Roraima em pé de guerra

O cenário para a chamada “guerra no fim do mundo” estava desenhado havia três anos, quando o Governo Federal decretou a demarcação contínua da área indígena da Reserva Raposa Serra do Sol, no extremo norte de Roraima, bem na fronteira com a Venezuela, e determinou a expulsão dos moradores não índios, que vivem em três cidades (Paracaima, Uiramutã e Normandia) e estão espalhados pelas fazendas dos plantadores de arroz.

Vencidas todas as negociações para que os não índios abandonassem a Raposa Serra do Sol pacificamente, no começo de abril desembarcaram as tropas da Polícia Federal e da Força Nacional dispostas a cumprir a ordem do Governo Federal para limpar a área, dando início à Operação Upatakon 3.
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O epicentro do conflito instalou-se na Vila Surumu, a 200 quilômetros da capital, Boa Vista, um povoado de apenas 900 habitantes, no caminho de Paracaima, o quartel-general da resistência montada pelo gaúcho Paulo César Quartiero, prefeito do município e líder dos plantadores de arroz. Duas dezenas de jornalistas dos principais veículos de comunicação do país e do exterior deslocaram-se até lá preparados para fazer um trabalho de correspondentes de guerra.

Os primeiros tiros foram disparados um mês depois, no acesso à Fazenda Depósito, com 4 mil hectares, um dos latifúndios do prefeito-arrozeiro. Quartiero acabaria acusado pela Polícia Federal de ser o mandante do atentado, que deixou dez índios feridos a bala no conflito do dia 8 de maio. Preso, levado para Brasília e solto uma semana depois, foi recebido na volta em Boa Vista como um herói de guerra, com carreata e tudo. Nesse meio-tempo, uma liminar concedida pelo ministro Carlos Ayres de Britto, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu o “processo de desintrusão”, como é chamado tecnicamente o trabalho das tropas federais.

Era esse o quadro quando cheguei a Boa Vista, em meados de maio, para fazer uma palestra a convite da Faculdade Atual da Amazônia. Jornalistas e parte das tropas começaram a levantar acampamento, os índios sob a liderança do CIR passavam os dias jogando futebol e as 11 mil crianças das escolas indígenas de todo o estado continuavam sem aulas. Os 1.008 professores indígenas entraram em greve, por falta de segurança. Ficaram todos de olho em Brasília, à espera de uma sentença definitiva prevista para sair até o final de junho ou só em agosto (em julho, o tribunal entra em recesso).

Como eu só passaria 36 horas na cidade e a região conflagrada de Vila Surumu, que fica a três horas de viagem de carro, estava vivendo dias de trégua, achei melhor ficar em Boa Vista mesmo, conversando com os aliados de índios e de arrozeiros para tentar entender as origens e os possíveis desdobramentos desse conflito que tinha dia para começar, mas ninguém sabe quando e como vai terminar.

Qualquer que seja a decisão do STF – confirmar a demarcação contínua ou criar “ilhas” de proteção para as 194 comunidades indígenas espalhadas pela Raposa Serra do Sol – , a paz vai demorar a reinar em Roraima, um antigo território federal transformado em estado pela Constituição de 1988. O Governo Federal mexeu com um vespeiro e vai ser difícil colocar ordem novamente na colméia. Há muitos interesses em jogo nessas terras onde o poder do Estado ainda não chegou e o império da lei é um sonho distante.

Aqui não se trata apenas de mais uma disputa pela terra reivindicada por muitos donos como tantas outras que, de tempos em tempos, pipocam pelo país. A disputa atual, entre arrozeiros, índios e as forças de várias latitudes alinhadas dos dois lados do conflito, nos revela apenas a parte mais visível de um litígio político entre o poder local e a União, que ainda não foi resolvido.

Duas décadas após a criação do estado, o governo de Roraima detém apenas 7,34% do antigo território, enquanto as comunidades indígenas já controlam 46,68%, antes mesmo da demarcação contínua da Raposa Serra do Sol, sendo o restante de propriedade da União (terras de fronteira ou do Exército). “Senti a ausência do poder público na região, o que talvez seja responsável pelos conflitos”, concluiu Gilmar Mendes, presidente do STF, após uma visita a Roraima, tão rápida quanto a minha, no fim de maio.

No refeitório da Prelazia de Boa Vista, um amplo e arejado palácio episcopal plantado à beira do Rio Branco, construído por monges beneditinos alemães, no começo do século passado, e que já serviu de sede do governo nos tempos em que Roraima era apenas um território federal, começo a nossa conversa perguntando ao bispo dom Roque Paloschi, um gaúcho de Lajedo, na Serra Gaúcha, como ele se sente no meio dessa guerra entre índios e arrozeiros.

“Guerra? Que guerra? Guerra pressupõe dois lados armados com as mesmas condições de combate. O que temos aqui é um massacre, os índios estão sendo massacrados”, reage o bispo, enquanto oferece um gostoso suco de taperebá, especialidade do padre Edson Damian, gaúcho como ele, seu fiel escudeiro.

Ao contrário dos seus antecessores, dom Aldo Mongiano e dom Apparecido José Dias, que estavam sempre na linha de frente nos momentos mais tensos da eterna luta dos índios pela sobrevivência, dom Roque parece pouco à vontade no seu papel de porta-voz do movimento pela demarcação contínua da reserva indígena de Raposa Serra do Sol. “Vocês deveriam falar com alguém do CIR. Eu sou apenas um vigário de aldeia…”. De fato, quase não se viu o nome dele na imprensa desde o início da Operação Upatakon 3, que atraiu jornalistas do país inteiro e do exterior a Roraima.

Mas, por mais que dom Roque queira tirar hoje da Igreja Católica a condição de protagonista dessa história, o fato é que, desde 1727, quando passaram por aqui os primeiros jesuítas itinerantes, monges, padres e bispos sempre estiveram do mesmo lado nos embates – o lado dos índios. Em 1850, vieram os carmelitas; meio século depois, os franciscanos, até que, em 1909, chegaram os primeiros beneditinos alemães, que teriam um papel decisivo na vida cultural e política do então Território Federal do Rio Branco. Se não fosse o trabalho desses religiosos, talvez não tivesse sobrado um único índio em Roraima para contar a história.

Os beneditinos alemães, que tinham uma sólida formação intelectual e humanista, sonhavam vir ao Brasil para trabalhar na evangelização dos índios que estavam sendo ameaçados pelos fazendeiros já fazia mais de cem anos. Índios, naquela época, tinham donos. Seus braços eram marcados a ferro com o nome do fazendeiro ao qual pertenciam. Mesmo tendo de fugir com a roupa do corpo, quando a casa paroquial no bairro Calunga foi metralhada, poucos meses após a sua chegada, os monges beneditinos abriram a primeira escola indígena no interior, na região do Surumu.

“A Igreja aqui foi perseguida desde o início. Os fazendeiros proibiam os comerciantes de vender sal, açúcar e querosene aos missionários. Os índios viram que eram tão perseguidos quanto eles. Estabeleceu-se, então, uma empatia entre os índios e os religiosos”, conta o padre Edson Damian, que veio para cá há dez anos, ao mostrar a via-crúcis dos católicos em Roraima desenhada nas paredes da capela da Prelazia.

Dom Roque diz, brincando, que, quando veio para cá, “não sabia nem dizer no mapa onde ficava Roraima”. Hoje, três anos depois da sua chegada, identifica quatro realidades no trabalho pastoral. “A do mundo indígena, com uma população de 39 mil almas (10% da população de Roraima) e suas culturas próprias, o que nos leva a conhecer sua língua e suas tradições para criar uma relação de respeito. A do mundo urbano, que sofreu um processo de inchaço após o fracasso dos garimpos e dos projetos de colonização, com mais de 60% da população de Roraima (394 mil habitantes) vivendo em Boa Vista. Temos ainda a realidade das populações ribeirinhas, ao longo do Rio Branco, e a das 50 mil famílias assentadas no sul do estado, na divisa com o Amazonas, vivendo em condições precárias e obrigadas a vender suas terras.”

O resultado disso é um processo de reforma agrária ao contrário, em que as pequenas terras dos projetos de assentamento são vendidas aos grandes proprietários e viram pastos. Transformados novamente em sem-terra, os antigos colonos acabam disputando espaço com as comunidades indígenas, o que dom Roque qualifica como “jogar pobre contra pobre, uma tática de todos os governos”. O bispo lembra que as 30 áreas indígenas já homologadas como “ilhas” em Roraima são economicamente inviáveis e empurram suas populações para as cidades, onde se marginalizam. “Aqui não há um conflito, há um verdadeiro massacre. Tivemos mais de 30 lideranças assassinadas nos últimos anos, malocas queimadas, aldeias inteiras e roças destruídas.”

Em outubro de 2000, quando os ataques à Igreja Católica se acirraram, Boa Vista amanheceu com dezenas de outdoors espalhados pela cidade em que se lia: “A Diocese é nociva à sociedade de Roraima”. Cada cartaz trazia a assinatura de sindicatos patronais de arrozeiros, madeireiros, de postos de gasolina e até do Centro de Tradições Gaúchas (CTG), que fincou raízes por aqui. A partir de 2005, quando o governo decretou a demarcação contínua e deu o prazo de um ano para a retirada dos não índios da Raposa Serra do Sol, a Igreja doou aos índios, com escritura passada em cartório, todas as suas propriedades na área – escolas, hospitais, sedes das missões religiosas.

Ao mesmo tempo, as igrejas evangélicas se expandiram na região, com apoio e financiamento de políticos ligados ao Governo do Estado, segundo dom Roque, exatamente para esvaziar a influência dos religiosos católicos entre os índios. “Na Operação Gafanhoto, da Polícia Federal, foram presos muitos pastores que recebiam dinheiro do governo”, denuncia o bispo. A bancada dos evangélicos na Assembléia Legislativa já chegou a reunir mais de um terço dos deputados. Calcula-se que a população indígena da Raposa Serra do Sul esteja hoje dividida meio a meio entre o CIR, umbilicalmente ligado à Igreja Católica e favorável à demarcação contínua da reserva, e a Sodiurr, uma dissidência estimulada por fazendeiros e evangélicos, que são contrários e defendem a formação de “ilhas”.

Dos tempos de dom Aldo Mongiano, até hoje lembrado com respeito e carinho pelos índios, restam a conquista dos 9 milhões de hectares de demarcação contínua dos ianomâmis – a maior do país – e o rebanho resultante da campanha “uma vaca por índio”, que ele lançou em 1980, com a ajuda de entidades estrangeiras. As 35 mil cabeças de gado espalhadas nos pastos das comunidades indígenas até hoje garantem a sobrevivência de muitas comunidades que tiveram suas lavouras destruídas
pelos fazendeiros.

Roraima é um outro mundo para quem chega de São Paulo, após uma viagem que pode durar entre oito e
12 horas, com escalas e conexões. Para começar, é o único estado brasileiro que tem hora para fechar. Às 5 e meia da tarde, são fechadas as saídas na fronteira com a Guiana Inglesa, a leste, e a barreira montada pelos índios na BR-174, que corta a reserva dos waimiri-atroari, na divisa com o Amazonas, ao sul. Às 10 da noite, fecham-se as cancelas da aduana na fronteira com a Venezuela, ao norte. A partir dessa hora, só se entra ou sai de Roraima de avião.

Pode-se dizer que quem mora em Boa Vista está mais perto e sofre mais influência da Venezuela e da Guiana do que do Brasil. Santa Elena de Uairén, a primeira cidade venezuelana depois da fronteira, fica a 200 quilômetros de Boa Vista, vizinha a Paracaima, e Leten, na Guiana, dista apenas 100 quilômetros da capital de Roraima. As estradas em direção às fronteiras estão em ótimas condições de conservação. Em compensação, a capital brasileira mais próxima, Manaus, fica a 780 quilômetros – e a estrada é muito ruim.

Até a energia elétrica e boa parte do combustível consumidos em Boa Vista são venezuelanos. Como o litro de gasolina é vendido a 7 centavos em Santa Elena de Uairén, surgiram os “carros-bomba” – apelido dado às caminhonetes com dois tanques grandes adaptados que atravessam a fronteira para comprar combustível barato que é revendido em casas na periferia de Boa Vista. Pelo seu estilo arquitetônico bem venezuelano, o Palácio do Governo Senador Hélio Campos também poderia perfeitamente estar do outro lado da fronteira.

Assessórios, pneus, eletroeletrônicos, tudo é trazido da Venezuela, também conhecida aqui como “o nosso Paraguai”. Da Guiana, são contrabandeados preferencialmente tênis Nike e camisas Lacoste. Isso acaba afetando o comércio local, que não se desenvolve e gera poucos empregos, e ainda serve para alimentar a insatisfação dos militares com a demarcação contínua da reserva indígena numa região de fronteira, tendo do lado de lá o eloqüente fantasma de coronel Hugo Chávez.

A exemplo do que ocorre em regiões de colonização recente, Roraima é terra de forasteiros. Em 1970, o então território federal tinha apenas 46 mil habitantes, quando o general-presidente Garrastazu Médici deu início a um acelerado processo de colonização sob o lema de “dar aos homens sem terra as terras sem homens”. As comunidades indígenas foram a partir daí vistas como um estorvo para os projetos baseados em exploração de madeira, plantação de pastos para o gado e abertura de garimpos.

Fora dos projetos oficiais de colonização, que não deram certo, as terras foram sendo simplesmente ocupadas por pecuaristas e plantadores de arroz vindos de várias regiões do País, em sua maioria do Rio Grande do Sul, num tempo em que ninguém se preocupava muito com esse negócio de títulos de propriedade. Veio gente de todo lado. Há até uma divisão por profissões: os gaúchos vieram ser fazendeiros; os paraibanos trabalham em educação; os maranhenses formam a mão-de-obra e os cearenses se dedicam ao comércio. Junto com eles não pararam de chegar militantes de ONGs de todas as origens, um mundo nebuloso coalhado de lendas sobre o trabalho que fazem, sempre em nome da defesa dos índios. Só agora órgãos de informação do Governo Federal estão fazendo um levantamento para saber quantos são, de onde vieram e o que fazem aqui.

Há personagens emblemáticos dessa torre de babel roraimense. O atual secretário da Fazenda, Leocádio Vasconcelos, veio do Ceará e hoje é presidente do Centro de Tradições Gaúchas de Roraima. O cinegrafista Adonias Ribeiro, conhecido por Miag-San no Palácio do Governo, onde trabalha, é um índio que nasceu no Peru e veio de Manaus para Roraima, tem avó cearense e avô pernambucano, e uma filha loira de olhos verdes. Uma de suas três mulheres, Rosecleide, é maranhense.

Governado quatro vezes por um oficial da Aeronáutica, o brigadeiro Ottomar Pinto, morto no ano passado, que ganhou fama abrindo campos de pouso em locais ermos da Amazônia, Roraima viu estabelecer-se uma aliança natural entre esses novos donos da terra e os três poderes locais. O atual governador, José de Anchieta Júnior, que foi secretário e depois vice de Ottomar, viajou para Brasília em maio, no auge do conflito em Vila Surumu, para defender pessoalmente a ação cível que o Estado move no Supremo Tribunal Federal contra a União e a Funai para impedir a demarcação contínua da Reserva Raposa Serra do Sol, que é defendida pela Igreja Católica.

“Quando criaram o estado, também deveriam ter dado junto as terras do antigo território, mas isso não aconteceu. Até hoje, 92,34% de Roraima pertence à União, incluindo as reservas indígenas. Vivemos sitiados aqui, até o direto de ir e vir é desconsiderado”, queixa-se Rui Oliveira Figueiredo, secretário de Comunicação do Governo do Estado, que veio de Sergipe para Roraima há 26 anos – e, apesar de tudo, não quer mais sair daqui.


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