Ritual frenético

Imagine uma festa em que você ouve, em um dos ambientes, o samba Jornal da Morte (da polêmica frase “tresloucada seminua/jogou-se do oitavo andar/porque o noivo não comprava maconha pra ela fumar”) e a letra é repetida em uníssono, muito embora os integrantes do “coro” tenham, em média, entre 20 e 30 anos e Jornal da Morte, de Roberto Silva, mais de 50. Em outro espaço, repleto de adereços tropicalistas, músicos e não-músicos empunham instrumentos de verdade e infantis para produzir uma pequena usina de inusitados sons. Mais alguns passos e o visitante se sente em San Francisco de 1967: jovens apinhados dançam ao som de White Rabbit, do Jefferson Airplane. De volta ao corredor, garotos e garotas nus coreografam um frenético transe. Essa festa existe em São Paulo, atende por Voodoohop (pronuncia-se vuduróp) e recentemente passou a levar sua proposta de itinerância para outras capitais, como Rio de Janeiro, Salvador, Brasília e Curitiba.

A aventura mambembe da Voodoohop tem levado milhares de jovens a espaços decadentes, como estacionamentos, prostíbulos, sítios (onde acontecem as Voodoostock, espécies de festivais realizados pela mesma turma que organiza as festas), inferninhos festivos, como o Bar do Netão (um diminuto boteco da Rua Augusta onde tudo começou), e o Paribar (tradicional reduto de boêmios da Praça Dom José Gaspar, no Centro paulistano). A menos de 300 m do Paribar, o Trackertower, sede oficial da Voodoohop, é um capítulo à parte. Extinto Sindicato de Empresários de Diversões, que agregava de parques de diversões a circos, o 2o pavimento do prédio de 12 andares, ocupado somente pela trupe, é um labirinto hexagonal, formado por um corredor de circulação contínua e diversas salas com varandas art déco, onde os frequentadores compartilham baforadas, goles de cerveja e muita catuaba. Com três anos de intensa programação, o Trackertower, que era ocupado pelo DJ residente e um dos sócios da Voodoohop, Rubens Peterlongo, abriga também outras festas, como Calefação Tropical, Veneno, Carlos Capslock e Trabalho Sujo.

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A itinerância e a trupe que produz a Voodoohop vem crescendo, desde que seu idealizador, Thomas Haferlach, um simpático alemão de 30 anos, formado em Inteligência Artificial na Universidade de Edimburgo, na Escócia, veio parar no Brasil com a ideia de iniciar um passeio pela América Latina, depois de trabalhar para a Amazon. Desde que chegou, há cinco anos, Thomas não arredou pé de São Paulo. Apaixonado pelo Centro, ele conheceu no turbilhão noturno da Rua Augusta, na claustrofóbica pista do Netão, uma parceira de produção, de pick-ups e, hoje, sua mulher, a DJ francesa Laurence Trille, 29. Ironia das grandes, o casal frequentou por dois anos a mesma universidade em Edimburgo, mas só foram se encontrar na Augusta. Consequência do acaso, pois ficar por aqui estava longe dos planos do alemão. “Decidi que queria conhecer a América do Sul, mas cheguei aqui e mudei completamente de opinião. Na Europa, você pensa muito e vive menos, está sempre pensando nos anos que virão. Aqui, aos poucos, comecei a viver o presente. Tropicalizei.”

Laurence veio ao Brasil a convite do Consulado Francês em São Paulo para trabalhar em eventos culturais do Ano da França no Brasil, em 2009. Recomendada por uma amiga jornalista, frequentadora da Voodoohop, a conhecer o alemão, Laurence descobriu, já em seu primeiro sábado no Brasil, além da coincidência de terem convivido inadvertidamente na Escócia por dois anos, uma generosa sinergia de interesses. Ambos cresceram cultuando propostas alternativas de diversão noturna – Laurence com um coletivo amador chamado Souk Machines, que ocupa espaços públicos com festas-relâmpago e performances em Paris e ele com o interesse por festas regadas a música eletrônica que repetiam rituais paganistas em Edimburgo.

Em uma das festas que antecederam a chegada ao Trackertower, Laurence se viu tendo de limpar às pressas os banheiros e quartos quadriculados do Nova Babilônia, um bordel alugado com a promessa de que seria entregue limpo às 16 horas: “Eu lá recolhendo camisinhas e pensando: será que minha mãe imagina que estou aqui em São Paulo, uma hora dessas, limpando um puteiro?!”. A dura empreitada de Laurence e o espírito colaborativo entre organizadores e frequentadores são reiterados no depoimento de um habitué e funcionário esporádico, o host Volatille Ferreira, 27, excêntrico misto de dançarino, garçom e performer, e um dos que costumam deixar o pano cair e desfilar peladão pelos corredores do Trackertower: “Há três anos frequento a festa e, muitas vezes, trabalho nela. Aos poucos, fui me descobrindo parte da Voodoohop, me realizando e me libertando. Uma das lembranças mais marcantes foi quando dancei pelado na sacada, diante de milhares de pessoas na Virada Cultural de 2010”.

A “libertação” defendida por Volatille chancela a proposta inicial de Thomas, que pretendia que a festa tivesse um viés ritualista de expurgação de males, de libertação – daí o nome Voodoohop. No depoimento da estudante de cinema Mariana Vasconcelos, “livre” é o primeiro adjetivo utilizado pela paulistana de 23 anos: “A Voodoohop é uma festa livre para todos e para fazer o que quiser. Você se joga na pista, arranca a roupa, pula, e não é o único a fazer isso. É uma válvula de escape para o prazer, necessária para quem vive aqui. É a festa que faltava em São Paulo.”

O comentário de Mariana pode sugerir exagero, mas é fato que a iniciativa de Thomas e Laurence trouxe novos ares noturnos para o Centro, palco de um dilema de décadas: é um espaço público que precisa ser revitalizado, mas que recebe pouco estímulo para acolher vida. Thomas é um entusiasta da tomada de prédios abandonados no Centro e mais de uma vez articulou o público da festa para campanhas colaborativas, como a doação de livros para a formação de bibliotecas dessas ocupações. Esse urbanismo voluntário de Thomas vem desde o Pós-Guerra, articulando frentes alternativas da juventude europeia que há décadas impõe à sociedade local novos modelos de convívio: “Sempre achei lamentável que o Centro fosse tão perigoso e solitário. Para mim, é o lado mais bonito de São Paulo. Tento trazer alguma ebulição a ele e fugir do burburinho da Augusta. Em Berlim, os jovens aproveitam qualquer buraco ou, na falta de um, se reúnem até mesmo na rua”.

As mais recentes incursões fora de São Paulo levaram a proposta de catarse coletiva da Voodoohop ao Morro do Vidigal, no sábado de carnaval carioca, e, no réveillon de 2012, ao Pelourinho e à idílica Ilha de Boipeba, na Bahia. “Viajamos com umas 20 pessoas e a reposta foi surpreendente. As pessoas estavam carentes de algo mais experimental e tocamos de tudo.” A frase de Laurence é interrompida por Thomas: “Fomos em uma van com 17 loucos, uma experiência bem Magical Mistery Tour!”. A propósito da alusão à lisérgica fase dos Beatles, é frequente a comparação, feita em reportagens sobre a festa, com o movimento hippie, analogia que causa certo incômodo: “Admiro os ideais hippies, mas não queremos mudar o mundo. Fazemos algo que muda temporariamente o comportamento das pessoas. A palavra hippie tem um peso de alienação pelo sexo e pela droga que me incomoda um pouco. Já disseram também que somos neotropicalistas, mas prefiro ser chamado de neontropicalista”, provoca Thomas.

Hippie ou “neontropicalista”, a Voodoohop só é possível à custa de uma rotina intensa, de muitos riscos, e essa roleta-russa envolve outras contingências extenuantes: “Muitas vezes, ficamos na ativa 24 horas ou mais. Vou à Rua 25 de Março, compro coisas para produzir a festa, recebo as pessoas e desmonto tudo no mesmo dia”, diz Laurence. A revelação é concluída com um largo sorriso de quem também se diverte muito. Atuando como hostess, DJ ou dançando com seus figurinos extravagantes, Laurence irradia e sintetiza o misto de “lisergia espontânea e diversão” que envolve a Voodoohop, como bem define a fotógrafa Marilia Vasconcellos, autora de uma polêmica série de autorretratos nus e, não por acaso, frequentadora assídua da festa: “Estar na Voodoohop é como estar em casa e entre os meus. A festa proporciona intimidade, é acessível, aproxima as pessoas e liberta. Música e ambiente são partes essenciais desse processo. Lisergia espontânea e diversão são – e sempre serão – o cartão de visita da Voodoohop”.

Desde o final de 2010, a festa – que chegou a ser caçada pelo governo do Estado por burlar a lei antifumo em seus dias de implantação – conquistou o apoio da Secretaria de Estado da Cultura e já foi celebrada em locais públicos, como o Centro Cultural da Juventude – CCJ. Na época da cassação, uma festa secreta, produzida a toque de caixa, questionou com bom humor a repercussão negativa em jornais e revistas. Vez ou outra, a Voodoohop adota temas e, desta vez, foi intitulada Coletiva de Imprensa, com entrada gratuita para quem fosse caracterizado de repórter ou fotojornalista. Do lado de fora, dezenas de carros de imprensa e viaturas deram um fim à brincadeira em menos de duas horas. Enfrentar a sisudez das cidades com irreverência também faz parte da fórmula de sucesso da Voodoohop.


Comentários

Uma resposta para “Ritual frenético”

  1. Avatar de plinio vicror
    plinio vicror

    Interessantíssimo.A noite nas cidades brasileiras ficou muito sisuda,sob a alegação da falta de segurança.Tem-se que OCUPAR A NOITE

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