Saída em grande estilo

Como nas estréias hollywoodianas, em frente ao Bar do Nelson – no caso, representando o Chinese Theatre – dois holofotes varriam o céu de São Paulo. Pelo menos as nuvens mais baixas. Cerca de 150 jornalistas – segundo avaliação da direção da casa – se acotovelavam na calçada. A tensão era grande. Cenário perfeito para um encontro de majestades. A autodenominada rainha da noite, Lílian Gonçalves, dona da Rede Biroska, um conglomerado de bares e casas noturnas, e Dercy Gonçalves, inqualificável com seus 101, 102, 103 anos. Uma trombada de Gonçalves, já que o Nelson do Bar é o cantor símbolo da boemia e suposto pai de Lílian. As desculpas para tal encontro eram várias. Desde o prolongamento das comemorações do centenário da artista até um talk show improvisado, que serviria de documentação para o ingresso de Dercy no Guiness Book como a artista mais velha em atividade no mundo. Pena. Dercy morreria cinco dias depois, de pneumonia.

Há 30 anos, quando eu escrevia para o Jornal da Semana, de Raduan Nassar, o redator-chefe me encomendou uma matéria sobre um espetáculo de Dercy em cartaz no Teatro Santana, já em decadência e que hoje jaz abandonado sob o Minhocão, viaduto no centro de São Paulo. Seria a terceira. As duas primeiras haviam sido rasgadas e atiradas em cima de seus respectivos autores, que insistiam em cercar a artista de adjetivos que se sucediam em escala ascendente, invariavelmente partindo de “maravilhosa”. “Não sei o que essas pessoas vêem nessa velha!” era a reclamação do jornalista. Eu era fã de Dercy, afinal foi a minha Xuxa, e a tal peça da artista por si só era uma piada. Uma comédia boulevard inglesa “adaptada” pela própria Dercy e que, no caso, servia de pretexto para ela se apresentar como uma garotinha…boca suja. E a platéia desmoronava. Minha saída para preservá-la foi criticar o público que molhava as cadeiras a cada barbaridade emitida por Dercy. Escrevi que eles pagavam para ver uma pessoa dizer o que eles não queriam e não podiam dizer no dia-a-dia. Incrível, mas colou. O que a gente não faz por amor. Ao dinheiro.
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No DVD Dercy 100, distribuído aos que foram à homenagem prestada por Lílian, Dercy aparece dizendo que “fala o que o povo quer ouvir”. Dito e feito. O jornal carioca O Pasquim ficou famoso ao publicar uma entrevista de Leila Diniz na íntegra. No auge da ditadura, os palavrões foram trocados por asteriscos entre parênteses, o que provocou um belo efeito gráfico. Se a entrevista tivesse sido feita com Dercy, não teria palavras. Em comum com Lílian, a artista tem a origem humilde. A batalha.

Ambas saíram cedo de casa e enfrentaram um mundo machista, para o qual a independência da mulher é a porta da prostituição. Lílian venceu na noite. De garçonete a empresária, fez da Rua Canuto do Val, no centro de São Paulo, a sua Hollywood Boulevard, com direito a calçada da fama. Dercy mambembou desde menina pelo País, tornou-se conhecida na fase áurea do teatro de revista, conviveu com lendas como Noel Rosa, Walter Pinto, Carmen Miranda e Dulcina, e virou mania nacional no cinema, no final dos anos 1950. Minha Xuxa. Seu status de rainha foi consolidado pelos espetáculos que percorriam o Brasil e o ingresso na televisão. Em 1966, na nascente TV Globo, protagonizou Dercy Espetacular, depois rebatizado Dercy de Verdade. Nele, os palavrões deram lugar a consultórios sentimentais e atrações bizarras, o chamado “mundo-cão”. Mil por cento de Ibope. Logo saiu do ar. Mas não do pódio. Sempre lembravam de chamá-la. Atuou tanto na Família Trapo, nos anos 1970, como no seu herdeiro Sai de Baixo, no final dos anos 1990. Participou de novelas e programas humorísticos. Dercy virou presença. Sem adjetivos.

No dia da homenagem, Lílian, sempre a bordo de saltos agulhas, minissaia e muito brilho, percorria sua casa de microfone sem fio na mão, dando um toque surreal à noite ao relatar tudo o que acontecia à sua volta e tendo a voz reproduzida a ‘trocentos’ decibéis. Dercy desembarcou do Jaguar da empresária, ao som da bateria da Vai-Vai, Tobias à frente. Foi crivada de microfones e câmeras, bronzeada por holofotes, açoitada por perguntas do tipo “como é ter 100 anos?” Mas estava se divertindo. Miúda, de calças de cetim e um casaquinho de onça, deu “selinho” – beijo na boca – em meio mundo. Adorou o retrato a óleo que recebeu da artista plástica Gigi. Estava feliz com as presenças dos atores José Rubens Chachá, Tuna Dwek e Marcos Caruso, da fotógrafa Vânia Toledo, da dramaturga Maria Adelaide Amaral, autora de sua biografia de onde será tirada uma peça, em que Fafy Siqueira, também presente, fará Dercy. Vanusa, que ainda usa a franja aposentada por Ronnie Von, o eterno milionário Chiquinho Scarpa e a primeira avó Beth Szafir também estavam lá. Assim como a musa erótica Aldine Muller, que anunciou sua candidatura à Câmara Municipal, e o lutador Maguila, que jurou que jamais levantaria a mão para Dercy. “Nem qualquer outra coisa, porque ela é uma senhora”, acrescentou.

Diante do Bar do Nelson, a artista disse que sua maior felicidade foi o dia em que descobriu que podia cantar. Durante o talk show, afirmou que foi o nascimento da filha Dercimar. Certamente teve inúmeros momentos felizes. Impaciente, enfiou a mão no bolo – azul – em sua homenagem e comeu um pedação antes dos parabéns. Quando uma assistente se aproximou com um guardanapo para limpar-lhe a boca, a doce centenária advertiu, microfone em punho, “por que você não enfia essa (*) no (*), (*)!”
E se foi em paz.

Foto: Marcio Scavone
Dama Dercy
por Nirlando Beirão

Do Cassino da Urcaao Cassino do Chacrinha, das chanchadas da Atlântida ao teatro rebolado, Dercy Gonçalves traçou uma trilha profissional de tema único: o deboche. Ao debochar dos outros, debochava de si mesma – e vice-versa. Até da morte, debochou, erigindo, em vida, um mausoléu digno de rainha egípcia.Sempre montada em plumas e bijuterias, parafernália visual que simulava uma traveca, ela só não se transformou em prisioneira de uma patética nostalgia por causa do humor invencível, que contagiava.

Esta foto é um intermezzo surpreendente, quase circunspecto, naquele turbilhão de escracho e naquela avalanche de palavrões.

Dercy, que morreu aos 101, já tinha bem mais de 90 quando Marcio Scavone a clicou para seu livro Luz Invisível (de 2002). Esta é a Dercy da posteridade – não a do folclore.


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