, uma dona de casa envolvida em um turbilhão de conflitos em Sem Pensar, de Anya Reiss, brilhante e precoce dramaturga britânica que escreveu o texto aos 17 anos. No cinema, , ela acaba de concluir as filmagens de Hoje, o novo filme de Tata Amaral, onde vive uma ex-militante de esquerda atormentada pela volta do companheiro, supostamente morto. Nas próximas páginas, Denise Fraga alterna primeira e terceira pessoa, liberta a verve de grande oradora e deixa revelar pequenos retratos da atriz, mãe e mulher.

Denise ontem
Brasileiros – Como se deu sua formação? Que estímulos teve para ser atriz?
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Denise Fraga -Nunca fui dessas que recitava poesia na sala de aula. Era super tímida. Quem estudou comigo deve ficar impressionado e pensar “Como é que ela pôde? Quem diria!?”. Era daquelas muito retraídas, que sentava no canto e ficava olhando para a parede. Quando digo que era muito tímida, parece até que estou fazendo charme, mas foi a profissão que me ensinou a me comunicar e a interagir com as pessoas. O humor também me ajudou muito. Uma grande salvação para um tímido é encontrar uma voz no trabalho e minha profissão me deu muita voz na vida.

Brasileiros – E quando é que você começou a se formar, estudar teatro?
D.F. –
Primeiro, eu prestei vestibular para cursar Belas Artes, na UFRJ, pois gostava muito de desenhar. Pelo número de pontos que atingi, conquistei uma vaga, mas somente para ingressar no segundo semestre. Comecei a fazer teatro nesses seis meses livres. Durante esse intervalo, eu e um amigo decidimos fazer um curso de teatro com a Sura Berditchevsky e a Guida Vianna.

Brasileiros – Que idade você tinha?
D.F. –
Tinha 17 anos e adorava mesmo desenhar. Cheguei a cursar a Belas Artes por três anos, mas, quando percebi, o teatro já havia me tomado por inteira. Fazia a faculdade durante o dia e a escola de teatro à noite. A faculdade ficava na Ilha do Fundão, e decidi trancar o curso com a ideia de concluir depois, mas nunca mais voltei. Uma arte substituiu a outra. Anos mais tarde, com meu filho Pedro, é que voltei a desenhar.

Brasileiros – E você se profissionalizou nesse curso da Sura?
D.F. –
Não, depois disso lutei por uma vaga em um curso do Cláudio Corrêa e Castro e ele foi um dos que mais incentivou a minha profissionalização. Recomendou que eu fizesse a prova para cursar a Martins Pena, uma escola gratuita, equivalente a EAD (Escola de Artes Dramáticas da USP-SP). Eram 350 inscritos para 15 vagas e passei. Eu era uma menina simples, de Lins de Vasconcelos, subúrbio da zona norte do Rio, o curso era à noite na Central do Brasil, em uma área super barra pesada do centro, mas eu não media esforços. Tinha uma enorme sensação de conforto no palco. Como se os personagens me protegessem.

Brasileiros – E você já fazia parte de algum grupo de teatro?
D.F. –
Saí da escola, entrei para o grupo Tapa, na época em que eles ainda estavam aqui no Rio, e depois formei um grupo amador, com amigos que foram ex-alunos da Martins Pena. Um desses amigos é o Kiko Marques, que contracena comigo em Sem Pensar. Com esse grupo, fizemos muitos projetos de repértorio clássico do teatro brasileiro. Autres como Martins Pena, França Junior, Arthur de Azevedo e Joaquim Manoel de Macedo. Nos apresentávamos com frequência nas escolas públicas do Rio e isso me deu uma cancha dananda. Às sete, oito da manhã, já começavam os preparativos. Levávamos o cenário, montavámos tudo, dividíamos todas as tarefas – cheguei até a costurar o figurino! – e ainda fazíamos debates no final das peças. Sinto até hoje a importância desse grupo e não falo de importância financeira. Com o dinhieiro que a gente ganhava, pagávamos as aulas de corpo, de voz, e só, mas todo esse processo foi como uma segunda escola. Foi ali que entendi o fazer teatral e toda a logística que envolve a produção de um espetáculo. Até mesmo por isso, acho que fui me meter a produzir algumas peças que fiz.

Brasileiros – Nessa época difícil, a família te apoiava?
D.F. –
Apoiava, mas lembro que quase desisti da carreira de atriz. Cheguei a fazer teste para ser aeromoça e meu pai, volta e meia, me dizia: “Filha, você não quer prestar um concurso para o Banco do Brasil!?”. Não rolava dinheiro com o grupo. Como disse, o pouco que entrava pagava uma ou outra aula e também era consumido em outras produções. Um belo dia, saí para entregar curriculuns, fotos e fui convidada para fazer um teste para a novela Bambolê. Tive a sorte de ser aprovada e, no meio da novela, o Atílio Riccó que era um dos diretores me chamou para fazer uma peça, no Princesa Isabel, um teatro super comercial do Rio. Era um vaudeville, gênero esquecido hoje, mas muito popular naquele período. Algo explicitamente feito para rir – alguns de muita qualidade e clássicos, como os do George Feydou. Foi nessa época que conheci o Rogério Cardoso, grande amigo que fez várias peças comigo, inclusive Esperando Godot. O Rogério era tão generoso, que chegou até a fazer parte do meu grupo que se apresentava nas escolas. Convidei-o para fazer O Defeito de Família, do França Junior, e ele topou na hora. Ia às 8 da manhã em Madureira fazer a peça conosco nas escolas. Ele era sensacional. Tenho muita saudade do Rogétio. Foi um grande parceiro.

Brasileiros – E como surgiu o convite para fazer Trair e Coçar é Só Começar?
D.F. –
O Atílio dirigia a montagem e, no meio da temporada, me convidou para substituir a Sueli Franco que fazia o papel da Olímpia, a empregada. Eu tinha visto a peça e achava o papel sensacional, mas confesso que sofri cobranças por fazer algo tão comercial. Lembro que tive de fazer uma assembleia com meu grupo de teatro para saber se deveria ou não aceitar o convite. Eu era muito metida à besta e tinha essa coisa de colocar o grupo à frente de tudo.

Brasileiros – Mas você não só aceitou como fez grande sucesso com a peça…
D.F. –
Sim, vim para fazer a peça em São Paulo e o mundo se abriu para mim. Morei dois anos em hotel, indo e voltando, achando que ia ficar no Rio. Vinha para cá toda quinta-feira com uma malinha e partia no domingo ou na segunda. Quando a peça estava chegando ao fim, fomos fazer uma temporada popular no Teatro São Caetano, para liquidar de vez, descansar um pouco e viajar, mas na semana de encerramento o Augustinho Záccaro nos convidou para fazer algumas apresentações e acabamos ficando por mais quatro anos no Zaccaro. Fiz a peça 1.550 vezes ao longo de seis anos e meio!

Brasileiros – E qual o maior legado de Trair e Coçar para sua carreira?
D.F. –
Foi uma escola inacreditável. De erro e de acerto em cena. A comédia tem uma questão matemática, você percebe quando está perdendo o timing e a comédia é orquestrada, é como música. É preciso caçar o tempo cômico, a todo o instante. Não é fácil fazer comédia. Algumas pessoas se aproximam de mim e ficam decepcionadas, acham que sou uma pessoa superengraçada, mas fazer rir envolve muitos segredos. Lógico que tenho meu humor, mas não sou dessas que chega, abre a boca e todo mundo começa a rir.

Brasileiros – E como surgiu a ideia de fazer o Retrato Falado, sua primeira parceria de grande sucesso com o Luiz?
D.F. –
Estava grávida do Pedro, fazendo o quadro Vida ao Vivo, com quatro meses de gravidez e meu médico recomendou que eu não ficasse na ponte-aérea. Ia sair do programa e, no meio desse impasse, o Carlos Manga me convida para um quadro no novo humorístico que ele iria dirigir. Disse que não podia aceitar, estava impedida de trabalhar e, no final da conversa, ele falou uma frase mágica que nunca me esqueço: “Insisto em que você participe. Você faz o que quiser e com quem quiser”. Conversei com o Luiz e ele teve a ideia que foi a gênese do Retrato Falado. As pessoas enviariam depoimentos gravados em vídeo e nós os representaríamos. Achei meio inviável. Demandaria muitas externas e locações, mas o Luiz é muito empreendedor. Quando quer fazer algo, vira uma locomotiva. Fomos ao Rio e ele explicou o projeto ao Manga, um cara que está na TV há muito tempo, viu a coisa toda se formar e tem uma visão muito aguçada do veículo. O Manga ouviu tudo e foi bastante sucinto: “Ok. O projeto é muito bom. Vamos fazer!”.

Brasileiros – O quadro recebia depoimentos de mulheres de todo o País. Quais nuances percebeu entre essas mulheres?
D.F. –
O Retrato Falado me deu um grande panorama dessa mulher brasileira de classe média, de como ela resolve os problemas de um jeito muito feminino, muito mãe e muito mulher ao mesmo tempo. Tinha depoimentos tão bons, que dava vontade de colocar a íntegra no Fantástico e ponto final! O quadro também me ensinou coisas importantes sobre a minha profissão. No começo, eu fazia tudo com base nos gestos, no olhar e na voz daquelas mulheres e esse ritmo da vida, muitas vezes, não servia ao programa. Via algumas cenas e chegava à conclusão de que eu estava fazendo um arremedo da realidade. Uma coisa tosca. Entendi que a minha maior função de intérprete é pegar uma informação, absorvê-la e repassar para alguém. O Retrato Falado é um filho muito querido para nós. Gravei até 20 dias antes de o Pedro nascer. Uma barriga enorme, filmando dentro de uma piscina e ignorando a barriga. Os personagens simplesmente tinham uma barriga e pronto.

Brasileiros – E como foi partir daquele teatro quase de guerrilha, ingressar em peças de acento tão popular, fazer telenovela e entrar de vez no universo da TV?
D.F. –
Mergulhar nesse novo mundo foi um negócio louco para mim. Eu tinha um grupo que pesquisava comédia dell’arte e fazia seminários para discutir textos. Pesquisava Eugenio Barba e daqui a pouco estava no palco, só de calcinha e soutien, com o Rogério Cardoso correndo feito louco atrás de mim. Era um tempo muito difícil e eu precisava ganhar dinheiro. Às vezes, eu ia para a rua com o dinheiro da passagem. Lembro que íamos tomar café com o grupo e tinha de pedir pão na chapa, pois não tinha dinheiro para pagar um misto para todos. Depois disso, quando fiz Barriga de Aluguel, saí da casa da minha mãe, aluguei um apartamento em São Paulo, passei a morar aqui e aqui conquistei muitas coisas boas.

MUITOS DIRETORES EM UM SÓ

No cinema, na TV e agora no teatro, Luiz Villaça se multiplica para contar histórias

Em minibiografias clonadas do Wikipedia prolifera na internet o factoide que dá conta de que Luiz Villaça formou-se no teatro e foi ator. Levanto a questão durante um intervalo de um dos ensaios da peça em que, justamente, debuta nos palcos e ele diverte-se ao se lembrar de que o equívoco já rendeu situações hilárias: “Produzi A Alma Boa de Setsuan, mas essa é minha primeira direção no teatro. Divirto-me com isso. Dia desses, fui dar uma palestra no SESC e o cara anunciou: ‘Está aqui conosco o Luiz, cineasta e diretor de televisão que, curiosamente, começou sua carreira no teatro’”. Sem Pensar, peça escrita pela adolescente Anya Reiss, que Villaça escolheu para a nova empreitada, foi descoberta por acaso, durante um passeio em Londres: “Eu e a Denise assistimos à montagem de uma peça dessa menina e ficamos muito impressionados. Ela é quase um Mike Leigh (o cineasta britânico de Segredos e Mentiras). Fala de questões familiares e não escreve uma palavra sem pensar. Quando senti a contemporaneidade do texto, decidi que queria fazer a peça. Fazer teatro está sendo algo inusitado para mim.

DESAFIO EM CENA
A menos de um mês da estreia, luiz villaça dirige o elenco de Sem Pensar

A peça é como um longa-metragem com um plano geral sem cortes. Tudo acontece em um palco com dois andares, quatro ambientes e oito atores contracenando simultaneamente. Tudo tem de funcionar coreografado e o timingtem de ser perfeito”. Tarimbado, Villaça dirigiu centenas de programas de TV, muito cinema publicitário, alguns curtas e três longa-metragens, dois deles protagonizados por Denise (Por Trás do Pano, de 1998, e Cristina Quer Casar, de 2001), e o mais recente (Contador de Histórias, de 2008) produzido pela esposa e estrelado pela atriz portuguesa Maria de Medeiros. Formado em cinema, Villaça fala de suas origens, lembrando tempos em que era uma espécie de Robin Hood: “Venho de um período terrível para quem fazia cinema no Brasil. Eu e minha turma nos formando, e a indústria do cinema morrendo. Conheci a Denise fazendo um curta, em 1994. Um filme meu, chamado Até a Eternidade. Nessa época, eu brincava que era Robin Hood. Tirava dinheiro da publicidade e levava para o cinema”. Anos mais tarde, a Lei Rouanet daria novos horizontes a ele, e aos 33 anos – e não aos 55, como vivia a calcular -, em 1998, Villaça conseguiu concluir seu primeiro longa. “Foi mágico. Era o início da retomada do cinema e a maioria da equipe estava fazendo seu primeiro filme. Lembro que acabamos a primeira cena, dei corta, e caímos numa tremenda gargalhada. Não acreditávamos que aquilo estava acontecendo. Parecia um milagre.”

Denise hoje e amanhã
As impressões da atriz sobre seus personagens em Sem Pensar e Hoje, suas próximas ambições artísticas, os rumos tomados pelo País ao longo dos últimos 25 anos, e uma preocupação com o futuro

Brasileiros – Depois de tantos êxitos, qual o segredo do sucesso para você, Denise?
D.F. –
A receita do sucesso é algo que a gente nunca tem. Produzir um espetáculo, um filme, é sempre um tiro no escuro, mas o que é muito determinante para os projetos alçarem voo é a vontade de sair correndo para contar algo que arrebatou seu coração. Chega uma hora que você, simplesmente, não fica mais em casa esperando o telefone tocar e ser chamado para algum trabalho. Você é tomado pela vontade de fazer.

Brasileiros – Falando nisso, parece que todos resolveram fazer stand-up comedy. Há uma epidemia do gênero no País. O que pensa disso?
D.F. –
A impressão que tenho é… Sabe aquela coisa da estrela que explode, se fragmenta em pó e dispersa por todos os lados? A impressão que tenho é essa, que o mundo deu uma explodida e tudo ficou multi. Você abre o jornal e encontra 150 peças em cartaz e as pessoas não se dão conta de tanta informação. Acho essa explosão do stand-up natural, mas produzir humor de boa qualidade não é para qualquer um. Claro que existem caras geniais que tiram humor do nada, mas como tudo que é multi, essa onda do stand-up é um tanto irregular. Vai de cinco a dez e tem muito seis por aí, alguns sete e oito, e pouquíssimos 10.

Brasileiros – Você que fez parte do TV Pirata, um programa cultuado até hoje, o que pensa do humor produzido para a TV atualmente?
D.F. –
Acho que muita coisa derivou do TV Pirata, um programa muito transgressor para a sua época. Tinha essa irreverência dentro do próprio veículo que o programa propunha, essa metalinguagem que, hoje, é muito assimilada na TV. Programas como o Pânico na TV! e até o CQC, que vem de um formato estrangeiro, tem total diálogo com essas questões levantadas pelo TV Pirata. Olhar para o “umbigo” do veículo e deflagrar com irreverência o ridículo que há ali. O Vida ao Vivo, que fiz com o Pedro Paulo Rangel e com o Luís Fernando Guimarães, e o Junto e Misturado, eram esquetes de cotidiano totalmente herdeiras do TV Pirata. Como na vida real, na TV nada se cria, já foi feito de tudo, e tudo é reinventado. Dificilmente, surgirá alguma coisa que possa ser chamada de nova e não vejo problema algum nisso. Gosto muito de uma música do Carlos Careqa que fala assim: “Gente não precisa ser sempre original/ser igual é legal…”. O que é bom multiplica, dá muda. A Grande Família está na grade da Globo há mais de dez anos e prova a eficácia desse humor cotidiano.

Brasileiros – Você procura papéis que te desafiem? Como é que escolhe seus papéis?
D.F. –
Eu acredito muito no humor, mas me interesso cada vez mais por esse fio de navalha entre drama e comédia. Não que eu não tenha meus dramas e não os leve a sério, mas acho a vida muito risível. Quando rimos de nós mesmos, nos enxergamos e percebemos que, muitas vezes, somos patéticos. Volta e meia chego à conclusão de que lucidez não serve para nada. Tanta coisa que a gente diz, teoriza e afirma ter total clareza, não nos livra de passar pelo drama das coisas.

Brasileiros – Você acabou de protagonizar Hoje, o novo filme da Tata Amaral. Como foi fazer um papel tão dramático?
D.F. –
Nesse filme da Tata, eu talvez tenha feito o papel mais denso de minha carreira. Com uma complexidade enorme de conflitos. Uma personagem esburacada. Sem nenhum traço de humor. Uma mulher que está comprando um apartamento com o dinheiro da indenização do marido desaparecido que, de repente, ressurge. Adorei trabalhar com a Tata, ela é uma diretora de uma sensibilidade que provoca. Entrei em terrenos muito estimulantes, foram dez dias de ensaio e mais três semanas e meia de filmagem. Uma única locação, um apartamento na Avenida São Luís. Contracenar com o César Trancoso também foi uma rica experiência. Ele entrava em cena e você não podia deixar de pensar: “Não estou suficientemente imbuído da coisa”. Observar o César atuar me trazia isso, porque ele é um ator de muita intensidade. O olhar dele e as mínimas coisas que ele faz são especiais.

Brasileiros – Fale de sua relação com a peça da Anya Reiss. Como tem sido embarcar no texto de uma autora tão jovem?
D.F. –
Essa menina escreveu um texto sensacional. Muito preciso, muito enxuto. Nesse fio da navalha entre o drama e a comédia. A comédia é ligada ao cérebro. Você só ri daquilo que compreende e o texto da Anya é impressionante. Canso de falar nos ensaios: “Gente, como essa menina é boa”. Ela não dá um ponto sem nó. As coisas se desenrolam e você vai achando as razões das intrincadas teias que ela tece.

Brasileiros – Assisti ao ensaio de duas cenas e observei grandes momentos no texto…
D.F. –
A trama é muito boa. Uma história de cegueira familiar. Pessoas que almoçam e jantam juntas, todos os dias, e se conhecem muito pouco. Sem Pensar trata dessa falta de comunicação e dessa cegueira. É um texto estarrecedor. Parece um vaudeville dramático. Você ri com o que é falado, com a maneira como é falado e com a métrica dos diálogos. A Anya é muito irônica. Escreve o tempo inteiro mostrando como somos ridículos. Faz rir muito, mas ao mesmo tempo expõe uma barra pesadíssima. Uma família desajustada e louca.

Brasileiros – E o que pode dizer de Vicky, sua personagem em Sem Pensar?
D.F. –
Acho que vou ser muito feliz com a Vicky. Ela é uma mulher que está em TPM constante. Tudo parece fazer “tuiiiim” nos seus ouvidos. Eu acho que se você não cuidar do cotidiano, ele faz você ter atitudes irracionais. Tem a mãe de uma amiga que a gente fala “Bom dia!”, e ela responde “Que éééé´?!”. Essa falta de equilíbrio acaba sendo um dos elementos mais engraçados da peça. O casal que faço com o Kiko é uma dessas duplas de pais envolvidos em brigas de um cotidiano patético, de um casamento em crise que chegou às raias da loucura.

Brasileiros – Você adotou São Paulo há mais de 20 anos. Que relação tem com a cidade?
D.F. –
Fui e sou muito feliz em São Paulo. Quando cheguei aqui, foi a primeira vez que fiquei sozinha na vida e achava tudo o máximo. Parecia que estava morando em Nova York. Havia de tudo em São Paulo e o prazer da cidade, muitas vezes, está em quatro paredes. As relações de amizade e os amigos que você faz aqui são mais intensos. Tem essa coisa que parece folclore, que carioca convida, mas não marca data e hora – coisa que eu discordo, acho que não é muito assim! -, mas também sei que São Paulo tem um jeito de receber que faz uma diferença muito grande. São Paulo é uma cidade ótima, os bairros têm uma certa autonomia e você, geralmente, tem acesso a tudo. No Rio, se você não está na Zona Sul, como no meu caso que morava no subúrbio da Zona Norte, isso faz uma diferença danada. O Rio parece duas cidades, mas gosto muito do Rio. Eu talvez não tenha água salgada na veia, mas confesso que adoro praia. Ia de ônibus à praia, todo final de semana, com minha família.

Brasileiros – Você aparenta ser uma muito reservada, como faz para driblar o assédio na rua?
D.F. –
Nunca deixei de ir a lugar algum por correr o risco de dar entrevistas, conversar com alguém ou dar autógrafo. Não posso perder contato com essa matéria-prima que é a vida. Quando um ator deixa de ter contato com a vida, a referência dele passa a ser terceirizada, passa a ser os filmes que ele vê e os livros que ele lê. Às vezes, penso: “Vou caminhar na esteira de casa. Vou a uma academia…”. E digo para mim mesma: “Não, boba! Vai caminhar na rua, que a rua é cheia de vida”. Você sai para a rua e vê um velho passeando com o cachorro, vê alguém jogando lixo pela janela, vê crianças, vê um casal namorando e outro brigando. A vida não para um minuto e você não pode se privar dela como ator.

Brasileiros – Você construiu sua carreira ao longo de um período em que o País também empreendeu grandes transformações. O que pensa do Brasil de hoje, Denise?
D.F. –
Acho que a gente lutou e o País melhorou muito. Eu e meus amigos somos bem partidários dessa percepção. Saí às ruas pelas Diretas Já!, quando estava na escola de teatro. 1989 foi meu primeiro ano em São Paulo e fiz campanha para o Lula. O que posso dizer é que é inegável que melhoramos muito. Nossas escolhas políticas e dúvidas são muito melhores. Podemos ter opiniões políticas diferentes, mas vimos pessoas que a gente confiava e credenciava terem o direito de chegar ao poder. Tanto o Fernando Henrique, quanto o Lula chegaram ao poder. Eles podem ser de Direita ou Esquerda, podem ser inimigos políticos, ter diferenças que vão render muita conversa de mesa de bar, mas hoje nós podemos discutir isso. Melhoramos muito, mas tem um negócio que para mim ainda é uma tremenda vergonha que é a educação. O País teve um crescimento econômico impressionante, mas de uma disparidade absurda, com as metas de qualidade da educação. Ela não evoluiu nada, só piorou!

Brasileiros – Você que estudou muito tempo em escola pública, que soluções apontaria?
D.F. –
Do jardim da infância à faculdade, estudei em escola pública. Meus pais nunca pagaram um centavo por colégio nenhum. Hoje, essa mesma trajetória em uma escola pública é uma coisa que nem cogito para os meus filhos. Um novo projeto educacional teria de ensinar as crianças e os jovens a ter decodificação poética. Não temos indivíduos preparados para a arte e nós fazemos arte como poucos. Nem a nossa elite é apta a consumir arte, ela também não tem esse decodificador poético. O cara é um tremendo milionário, mas a situação que vive é um tanto triste. Que espécie de riquezas ele cultiva? Que riquezas está valorizando? Nossa elite está cada vez mais, tristemente, distanciada das grandes riquezas da vida. A gente se julga muito liberto, mas o tempo todo vivemos com uma chave virada na cabeça por conta do money, money. Tudo é legitimado pelo dinheiro. Quando fiz A Alma Boa de Setsuan, foi muito difícil manter a peça em cartaz, e mesmo assim rodamos o País por mais de dois anos. Eram 12 atores em cena e uma equipe grande, 17 pessoas. Eu podia ter feito um monólogo, e não que eu não respeite os monólogos, mas não dá para você pensar somente nesse tipo de saída. Não ganhava o dinheiro que eu poderia ganhar se estivesse no palco sozinha, mas eu ganhava o dinheiro que pagava o que eu precisava pagar. A escola dos meus filhos, o leite das crianças e, para mim, estava ótimo. Tenho outras riquezas.

RECONSTRUIR O PASSADO

Protagonizado por Denise, Hoje, o novo longa de Tata Amaral toca em feridas abertas pela ditadura

A paulistana Tata Amaral foi uma resistente em um dos períodos mais nebulosos para o cinema brasileiro: a transição dos anos 1980 para os 90. Ignorando inviabilidades, produziu, entre 1986 e 1992, sete curtas-metragens, três deles dirigidos com o ex-companheiro Francisco César Filho. O sonho do primeiro longa foi realizado em 1997. Adaptação do romance de Fernando Bonassi, Um Céu de Estrelasestabeleceu uma fecunda parceria com seu ex-professor Jean-Claude Bernardet, e fez ascender o nome da cineasta ao posto de um dos mais importantes de sua geração. Em 2000, Bonassi escreveu o roteiro de seu segundo longa Através da Janela, especialmente para a atriz Laura Cardoso. Na sequência, um êxito comercial que rendeu série para a TV Globo, o filme Antônia. No final de março, Tata concluiu as filmagens de Hoje, adaptação de Prova Contrária– outro romance de Bonassi. Conversamos com a cineasta sobre suas impressões do filme e a importância de resgatar nosso obscuro passado recente.

Brasileiros –Depois de Um Céu de Estrelas e Através da Janela, você volta a trabalhar com o Bonassi. Como se deu a escolha?
Tata Amaral –Esta é minha segunda obra baseada em romance do Fernando. Ele é um autor contemporâneo que, em seus livros, trabalha com o que Jean-Claude Bernardet chama “dramaturgia concentrada”. Uma situação dramática explorada até seus limites, algo que me interessa muito.

Brasileiros –Como foi dirigir a Denise?
T.A. –A Denise é uma atriz de imensos recursos dramáticos. Tem uma experiência e um talento incríveis. Uma parceira fora de série e uma pessoa deliciosa de se conviver. Foi um prazer muito grande construir a Vera com a Denise. A veia dramática dela está sempre pronta para agir.

Brasileiros –Denise fez grandes elogios ao ator uruguaio César Troncoso. Como foi trabalhar com ele?
T.A. –César (na foto ao lado com Denise) é também um ator de muitos recursos e grande intensidade dramática. Tem larga experiência no teatro uruguaio e se destacou no cinema em filmes como O Banheiro do Papa, de César Charlone. No set, brincávamos que Troncoso era o Al Pacino sul-americano. Ele constrói atuações intensas, profundas, com um gesto mínimo ou uma simples expressão facial.

Brasileiros –Muitos filmes da retomada do cinema brasileiro tratam desse período sombrio do País. Que diferenciais temáticos pode apontar em Hoje?
T.A. –Como esse novo filme, pretendo falar do direito à justiça e à memória. Os brasileiros tendem a se esquecer do passado, tratá-lo com indiferença e colocar os problemas debaixo do tapete. Foi exatamente isso que fizemos com relação à tortura: ao contrário dos demais países da América do Sul, não identificamos nem punimos os torturadores. Não por acaso, existe tortura até hoje em nossas prisões. Para nos consolidarmos no caminho da democracia e da justiça social, precisamos tratar da questão da tortura no Brasil, inclusive e, principalmente, essa tortura praticada no passado.


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