“Sabe qual é a matéria que todos aqui sonhamos fazer e que resume perfeitamente o espírito do Reader’s Digest?”, perguntou um mordaz jornalista americano ao seu jovem colega brasileiro Ruy Castro, editor-executivo de Seleções, que visitava a matriz da revista em Nova York. (Seleções, como se sabe, é a edição brasileira do Digest.) E, antes que Ruy dissesse alguma coisa, ele mesmo respondeu:
“Cancer made me happy (O câncer me tornou feliz)”. Deu uma gargalhada e acrescentou: “Mas é claro que essa matéria nunca poderá ser feita. É irreverente demais”.
Isso foi em 1974 e Ruy não se recorda mais do nome do jornalista americano. Mas lembra-se de também ter rido muito ao ouvi-lo. No Digest, os personagens de todos os artigos e reportagens podem sofrer o diabo e até morrer, mas, no fim, o leitor precisa ser premiado com uma mensagem de otimismo e esperança. Por exemplo, o sujeito teria um câncer – doença muito pior na época do que hoje -, mas deveria deixar uma lição positiva, de coragem e resistência, para quem lesse sua história.
Ruy adotou a idéia nas inúmeras matérias de Seleções que editou a partir dali e, muitos anos depois, procurou essa coragem e resistência nos personagens dos livros que viria a escrever. Ele só não imaginava que, um dia, iria protagonizar essa situação na vida real – na sua própria vida.
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A história está contada no livro Álbum de retratos – Ruy Castro, por sua mulher, a escritora Heloisa Seixas, que está sendo lançado este mês pela editora carioca Folha Seca. Trata-se de uma biografia de Ruy – ou melhor, uma fotobiografia -, dentro do projeto Álbum de retratos, idealizado pelo compositor Moacyr Luz: uma série de 12 livros com o panorama da vida de nomes da cultura brasileira, como as atrizes Bete Mendes e Zezé Motta, o poeta Ferreira Gullar, a compositora Dona Ivone Lara, o violonista Turíbio dos Santos e o cartunista Lan, entre outros.
Leia um trecho do livro Álbum de retratos – Ruy Castro, por Heloisa Seixas, sua mulher:
“Foi em pleno verão, faltando apenas uma semana para o Carnaval, que naquele ano, 2005, seria bem cedo. Era fim de janeiro, pouco mais de um mês depois da tsunami que matara 300 mil pessoas na Ásia. Para nós, foi algo parecido – inesperado e arrasador. Ruy vinha se queixando desde novembro de uma gripe que não acabava nunca, de um pigarro, uma sensação de congestionamento na garganta. Mas não queria nem ouvir falar de ir ao médico. Em dezembro de 2004, depois de cinco anos de pesquisas, tinha começado a escrever seu livro Carmen – Uma biografia e, quando escreve, Ruy não quer saber de nada, muito menos de ir ao médico.
Mas eu tinha notado uma coisa estranha: ele, que sempre adorou comidas muito salgadas, já não percebia se o feijão viesse com menos sal. Parecia estar perdendo o paladar. Foi por causa disso que insisti e o obriguei a fazer uma consulta com nosso clínico geral, Dr. Ênio Porto Duarte. A consulta foi marcada para o meio-dia daquela sexta-feira, 28 de janeiro. O diagnóstico foi quase imediato. Câncer na garganta, na base da língua, com metástase nos gânglios linfáticos. Dali em diante, tudo aconteceu muito rápido, como numa vertigem. Poucas horas depois, saindo do consultório do Dr. Jacob Kligerman, que o trataria, Ruy olhou para mim e disse: “Não vou perder tempo com essa doença. Vou cuidar do tratamento. E o Carmen vai fazer parte dele”.
E fez mesmo. Peguem Carmen e abram o livro na página 89, no quinto capítulo. Ruy estava exatamente nesse ponto quando recebeu o diagnóstico. E agora vejam: tudo o que foi escrito dali para frente, todas as quase 500 páginas restantes, com aquela quantidade enorme de informações, colocadas ali com tanta leveza e humor, foram feitas durante o tratamento. “Como você conseguiu?”, perguntaria o Dr. Jacob Kligerman na noite do lançamento, já tendo lido o livro. E Ruy, candidamente: “Eu não sabia que era impossível”.
Como todo mundo sabe ou imagina, um tratamento de câncer não é coisa à-toa. Entre 28 de janeiro de 2005, dia do diagnóstico, e o 4 de outubro seguinte – dia em que Ruy pôs o ponto final no livro -, foram 34 sessões de radioterapia, num total de 93 irradiações, sete sessões de quimioterapia, com 21 horas de aplicações, 29 consultas médicas, mais quinze consultas ao dentista, cinco biópsias, uma endoscopia, cinco exames de sangue, duas ressonâncias magnéticas, duas chapas de pulmão, um raio-X completo de boca, uma cirurgia com duas passagens pelo centro cirúrgico e seis dias de internação, mais dezesseis punções e 61 sessões de fisioterapia. Durante os primeiros três meses de tratamento, por causa das queimaduras da radioterapia, Ruy ficou sem comer, bebendo apenas líquidos (mesmo assim, com enorme dificuldade), o que o fez emagrecer doze quilos. Chegou a interromper o tratamento por dez dias porque a pele de seu pescoço ficou em carne viva e, em decorrência da quimioterapia, teve flebite numa veia do braço, com um febrão de 40 graus que o deixou tremendo como se estivesse com malária. Mas nada disso fez com que perdesse a energia para trabalhar. Durante todo esse tempo, passava o dia escrevendo, horas e horas, como se fosse apenas um cérebro usando um corpo alquebrado para se manifestar. O corpo era seu cavalo.
“Meu medo não era morrer. Era não poder acabar o livro”, diria depois.
Quando Ruy estava internado, se recuperando da cirurgia, lembro da cara de espanto dos enfermeiros ao vê-lo sentado na poltrona do quarto do hospital, com o dreno de um lado e a garrafinha de soro do outro (“Vai de tinto ou vai de branco?”, como diria Ronaldo Bôscoli) e revisando os originais do livro. No dia em que se internou, 31 de maio, ele levou, para reler, todos os capítulos já escritos até então: eram dezoito. Não parou de trabalhar um segundo enquanto esteve internado. Depois, já em casa, escreveria os doze capítulos restantes. Foi sempre incansável. Às vezes, quando o observava trabalhando, eu pensava na frase de uma amiga que, ao saber da doença de Ruy, me disse que ele superaria tudo: “Não se preocupe”, falou, “ele tem alma de herói”.
Herói ou não, quando chegou o fim do ano e lançou o livro, Ruy deu milhões de entrevistas, e, sem prejuízo da gratidão que sentia por seus médicos, disse em quase todas: “Carmen me salvou a vida”. Os repórteres não entendiam ou achavam que era uma brincadeira – ninguém sabia que ele estava falando sério.
Agora, ele continua aí. Parou de fumar – de forma quase instantânea e sem reclamar -, mas diz que é “fumante passivo” e, se vê alguém fumando pela rua, vai atrás para sentir o cheirinho. Quando lhe perguntam na porta dos restaurantes se quer lugar de fumante ou não-fumante, enche o peito e responde “Tanto faz” – pois detesta o politicamente correto e é contra a histeria antitabagista que se instalou no mundo. “Bebida faz muito mais mal à saúde, e nem por isso proíbem a propaganda de cerveja na TV”, diz. E completa, rindo: “Sou o único canceroso que não tem raiva de cigarro”.
Tem gente que se espanta, mas Ruy sempre fez piada com a doença e nunca teve medo de pronunciar a palavra “câncer”. Certa vez, ao fazer um exame de rotina com uma oftalmologista, diante da pergunta clássica sobre se tinha diabetes, pressão alta ou alguma doença crônica, ele abriu um sorriso animado e sapecou: “Serve câncer?”
Em outra ocasião, na sala de espera de uma ressonância, uma médica que parecia mais nervosa do que nós tentou puxar conversa e perguntou se ele se arrependia de ter fumado. Ruy respondeu na bucha: “Não. Se não tivesse feito tudo o que fiz, se não tivesse bebido, cheirado, fumado e tudo mais, eu seria outra pessoa, não seria eu”.
Passado o período inicial pós-tratamento de câncer, Ruy recuperou o paladar, engordou tudo de novo e, embora tenha de fazer exames periódicos, até agora está ganhando a briga. Não pensa em doença (embora até tenha tido outros problemas de saúde), nem parece preocupado com a possibilidade de o câncer voltar. Faz planos para o futuro. Está metido num sem-número de projetos, alguns para daqui a vários anos, e continua fazendo aquelas coleções que não completa nunca.
Às vezes, referindo-se a algum projeto mais ambicioso e longo, dá um sorrisinho maroto e diz: “Não sei se vou ter tempo de fazer isso”. Mas no fundo parece acreditar que, enquanto estiver escrevendo algum livro, não poderá se dar ao luxo de morrer. E, com isso, emenda um projeto no outro.
Ele deve saber o que faz. Afinal, não dizem que o gato tem sete vidas?”
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