Ruy Castro analógico


Só o tempo deve fazer jus à importância histórica do novo e despretensioso livro de Ruy Castro, Morrer de Prazer. Um tema permeia boa parte da obra: as tecnologias digitais, que prometem tornar obsoletos equipamentos ditos analógicos, que dão imensa satisfação a seus consumidores a partir do contato tátil, do manuseio, do cheiro – discos e livros, principalmente. Observador atento das mudanças de comportamento que correm por causa das redes sociais e das ferramentas que dispensam CDs e DVDs, Ruy faz o que se poderia chamar de um tratado antropológico que será de grande valor para que gerações futuras compreendam o modo como aconteceu a transição de uma era para outra, com seus medos, anseios e encantos. Até lá, entretanto, vale se deliciar com suas finas ironias e provocações. São 59 crônicas que ele publicou nos últimos anos na Folha de S. Paulo, todas de caráter pessoal, algumas confessionais. Divertidas, foram escritas com leveza que remetem o leitor, sem dúvida, ao prazer de ler. Para quem não o acompanha no jornal, uma ressalva: sem saudosismo ou mau humor, pelo contrário, Ruy brinca com um mundo e outro, o analógico e o digital. Quando tudo deixar de existir fisicamente e for abrigado na chamada nuvem digital, ele diz que quer estar em outra nuvem vizinha, mas aquela pós-morte. “O avanço da tecnologia parece nos conduzir à independência, à liberdade e à autossuficiência. Dito assim é bonito. Já não o será tanto se convencermos a frase à sua verdadeira essência – a de que tal avanço está nos condenando ao individualismo, ao egoísmo, à solidão. E não sei também se esse comodismo não denotará certa dose de covardia em relação à vida.”

Há outros temas explorados em crônicas que comparam a geração de hoje e a dele. Sobre os loucos anos de 1960, Ruy anotou: “Eu estava lá. E, se você quiser saber, não tenho saudade de nada. Não ficou nada sem fazer”. Noutra, é quase poético, ao falar da vida: “Pode-se entender o conceito a muitas categorias, com direito a escolha, como a de que a vida é, hoje, ontem ou amanhã; de que a vida é agora ou nunca; ou de que é um amistoso ou a valer três pontos. Tudo vale. Mas, sob qualquer das possibilidades acima, a vida seria muito melhor se tivéssemos mais tempo para pensar nela. Mas não dá, porque a vida, quando acordamos para ela, é depressa demais”. Ruy dedica uma única crônica aos difíceis anos de alcoolismo, sobre o dia em que foi levado para uma clínica de tratamento: “O tremor nas mãos não traía o nervosismo. Tremia porque acabara de acordar e estava sem beber há horas. Ainda não descobrira como beber dormindo”.

Em entrevista à Brasileiros, o escritor explica que a seleção de crônicas foi feita pela editora Isa Pessoa, que notou certa coerência e recorrência de temas em muitas crônicas. “Gostei da ideia, ela me submeteu a seleção, tirei alguns textos e troquei por outros que achava mais fortes, e reescrevi tudo, ampliando ou fundindo.” A que dá o título ao livro foi ampliada em três ou quatro vezes, especialmente para o livro. “Nesse sentido, todas são inéditas, porque foram reescritas. Originalmente, eram crônicas. Mas gosto mais da classificação ‘pequenos ensaios’, que o jornalista Álvaro da Costa e Silva usou para defini-las.” Mesmo quando parece estar fazendo “reminiscência”, Ruy usa o passado para tentar pensar sobre o presente. Com isso, poderiam ser chamados também de “reflexões”.

Parte dessa produção se deu em um período turbulento da saúde do escritor, que sobreviveu a um câncer na garganta (2005), um infarto (2006) e uma encefalite viral no ano passado. Ele, que nunca foi de se expor, não teve relutância em escrevê-los. “Se não me expunha tanto antes, é porque não era ainda o momento. No caso do alcoolismo, por exemplo, não queria que a minha história fosse confundida com a de Garrincha, sobre quem publiquei o livro Estrela Solitária, em 1995. Mas, 18 anos depois da saída do livro e 25 anos depois de ter parado de beber, acho que – finalmente – já tenho a distância suficiente.” Ele explica o subtítulo Vida por um Fio, que tem a ver com as doenças que teve. “Hoje, ao pensar nesses problemas, fico contente por me ter sido dado o privilégio de lutar para superá-los”, observa ele, que revela estar escrevendo um livro sobre gatos. “Mas ainda não estou pronto, é um tema de enorme responsabilidade.”


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