Uma parede com prateleiras comuns, cheias de recipientes plásticos comuns, guarda um tesouro incomum: dezenas de aranhas caranguejeiras! Elas vieram de todo o Brasil, da Floresta Amazônica, dos campos rupestres mineiros, dos ocos das árvores, de ilhas formadas durante o enchimento de represas e das tocas rochosas de cavernas. A maioria está ali para estudos. Algumas são novas para a Ciência e esperam a vez na fila para ganhar um nome e a descrição de sua espécie em um artigo científico. Outras poucas são estrangeiras, vieram de fora pelas mãos de traficantes e foram apreendidas pela Polícia Federal, nos correios ou nos aeroportos. E há também as brasileiras que estavam a caminho do exterior e foram resgatadas antes de embarcar em uma das muitas rotas da biopirataria ou do tráfico internacional de animais silvestres.
O guardião do estranho conjunto é o aracnólogo Rogério Bertani, pesquisador do Instituto Butantan em São Paulo e um dos maiores especialistas em caranguejeiras do mundo. Ele se dedica a manter todas vivas, confortáveis e bem alimentadas. E há anos se empenha em mudar a imagem dessas aranhas, tidas como seres ameaçadores, venenosos, causadores de epidemias, monstros mutantes e tantas outras versões fantasiosas divulgadas no cinema, na TV e na literatura.
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Com a naturalidade de quem lida com um cachorrinho, Rogério tira caranguejeiras das caixas com a mão e as arruma para as fotos. Vigia de perto os passos alternados das oito patas peludas e as cerca nas bordas da mesa para evitar que a aranha da vez sofra algum acidente. “Ela está fora do ambiente dela. Pode cair da mesa e machucar as patas ou o abdômen, que é mais pesado”, justifica.
As tarântulas – como também são conhecidas – não picam nem possuem veneno como a armadeira, a aranha-marrom ou a famosa viúva-negra. Quando se sentem ameaçadas, liberam pelos urticantes que causam coceira e irritação, afetando mais seriamente apenas as pessoas alérgicas. Se manuseadas gentilmente, costumam ser muito bem comportadas, como tenho chance de comprovar durante a entrevista, ao longo da qual o pesquisador segura uma fêmea de 18 cm. Como fica evidente, a má fama é puro preconceito, construído em cima de sua aparência e mantido à custa de sensacionalismos da mídia…
Rogério Bertani descobriu isso ainda criança, quando passou a frequentar o Butantan. Nascido na Zona Leste da capital paulistana, há 47 anos, desde pequeno circulava por terrenos baldios à caça de tudo quanto é bicho, como boa parte dos meninos de sua época. “Aos 7 anos, já tinha interesse por animais, mas mamíferos, coisas ‘normais’. A aranha não, de aranha ainda tinha medo. Mas aos 11, 12 anos, já andava coletando de tudo: opiliões, escorpiões, insetos, abelhas, sapos, cobras e aranhas. E saía lá da Vila Carrão de ônibus, para trazer para o Butantan.”
O gosto do menino era conhecer o nome das espécies, saber detalhes sobre seu comportamento, suas características. “Dali, a coisa foi aumentando, mas a dificuldade era que os livros falavam de fauna exótica, da África, sobretudo. Do Brasil, quase não tinha nada. O jeito, então, era procurar informações direto da fonte”, conta.
Os escorpiões eram coletados para extração de veneno. Uma vez, aos 14 anos, a coleta terminou em acidente com um escorpião-marrom e o adolescente Rogério foi parar novamente no Butantan, mas dessa vez para ser atendido no Hospital Vital Brasil.
As aventuras dos terrenos baldios se estenderam para todo o País e, de passatempo, se transformaram em estágio voluntário, depois em trabalho. Em 1993, ele passou no concurso do Butantan e, desde 1994, é pesquisador contratado. Com a mesma curiosidade de menino, Rogério continua atrás dos bichos, agora já como aracnólogo especializado em tarântulas. Ele escolheu trabalhar com essas aranhas pela riqueza de espécies nativas do Brasil (mais de 300 conhecidas), somada à absoluta escassez de especialistas.
Em geral, sai em busca dos abrigos usados pelas fêmeas, que têm quase o dobro do tamanho dos machos e vivem bem mais. Há registros de caranguejeiras com 30 anos em cativeiro, enquanto os machos da mesma espécie vivem cerca de 9 anos. Os machos também circulam mais e são mais difíceis de achar, enquanto as fêmeas têm territórios estabelecidos e permanecem mais tempo “em casa”. Mesmo assim, para encontrá-las, é preciso virar pedras, tocos caídos, escalar barrancos, investigar ocos de árvores velhas, procurar vestígios minúsculos em meio à vegetação, que deem pistas das pequenas tocas camufladas com um misto de folhas e teia.
Outra opção é sair à noite pelo mato, munido apenas de uma lanterna, pois é quando as caranguejeiras se expõem mais, circulando fora das tocas. Ou montar armadilhas, cavando uma porção de buracos nos quais são colocados copinhos descartáveis cheios de álcool (para fixar os bichos capturados). Os minifossos improvisados pegam de tudo, inclusive animais ainda não descritos e outras surpresas. “Estamos acostumados a pensar nas caranguejeiras como aranhas grandes, mas existem algumas espécies de poucos milímetros, bem pequenas mesmo, e às vezes nós as encontramos assim”, observa.
Em alguns casos, leva-se anos para juntar as peças de um quebra-cabeça e ter dados suficientes para descrever uma espécie. Foi assim com o último artigo, publicado em abril passado, em colaboração com Roberto Nagahama e Caroline Fukushima. Na publicação, Rogério descreve uma caranguejeira de cor azul-metálico e marrom, coletada pela primeira vez na Serra do Cipó (MG) pelo zoólogo brasileiro Ivan Sazima, em 1971. Ivan ainda fez mais uma coleta na mesma localidade, em 1993, quando percebeu se tratar de uma nova espécie. Mas o “batismo” só foi possível depois que Rogério estudou uma fêmea encontrada em 2008, no Parque Nacional da Chapada Diamantina, na Bahia. Ou seja, foram 40 anos de espera por um nome, finalmente definido como Pterinopelma sazimai, em uma homenagem ao zoólogo que primeiro registrou o bicho.
Paciência, portanto, é uma das qualidades de Rogério. Fundamental para conviver durante tantos anos com pendências, sem desistir de resolvê-las. Ética é outra de suas qualidades. Com a onda de programas sensacionalistas sobre a natureza – do tipo que retrata qualquer predador como assassino só para ressaltar a coragem do apresentador de ficar cara a cara com o perigo -, o aracnólogo passou a ser assediado por produtores. As ideias variam: de expedições em busca dos índios comedores de tarântulas gigantes a gente disposta a provocar o ataque de aranhas enfurecidas.
Invariavelmente, Rogério diz não. Só está disponível para colaborar com documentários educativos, que retratem os animais como eles são, sem forçar situações artificiais. Se for esse o caso, não se importa em enfrentar situações difíceis, como quando foi para a Ilha da Queimada Grande (no litoral norte de São Paulo) com uma equipe da National Geographic. “Passamos dois ou três dias na ilha e, na hora de ir embora, o tempo virou, foi um sufoco para sair de lá. O bote chegou a ser arremessado e uma médica da equipe caiu na água.”
Outra vez foi quando estivemos juntos em Alcatrazes e uma tempestade nos alcançou, obrigando todos a permanecer em barcos superlotados, sem condições de descer para os acampamentos na ilha principal. Chacoalhamos durante a noite toda, mais de oito horas de ondas e rajadas de vento junto a paredões de pedra. Mas os resultados das coletas e as reportagens que produzimos valeram a pena!
“As caranguejeiras são bichos tão interessantes. Não é preciso inventar. Existem diversas espécies que se entocam e cobrem a entrada, fazem um tipo de alçapão, uma portinha com dobradiça e tudo (feita de teia). Existem outras que possuem detalhes nas patas, como as arborícolas, com pelos modificados em forma de ganchinhos, para grudar. Essas conseguem subir em qualquer coisa, andam nos galhos de cabeça para baixo”, comenta. Os estudos com caranguejeiras não se restringem aos aspectos físicos, reprodução ou comportamento, que são o foco de Rogério. Existem pesquisas de outros brasileiros, sobre as substâncias contidas no sangue (hemolinfa) de algumas espécies, para desenvolvimento de antibióticos contra as superbactérias, comuns em infecções hospitalares. Rogério Bertani trabalha com essas pesquisas para tornar mais conhecidos os aspectos positivos das caranguejeiras. Também passa horas ao microscópio, observando os detalhes das patas, de cada parte do corpo, para nomear cada bicho corretamente. Já descreveu mais de 25 espécies de aranhas e alguns gêneros. Ainda dedica parte de seu tempo à orientação de novos aracnólogos, que possam ajudá-lo a estudar esses animais tão temidos quanto mal conhecidos. E colabora com a polícia nas ações de combate ao tráfico, identificando os animais apreendidos e recebendo os sobreviventes para cuidar.
Cada informação obtida, cada descoberta feita é uma semente de conhecimento contra o preconceito. Ajuda a reduzir a repulsa e o medo das pessoas. Ajuda a evitar a eliminação indiscriminada das aranhas. Ainda há muito para se plantar nesse campo, claro. Porém, como já dissemos acima, paciência é uma das qualidades de Rogério Bertani.
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