Lá para os lados de Santana do Parnaíba, no verão, a chuva vem brava. Sempre pelas encostas do Vuturuna, vergando árvores, ondulando o pasto, assobiando na cerca. Naquele fim de tarde, as nuvens foram se avolumando rapidamente. Plúmbeas. A brisa começou leve com cheiro de mato e aos poucos foi encorpando. De repente, começou a descer água. Muita água. Entrando pela varanda, chicoteando as janelas, encharcando tudo.
Começaram os raios e faíscas por todo lado. Caiu a força. Quando é assim, eu sei, a luz não volta em menos de cinco, seis horas. Não tem jeito, a manutenção encalha na estrada.
Lembrei de um trator de esteira que fazia a terraplanagem mais abaixo de casa. O operador, muito habilidoso, trabalhava de sol a sol. Olhei lá pra baixo e vi o camarada correndo pra sua moto. Assobiei forte, no dedo, e fiz sinal pra ele chegar. Ele não passaria na estrada, um mingau. Que entrasse pra esperar, tomar alguma coisa. Ele agradeceu e entrou. Abri um vinho.
Ele estava nos seus trinta e poucos anos, vivia em Santana mesmo. Tinha sido seminarista e então frade franciscano. Queria deixar sua marca no mundo. Depois de dez anos de entrega, desenganado, largou tudo, cursou Direito e foi trabalhar numa ONG. O mesmo ideal: deixar sua marca no mundo.
Um dia, já casado – bem casado, frisou –, chamou a mulher para expor suas insatisfações. Explicou o rumo desejado e as consequências, sobretudo as financeiras. Ela, solidária, aceitou a inesperada proposição e assim ele se tornou operador de retroescavadeira e trator de esteira. Foi o jeito que encontrou para modificar o mundo: intervenções palpáveis, duradouras e úteis. Abrira estradas, ruas e praças. Campos de futebol, parques e jardins. Como incorporar essa nova conceituação?, perguntei. A exposição foi breve e impecável. Logo voltou à mulher.
Que mulher aceita que o marido largue a advocacia para ser operador de retroescavadeira? E seguiu falando dos encantos da própria mulher. O que não faz o vinho? E disse mais ainda. Que ela ganhava muito bem no fórum, fazia risoto de abobrinha e bisteca à fiorentina. Fazia fios de ovos e batia bolos para o café da manhã. Ele ainda discorreu sobre o natural caminho da castidade sacerdotal para o sexo tântrico, rumo ao universo ayurvédico. Caceta!, pensei eu, considerando seriamente a mulher do próximo.
Eu disse que sorte a sua, encontrar uma mulher assim, deve ser filha única, bem criada. Ele disse não, ela tem uma irmã gêmea. Eu perguntei se a irmã também trabalhava no fórum. Ele disse não, trabalha na Casa da Cultura. Aí, eu joguei bem: Ela deve ser a Marcia. Ele respondeu não, é a Marlene, uma morena alta.
Que coisa!,disse eu bestamente. A chuva havia passado, ele agradeceu a acolhida e se mandou na moto. Recomendei cuidado na lama.
Não é do meu feitio tomar vinho à luz de velas com operador de retroescavadeira, mas não esquentei a cabeça. Isso acontece. Soltei meu cachorro, fechei a casa e fui dormir. Adormeci pensando seriamente em operar retroescavadeira e, claro, dar um pulo na Casa da Cultura. Por que não?
*PhD pela Universidade de Cambridge, foi professor titular da USP. É autor dos livros Choro de Homem (Ateliê Editorial) e O Pai de Max Bauer (Ateliê Editorial/Editora Brasileiros).
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