Retratos de uma época explosiva

De tão bom que é, fui lendo aos pouquinhos para não acabar logo. Difícil dizer o que é melhor neste livro: a história ou o texto, ambos fluindo mansamente ao longo de 97 pequenos capítulos, distribuídos por 318 páginas, alternando alegrias e dores, conquistas e derrotas, sentimentos e reflexões de um período explosivo (1966-1968), do desbunde à luta armada contra a ditadura, que jogou para o alto as velhas certezas do Brasil e do mundo.

Realidade – História da Revista que Virou Lenda (Editora Insular), de Mylton Severiano, o Myltainho, um dos protagonistas dessa grande aventura humana, é o retrato em branco e preto de um tempo muito louco em que houve uma ebulição criativa no cinema, no teatro, na música e também na imprensa, e deixou marcas profundas e duradouras na cultura brasileira.

Logo na orelha do livro, o autor resume a ópera: “Realidade mexeu com as estruturas do ‘sistema’, desafiou os conservadores, os preconceituosos, quebrou tabus. E em plena ditadura militar”.

Só para dar um exemplo: quando bateu nos 500 mil exemplares vendidos em um País de 90 milhões de habitantes, a revista tratava em suas reportagens de homossexualismo, liberdade sexual, aborto e fim do celibato dos padres, temas que são tabus até hoje, como vimos ainda agora na sucessão papal.

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“Myltainho, nós viramos grife”, constatou Paulo Patarra – o criador da revista e o chefe de redação que montou sua equipe com a seleção brasileira dos jornalistas da época –, ao lhe passar um tesouro: as 500 laudas de um diário que escreveu sobre os 33 números da Realidade publicados sob o seu comando. “É seu. Faça o que quiser com isso.” Patarra morreu em janeiro de 2008, mas sua obra sobreviveu, sendo reconhecida como a melhor e mais revolucionária publicação brasileira de todos os tempos.

Novo JornalIsmo – A revista chamou a atenção do leitor por seu aspecto diferenciado em termos de formato e desenho das páginas, além da força das fotografias e construção dos textos das reportagens

Os 251 mil exemplares do no 1 da Realidade foram para as ruas em abril de 1966 e três dias depois tinham acabado nas bancas para a alegria de Patarra e sua trupe: “Poucas vezes vi tamanho profissionalismo e bom caráter”, escreveu ele em seu diário, que serviu de fio condutor para esse livro publicado no final de março, 47 anos após o lançamento da revista. Juntar talento com caráter é a receita infalível para fazer qualquer coisa boa, embora Myltainho não acredite em fórmulas prontas: “Ninguém tem resposta científica, manual que ensine a cair na alma do leitor”. Paulinho Patarra dá uma pista para vender mais a cada edição, uma bela lição de jornalismo: “Vender pelo gozo de espalhar, pôr no mundo o que tira das tripas, cérebro, coração, pâncreas, fígado, usando olhos e ouvidos e todos os sentidos no saber perguntar e relatar”.

Em resumo, o lema da revista era: “O doutor não pode encontrar erro e a empregada dele precisa entender tudo”.

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Muito metido, com a cabeça raspada por ter entrado na faculdade, fui pedir emprego no auge da Realidade, em 1967, levando minha “longa experiência” de repórter da Gazeta de Santo Amaro, um jornal de bairro. Quem falou comigo? Pois é, foi justamente o Myltainho, que deu uma gostosa risada e me aconselhou a gramar bastante antes de voltar lá, pois naquela redação só trabalhava cobra criada. Não deu tempo de sermos colegas na revista, o AI-5 veio antes, mas acabei cruzando com essa turma boa em outras redações, sempre sonhando em ser como eles, os mestres de toda uma geração de jornalistas.

O Inventor – O jornalista Paulo Patarra (1933-2008) é considerado o pai da Realidade

Gostaria de falar de cada um, mas não caberia aqui e temo me esquecer de alguns, pois todos são protagonistas dessa história. Repórteres, editores, fotógrafos, pessoal da arte – eram os melhores em suas áreas. Um, em particular, me chamaria mais atenção. Com ele, aprendi a não jogar palavras fora. Foi o Serjão, o editor de texto Sérgio de Souza, o “vietcong” da equipe, segundo Patarra, que só trabalhava com lápis e borracha na mão para não magoar o autor da reportagem. E transformava cascalho em coisa boa, como aconteceria algumas vezes comigo.

New Journalism? Ora, já fazíamos em 1823.” Essa é a questão que Myltainho responde no capítulo 62, para acabar com a velha história vira-lata de que tudo que criamos de bom é copiado de algum modelo estrangeiro. Ao atribuir o fim da fase de ouro da Realidade à “ditadura militar fascistoide” e não “à tendência do mercado editorial”, como alegou a Editora Abril, o autor bate duro em “colegas jornalistas, mestrandos, doutorandos, que tentam explicar nosso sucesso como resultado da influência ou imitação do new journalism. Bobagem. Só entramos em contato com luminares dessa corrente, Tom Wolfe, Norman Mailer, Truman Capote, Gay Talese, entre o fim da década de 1960 e início dos anos 1970. Mas, por favor, nem precisamos ir a milenares relatos bíblicos: já tínhamos novo jornalismo com José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838) no início do século 19”.

Lembra Paulo Patarra em seu diário: “Realidade foi uma revista dos profissionais que a faziam. Roberto Civita sabe disso. Eu só dizia – e passava para a equipe – uma ideia: fazer a revista que nós queremos ler. É fácil, moçada: é só a nossa revista”.

Capas Históricas – Em 1966, Pelé posou para a primeira edição da Realidade. um ano depois, a publicação investiu em assunto feminino

Ao longo de quase meio século após o seu lançamento, tivemos várias tentativas de diferentes editores para fazer revistas mensais de reportagem no “estilo Realidade”. A mais longeva e bem-sucedida é justamente esta revista que está em suas mãos, caro leitor, a nossa Brasileiros. Por um desses milagres difíceis de explicar, mesmo sem ter uma grande editora ou um sócio capitalista por trás, só com a coragem do publisher Hélio Campos Mello, antes de tudo um fotógrafo, e de sua valente mulher, Patricia Rousseaux, diretora de planejamento, chegamos a esta edição 69. Como modelo que nos inspirou, essa também é uma revista dos profissionais que a fazem, a revista que nós queremos ler.

Viva a Realidade, viva nóis! Contrariando os profetas do apocalipse, a reportagem não morreu. A Realidade circulou no País de 1966 a 1976, mas sua fase mais notável foi a primeira, entre 1966 e 1968.


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