Rivelino e o Dragão

Foto: Divulgação
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Muitos pintam de craque, muitos piam de craque. Muitos são tratados a aveia, vitamina e pão de ló, são protegidos e resguardados das intempéries do tempo – até o momento azado, a hora da verdade, o teste final diante das plateias. E muita plateia estronda e uiva em vão, à toa e dolorosamente: a estreia não nasce na testa do moço, que vai encolhendo e desaparecendo, até confundir-se – quando e mais feliz – com a maioria normal e medíocre dos jogadores normais e medíocres. Não se revelou – ou melhor: revelou-se negativamente.

É o caso do Nei, no Corinthians. Mas não é o caso de Rivelino, que ontem deu um esplendoroso e monstruoso show de bola no Pacaembu, para o qual as excelentes jornadas de Dias e Bellini melhor serviram de palco-pedestal.

Rivelino joga duro, joga maldoso, joga o fino – magistralmente: lição de bola do menino entre doutores. Revelou-se craque, craquíssimo em todas as dimensões da alma e do corpo, só os quatro lançamentos que fez (três a Flávio e um a Bazzani) bastam para elevá-lo à altura dos maiores.

Sua genialidade de tal maneira brilhou em campo, que acabou por iluminar até o cérebro de Flávio: o admirável, majestoso troglodita gaúcho, depois de deixar de marcar em duas rivelínicas oportunidades, simplesmente seguiu a direção do braço do mestre (que lhe apontou, em plena corrida, o local do lançamento), viu-se – milagre – sozinho diante de Suli, driblou-o e assinalou um gol de paralisar pássaro no ar, encobrindo Bellini, que se postara no centro do arco!

“Petulante e sinuoso, seu controle de bola e suas fintas, seus piques e lançamentos, sua inteligência e seus nervos, sua maldade gelada e sua fúria no comando do meio-campo são realmente demoníacas”.

Rivelino revelou-se. Não vai encolher nunca mais. Sua estrela sobe, grandiosa e solitária, dentro da equipe alvinegra de Parque São Jorge, dentro do futebol paulista, no céu do futebol bicampeão mundial. O Corinthians não ganhou (Dias estava lá… e Cabeção não estava), mas não importa: a fiel torcida, ontem, no Pacaembu, pôde soltar o seu generoso e portentoso bafo e desabafo de grandeza – que constitui o único, autêntico e verdadeiro reconhecimento de gênio.

Rivelino: estrela com nome. Petulante e sinuoso, seu controle de bola e suas fintas, seus piques e lançamentos, sua inteligência e seus nervos, sua maldade gelada e a sua fúria no comando do meio-campo são realmente demoníacas – são de jeito a provocar a agressão física por parte do adversário (reconhecimento de sua grandeza), à qual aliás, ele revida com prazer maligno.

Rivelino é mais do que a esperança, é a vingança dos “sofredores” corintianos. Depois de onze anos de fel e são-jorge, a fiel torcida acabou por desejar, ardentemente, a vitória do dragão com a qual se identifica e confunde.

A torcida corintiana é o dragão – e Rivelino é a labareda que sai da sua goela.

(Folha de S. Paulo, 8/3/1965)

* Uma das crônicas sobre futebol do poeta, ensaísta, tradutor e professor de semiótica Décio Pignatari (1927 – 2012) reunidas no livro Terceiro Tempo, lançado pela Ateliê Editorial.


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