Ao contrário do personagem animado Leão da Montanha, a jornalista não usa o bordão para fugir de suas situações. Corajosa, encara qualquer problema de frente, de desconfortos políticos a sua sexualidade. Sem jamais perder o humor
Barbara Gancia está mudada. Magra (passou do extra-extragrande para o médio), sem beber uma gota de álcool há seis anos e sem dar um trago em um cigarro há três, parece ter encontrado o ponto exato do autocontrole. Do comportamento ao plano das ideias, Barbara mudou mesmo. A colunista da Folha de S.Paulo, que já foi tachada de reacionária, agora defende as minorias, de pretos, como chama os negros, a gays. Mas não só. Critica a elite brasileira e tece elogios ao PT. Acusa de preconceituoso quem reage contra os programas de governo que beneficiam os menos favorecidos e revela, com forte entusiasmo, sua admiração pelo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad. Tudo isso no mesmo jornal que a acolheu há 30 anos, justamente por outros motivos.
A garota amalucada que tomava todas e dava altos vexames é agora uma mulher madura de 56 anos, mas não menos bem-humorada, que vive em um simpático apartamento no Itaim, em São Paulo, com seu fiel companheiro, o cachorro Ziggy Stardust, de 6 anos, um dachshund de pelo duro bastante educado – latiu apenas quando a reportagem chegou, depois se mostrou bem amável. O ap. bem decorado tem menos de 100 m2, que comportam sala, cozinha, lavanderia, uma suíte e um lavabo. Nada de quarto e banheiro para a empregada, que usa as mesmas dependências que ela, quando trabalha. Essa arquitetura também faz parte das mudanças.
Há tempos Barbara é gay. Descobriu sua sexualidade quando tinha uns 18, 19 anos. Namorava um cara, com quem perdeu a virgindade e, segundo ela, foi bom. No entanto, ficou mexida por uma menina, por quem nutria sentimentos confusos, até se dar conta de que o que batia mesmo era atração. Dali até aqui, foram muitos amores. Viveu dez anos com uma jornalista e, há quatro, namora Marcela, mãe de duas crianças e dez anos mais jovem, que se descobriu homossexual outro dia. Sobre sua orientação sexual, antes sabida, mas não revelada, Barbara agora fala sem dramas até publicamente – além da Folha, Barbara é uma das protagonistas do programa Saia Justa, do GNT, participa da Band News FM, do grupo Bandeirantes, e dá palestras, pela Ambev, de consumo responsável.
Barbara trabalha e dá trabalho. “Sou outsider em tudo quanto é lugar.” Na entrevista para a Brasileiros, ela falou por mais de três horas sem parar e, a cada dez palavras, um palavrão. O predileto é filho da puta. Mania, aliás, antiga que ela nem pensa em mudar. Diz que faz parte de sua autenticidade, “uma mercadoria rara” em tempos de redes sociais, reforça. A seguir, Barbara conta os detalhes de suas mudanças e permanências com o seu tradicional bom humor.
Brasileiros – Você tem falado que falta flexibilidade no Brasil. O que exatamente quer dizer?
Barbara Gancia – Hoje em dia ou você é saudosista do regime militar ou, sei lá, do Pol Pot, entende? Gente, onde estão os moderados? Há um tempo, Jair Bolsonaro era patético, mas não é mais. Até o Erasmo Dias está na voz da molecada. Aliás, a juventude classe média-alta fala desses caras sem a menor vergonha. Tem muita gente que sente saudade “daquela ordem”, como se aquilo fosse ordem.
Brasileiros – Não é por que existe mais espaço para expressar as ideias?
B.G. – Acho que muitas pessoas têm realmente medo de mudanças, sentem-se ameaçadas por essa gente que está ficando numerosa e entrando no aeroporto, no shopping center, em espaços que antes eram “delas”. Mas é uma infantilidade querer a Rota de volta. Vejo o Instagram, o Facebook. Tem muito filho da puta, inclusive pessoas que já se sentiram representadas por mim e não se sentem mais.
Brasileiros – Como assim?
B.G. – Fui a várias manifestações e, em uma delas, vi a totalidade de três pretos. Chamo de pretos porque, na minha época, sempre foram pretos, não sei se mudaram de cor. Enfim, vi esses pretos, me juntei a eles e comecei: “Povão e, oh, povão…”. Mas eles estavam mais interessados em “Fora Dilma, fora Alckmin, fora Haddad”, uma reivindicação totalmente ridícula porque essa gente foi eleita. Tem tanta coisa para pedir no Brasil. Peça que se extinga o Senado, que não tem condição alguma a não ser abrigar aquele bando de filhos da puta. Mas eles pediam coisas que têm a ver com desejos. Inclusive os pedidos não coincidiam com as pesquisas sobre a Dilma, que estava muito à frente e seria eleita retumbantemente no País, se a eleição fosse naquela época.
Brasileiros – Mas os protestos causaram um efeito…
B.G. – O jeito como a imprensa noticiou deu um prejuízo para a Dilma. Mas, olha, quando começa a ir socialite em manifestação… Conheço gente que foi de guarda-costas. Outra coisa: manifestação às duas, três horas da tarde, 11 horas da noite? Nessa hora, trabalhador está dormindo. As manifestações perderam o foco e isso mostra que as pessoas não estavam realmente mordidas. No fundo, parecia um grande “cansei”. Teve um primeiro momento de reivindicação que motivou todo mundo porque era um pedido fundamentado em algo absolutamente justo.
Brasileiros – A tarifa zero?
B.G. – O transporte. Fui andar de metrô para fazer uma matéria para a BandNews e é desumano. No final, eu me senti heroica de andar algumas estações e não entrar em pânico. Eu não minto pra ninguém, nasci com privilégios, depois os perdi porque meu pai perdeu dinheiro. Mas sou privilegiada em qualquer lugar do mundo. Passei duas, três horas fazendo aquilo, enquanto as pessoas passam a vida inteira precisando de transporte público. Só que não dá para ser extremamente inconformada, nem dá pra não se emputecer completamente. Esse cara que usa o transporte público, depois vai pra casa dormir em um lugar que não tem saneamento básico, não tem iluminação, uma região atendida por ONGs, por empresários que acham estar fazendo caridade, dando algo para aquele lugar, além de pagar os impostos. Entendo que tem gente de boa vontade, que fala: “Pô, pago imposto para caceta, vivo corretamente, trabalho na minha empresa, trato bem meus empregados e ainda assim corro o risco de tomar um tiro”. Entendo que essa gente pense assim, mas é impossível não perceber o outro, não perceber o tamanho da desigualdade e não se comover, não se sensibilizar.
Brasileiros – Mas essa situação é de longa data.
B.G. – Pois é, mudou muito pouco do regime militar até agora e mudou porque não tem mais inflação. Acabou o achatamento dos salários que a inflação causava, aliás, os salários nunca conseguiam crescer mesmo com aquela correção no final do ano, que não reajustava merda nenhuma. Só quem era muito especializado conseguia subir na vida ou quem fazia grandes lances, grandes negócios. A disparidade foi crescendo, agora diminuiu um pouco.
Brasileiros – E em relação aos anos de Fernando Henrique, Lula e Dilma… As coisas melhoraram?
B.G. – Melhoraram com o fim da inflação. Itamar Franco foi um grande presidente, uma sacanagem o cara só ser lembrado pela falta da calcinha daquela mulher. Mas ele teve a coragem de pegar o Fernando Henrique, os caras certos para fazer o Plano Real, que foi muito bom, feito por grandes economistas, muitos que vieram, inclusive, da época do regime militar. Depois veio o Fernando Henrique, que também teve a grandeza de não deixar o Serra entrar. Ele sabia que o Serra não tinha condição de formar um consenso em torno dele, porque é um menino mimado. O Brasil estava num momento de fazer essa virada com o Lula, e o Fernando Henrique apoiou. Uma das grandes coisas que o FHC fez foi a Lei da Responsabilidade Fiscal. O Brasil tem essa coisa de gastar sempre mais do que arrecada, um vício da época da inflação. Uma das grandes cagadas deste governo e o do Lula foi descuidar disso. Dilma acha que não, que o Brasil precisa crescer, mas ninguém vai querer fazer negócio, se não levar o País a sério. Ninguém quer participar dessas concorrências porque o Brasil não segue regras, não cumpre a palavra.
Brasileiros – As críticas que a gente escuta de lado a lado têm uma base real e, lá pra cima, tem uma base que é uma histeria.
B.G. – Ah, não. O empresário brasileiro adora reclamar, gosta de mamar nas tetas do governo e não gosta de pagar imposto. Mas o sistema fiscal no Brasil é muito malfeito porque a gente tem um bando de merdas no Congresso. Mas também é malfeito porque não há vontade política de fazer o bem. Por que terminou a inflação? Porque teve vontade política, o mundo globalizado nos forçou a isso. Mas não há vontade política para a reforma fiscal. Os empresários pegam dinheiro emprestado do BNDES e de não sei onde, pagam muito imposto e reclamam que pagam. Sonegaram a vida inteira, então agora estão pagando muito imposto, é uma compensação. As reformas precisam ser feitas, nem FHC nem Lula fizeram. Um país que quer ser próspero não pode ter altos índices de violência e precisa ter educação. A infraestrutura deste País está se deteriorando e não se faz nada. Exportar soja e essas merdas? O Brasil se orgulha de ser o maior exportador de carne do mundo. Mas a carne brasileira é barata porque não computa o dano ecológico. A gente polui rio, devasta terra pra plantar comida pro gado, cada vaca gasta 40 litros de água por dia, faz coco no rio que vai pro mar, fode tudo. Os porcos no sul do País estão poluindo todos os rios, e esse custo não está embutido no preço. É uma coisa vergonhosa a gente se orgulhar dessa indústria que nasceu da grilagem, de roubar boi e matar índio.
Brasileiros – Os americanos não mataram um monte de índio?
B.G. – Pô, caguei, a gente não é americana. E se isso foi feito, pretendemos uma evolução. Já aprendemos que teve casa grande e senzala, a escravatura. Por que aboliram os escravos? Porque os escravagistas chegaram à conclusão de que não fazia mais sentido deixar aquela gente sofrer daquela maneira. Eles evoluíram. Agora, como é que a gente, em 2014, ainda não chegou à conclusão de que não dá mais pra deixar o cara que trabalha na sua casa comendo um prato diferente do seu? Ou não usar o mesmo banheiro que o patrão, ou ter de usar elevador diferente e morar na puta que pariu. Porque não faz sentido Cidade Tiradentes ficar a 42 pontos de ônibus do centro da cidade e ser um lugar que não tem uma quadra de basquete, não tem uma quadra de nada. Isso não comove ninguém? Os caras só querem aumentar o muro da casa e morrer de medo porque vai ser assaltado?
Brasileiros – Você falou mais de macroeconomia. E os programas populares do governo?
B.G. – Quem diz que o Bolsa Família é eleitoreiro deveria lavar a boca com sabão. Dizem que Lula quer se eternizar, ter um programa de 20 anos. Vem cá, Sérgio Motta (ministro das Comunicações do governo FHC, morto em 1998) falava abertamente que queria se eternizar no poder por 20 anos de programa. Então, tem preconceito porque o Lula vem de outra camada, e isso amedronta as pessoas. Mas do que elas têm medo? O Bolsa Família é um programa aplaudido e louvado pelo BID, pelo Banco Mundial, está sendo replicado em um monte de países. Outra coisa que as pessoas enchem a boca pra falar: “O PT fez essa lei das empregadas porque quer foder com a gente”. Essa PEC foi uma imposição da Organização Mundial de Comércio, que não aceita mais que trabalhadores domésticos sejam tratados diferentemente dos outros. Isso começou na União Europeia porque os portugueses e espanhóis eram tratados diferentemente na Suíça, Inglaterra, Dinamarca. Os filipinos e turcos também. Pensa como a gente trata os bolivianos. É uma questão de justiça social. Tem gente que não entende por que a empregada não quer dormir no serviço, onde tem cama, televisão. Quem gostaria de viver confinado, só com um dia de folga por semana? Que dia ela vai ao banco, à depilação? No domingo? Tem outra coisa: as pessoas falam que é mais meritocrático fazer as cotas por nível de pobreza do que por cor. Eu pensava assim, mudei de ideia. Tenho uma amiga preta que fala com sotaque. O motorista da minha mãe, que também é preto, achava que ela estava me enganando porque fingia ser estrangeira. Como a gente tem coragem de falar que preto não sofre discriminação? Tem um handcap que precisa ser corrigido. Veja o programa de cotas nos Estados Unidos, que teve um sucesso tão grande que o Obama é presidente. É uma reserva de mercado? Tá bom, vamos corrigir essa injustiça em 30, 40 anos? Não é pra sempre, é até corrigir. Na Nova Zelândia, corrigiram essa injustiça enchendo o rabo dos maoris de dinheiro. A gente tem pra dar? Não, então vamos corrigir dessa forma.
Brasileiros – Quando exatamente você começou a se dar conta da realidade?
B.G. – Quando me encantei com o Fome Zero, que começou a ser desenvolvido pelo Carlos Langoni, o pessoal do MIT, por estudiosos, pela equipe do Delfim. Então, não dá para falar que é sacanagem do Lula, que é um programa eleitoreiro. Não vai entender quem pensa que é preciso ensinar a pescar, e não dar o peixe. Tem de entender que é preciso fazer as duas coisas simultaneamente e, no Brasil, quem tem privilégios precisa abrir mão de coisas que a gente não entendeu ainda.
Brasileiros – Tipo o quê?
B.G. – A gente precisa abrir mão de um estilo de vida que já se foi, o estilo da casa grande e senzala. Caso contrário, isso aqui é uma democracia fajuta, de araque, uma economia que não é uma economia de mercado de verdade, mas dominada por três, quatro grandes corporações. O voto não tem o poder que o eleitor imagina. Quem é o grande vencedor das eleições do Brasil? O PMDB, um partido de quinta categoria. As pessoas, quando pensam no PT, pensam no Paulinho da Força, que nem do PT é. Mas o partido foi fundado por gente como Paul Singer que, digamos, tem mais credibilidade, mais academia, seriedade, com um propósito mais nobre. E essa gente não morreu.
Brasileiros – Que lembranças você tem do regime militar?
B.G. – Dos meus pais estocando lata de atum, presuntada, ervilhas Swift. Lembro também do Tavares de Miranda (colunista social, morto em 1992), que era amigo da minha mãe. Ele chegava em casa numa fuqueta amarela e azul, escrito Folha de S. Paulo. O motorista ficava no carro, ele já chegava mamado e começava: “Esses generais filhos da puta”. E minha mãe corria e fechava todas as janelas. O regime militar pouco tocou a minha vida. Lembro ainda que meus pais foram fazer o circuito de Interlagos, a gente tinha contato com o prefeito Faria Lima, que foi quem aprovou a pista. Eu achava ele até muito simpático.
Brasileiros – O que sua família fazia nessa época?
B.G. – Meu pai veio da Argentina para fazer a Gancia no Brasil, uma fábrica de bebidas que fazia o vermute Gancia. Mas ele foi também correr de carro(*), tinha uma Alfa Romeo e adorava corrida. Depois, importou uma segunda e uma terceira Alfa, e teve gente que demonstrou interesse em comprar o carro. Então, com um sócio, ele abriu uma revenda da marca, a Jolly. Depois, virou presidente da Martini no Brasil. Meu pai tinha um monte de negócios, era um sujeito cordato, muito conciliador.
Brasileiros – E a Ferrari?
B.G. – A Ferrari veio em 1971, quando meu pai foi pedir pessoalmente para o comendador Enzo Ferrari se podia vender Ferrari no Brasil. Todo mundo achava que ele não ia conseguir. Mas o Enzo gostou dele. No ano seguinte, meu pai vendeu mais Ferrari aqui do que em Milão. Chegava fazendeiro e pedia três. E ele falava: “Mas o senhor vai andar onde em Goiás?”. O cara respondia: “Ah, minha fazenda é toda asfaltada”. O Brasil não é só senzala, tem o lado da prosperidade, que o cara vai lá e ganha mesmo dinheiro. Eu era alheia a tudo isso até porque minha vida tinha um entorno muito bonito. Minha mãe, quando ia pra Interlagos correr de automóvel, colocava todos os mecânicos pra sentar à mesa com a gente. Vinha aquele monte de bronco com a mão cheia de graxa. Era um estilo diferente de outras famílias de elite.
Brasileiros – Sua mãe também era piloto?
B.G. – Era. Ela (Lula Gancia) era sempre capa de revista, uma mulher muito bonita, saía na Claudia, Manchete. Eu tinha um namorado, que também tinha uma mãe linda de morrer. Nós morávamos na mesma rua, na Colatino Marques com a República do Líbano. E a gente queria ser filha da dona Nadir, uma mulher que vendia lanche e parecia ter uma vida normal. Na minha casa, vinham Airton e Lolita Rodrigues para fazer o Almoço com as Estrelas, que eu achava um saco. Mas conheci toda essa gente, Chiquinho Scarpa é meu amigo de infância.
Brasileiros – Afinal, você apoiou ou não a ditadura?
B.G. – Sempre me fazem essa pergunta. Eu não queria de jeito nenhum que o Brasil fosse dominado por um sistema baseado na revolução chinesa que, digamos, a Guerrilha do Araguaia e todo o movimento de estudantes idealistas usavam como modelo. Mas duvido que isso tivesse acontecido e agradeço se os militares me livraram disso. Mas eles podiam ter ficado seis meses, um ano e depois saído para que as eleições fossem realizadas. Mas ficaram 20 anos no poder porque começaram a criar a ideia de uma ameaça. Hoje, vejo que mentiram, e essa mentira lesou o País. Os militares eram limítrofes. Quem eram eles pra interferir na vida jurídica, econômica, cultural, educacional da pessoas? Isso sem falar nos casos de tortura. Não entendo como tem gente com coragem de manifestar esse tipo de saudosismo.
Brasileiros – Você tinha uma postura parecida com a do Carlos Lacerda?
B.G. – Nem sei direito quem é o Carlos Lacerda. A História, pra mim, começa quando os romanos invadiram e destruíram o muro de Adriano porque estudei do ponto de vista inglês. Então, vejo o Lacerda com certa antipatia. É mais ou menos como enxergo Nelson Rodrigues, um sujeito que tem sempre uma ironia a respeito da pureza, que me incomoda muitíssimo. Me incomoda esse cinismo eterno de jornalista, que precisa ser cínico para demonstrar certa dureza, para não ser considerado ingênuo. Os jornais são produtos mal acabados, os jornalistas vão errar de qualquer jeito porque o acabamento é chulo. Mas tem esse nível de cinismo de fazer as coisas. A gente cobre política e dá títulos que não falam com os leitores.
Brasileiros – Você se refere à Folha?
B.G. – Eu me refiro à nossa categoria porque a gente está se desumanizando. Esse cinismo está indo para um lugar em que perdemos o contato com o leitor, que não se identifica mais com o jornal. As pessoas, às vezes, me acham ingênua, pouco séria. De fato, não sou uma jornalista com fontes, posso às vezes errar grosseiramente a interpretação de um fato, mas tenho uma coisa preciosa: eu espelho a voz do leitor, falo o que está sendo dito por uma voz que não é ouvida. Tenho uma autenticidade que está em falta, uma mercadoria quase inexistente porque o sujeito está no Facebook, no Instagram, onde ele parece ser alguém que não é.
Brasileiros – Vivemos uma crise de valores?
B.G. – As redes sociais têm mecanismos de pesquisas apurados, sabem o que usamos, o que comemos, do que gostamos. Por que o Instagram custou US$ 1 bilhão? Tem uma coisa chamada razão cínica e, mesmo que você sabia que está sendo manipulado, ainda assim será manipulado e se achará do grande caralho. Só que você não é. Então, autenticidade, essa pureza vale ouro. Acho que Antônio Prata (escritor e também colunista da Folha) é um cara que faz muito isso. Quando fala da própria falibilidade, ele se aproxima das pessoas. Acontece isso também no Saia Justa. Somos quatro [além de Barbara, participam do programa Astrid Fontenelle, Mônica Martelli e Teté Ribeiro], mas sou aquela que todo mundo abraça na rua e, olha, que tenho horror a isso. Mônica fala que isso só acontece comigo porque falo mentira, conto que fui beberrona. Como me exponho, as pessoas acham que sou igual a elas.
Brasileiros – Como você foi parar no Jornalismo?
B.G. – Minha irmã era uma socialite, morava em Nova York, ia para o Estúdio 54, conhecia o Andy Warhol, a Bianca Jagger. Eu não era exatamente bem comportada ou um modelo da burguesia paulistana. Um dia, quiseram fazer uma entrevista com a irmã esquisita da socialite e mandaram o Antônio Bivar na minha casa. Eu não sabia quem ele era e estava acostumada com jornalista que ia pra pista de Interlagos… Assim que ele chegou, falei: “O senhor me faz uma gentileza? Senta aí, vou escrever umas perguntas e umas respostas e já lhe dou a minha entrevista”. Ele achou a maior graça naquilo e acabou me convidando para trabalhar em uma revista que ia ser lançada, a Around. Lá tinha uma jornalista muito profunda que sempre dizia que meu texto não estava bom, que ela ia mexer nele. No mês seguinte, o texto aparecia na revista com o nome dela. Eu achava que era assim que funcionava. Claudia Matarazzo insistia para eu mostrar os meus textos para o Ruy Castro, namorado dela na época. O Otavio (Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha) estava assumindo o jornal, e o Ruy mostrou uns textos meus para o pessoal de lá. Mandaram me chamar porque eu conhecia um monte de gente, algumas, inclusive, que eu via com péssimos olhos. Eu era outsider, sempre fui outsider para os grã-finos, para os jornalistas, no Brasil, na Itália.
Brasileiros – Você mesma diz ter crescido em berço privilegiado. Como enxerga seus pares, que continuam na casa grande?
B.G. – Minha vida tem fases bem distintas. Quando fui pra Folha, em 1984, vi todo mundo lá, filhos de pais ilustres, de uma puta nata acadêmica, outra elite. E todo mundo tinha estudado no Equipe ou no Santo Américo. Tinha muito CDF, menos eu. Entre os intelectuais, tinha um lado que eu achava bem ET. Por exemplo: eu chegava cedo no jornal porque tinha de fazer cem linhas de texto por dia, entrava no elevador sempre com o André Singer [cientista político, jornalista, ex-secretário de Redação do jornal]. Falava sempre bom dia, só que ele nunca me respondia. Pensava: “Esse homem tem raio-x na cabeça, ele é tão inteligente que vê que sou ignorante, uma débil mental”. Aí, comecei a ir a restaurantes com esses caras que nem sabiam conversar com o garçom, sem nenhum traquejo. Ninguém entendia porque eu estava lá. Aliás, nem eu, que não sabia escrever em português. Até hoje penso em inglês.
Brasileiros – Você estudou em que colégio?
B.G. – No St. Paul’s, em São Paulo, onde estudavam filhos de pessoas que trabalhavam em multinacionais. Praticamente cresci nessa escola, que era de elite, uma fundação do Conselho Britânico, mas não era o que é hoje, que só entra quem tem muito dinheiro. Ninguém sabia quem era rico, pobre, não se falava em dinheiro. Nunca soube se fui rica, só sei que, todo ano, passava férias na Suíça e achava uma merda. Voltava branca e gorda, enquanto meus amigos iam para o Guarujá, voltavam bronzeados e namorando. Eram férias com os Pitanguy, com os filhos do Zé Hugo Celidônio e da Maria Alice, um saco. Depois, estudei no Canadá e na Inglaterra. Estudei Literatura Inglesa, Economia, Italiano e Letras. Quando voltei para o Brasil, em 1976, 77, era roqueira, superalternativa.
Brasileiros – Dá para ser autêntica na Folha?
B.G. – Tenho a sorte de ter esses patrões e, por isso, tenho uma lealdade enorme à Folha. O jornal me deu uma oportunidade, e não sou uma pessoa fácil de comandar. Dou trabalho. Minha coluna tem de passar pela Secretaria de Redação, às vezes pelo jurídico. Vira e mexe, sou processada. Realmente, não sei por que ele me toleram há 30 anos. Outro dia, o Otavio falou pro Sérgio D’Ávila (editor executivo): “Não concordo com nada do que a Barbara fala. Nunca concordei”. Quer dizer, o cara precisa ter certa nobreza de espírito, né?
Brasileiros – Você parou de beber há…
B.G. – Há seis anos. Ruy Castro e eu fomos companheiros de bebida, mas, em 1988, ele já estava limpo, tinha ficado em uma clínica. Como ele não dirige, um dia, me pediu para levá-lo a uma consulta nesse lugar, que fica em Itapecerica da Serra. Eu não sabia que estava sendo cooptada. Ele entrou e eu fiquei lá sentada, vendo os alcoólatras. Pensava: “Meu Deus, eu aqui no meio desses loucos”. Aí, um indivíduo me pergunta se eu gostaria de fazer um teste pra ver se eu era alcoólatra. Ele começou a fazer umas perguntas assim: “No último ano, você faltou ao trabalho por causa de bebida? No último ano, você brigou com algum familiar por causa de bebida? No último ano você se meteu em encrencas com a polícia por causa de bebida?”. E eu respondia: “Sim, sim, sim…”. No final, ele falou: “Ao responder sim a três ou mais perguntas, a pessoa pode ser considerada uma bebedora problemática”. Perguntei o que deveria fazer. O melhor seria eu me internar.
Brasileiros – E se internou?
B.G. – Cheguei em casa e falei: “Sou alcoólatra, preciso me internar”. Eles achavam que eu era louca, e não que eu ficava louca porque bebia. Ninguém bebia na minha casa. Meu pai era esportista total, imagina. Minha mãe, nunca nem meus irmãos. Saí dessa clínica sóbria, mas tive várias recaídas. Numa delas, o Roberto Carlos tinha censurado o livro daquele cara, e eu fiquei puta, fiz um auê enorme. Fui com o Emerson (Fittipaldi) num show do Roberto no Municipal, tinha tomado umas e outras e, do camarote, eu gritava: “Perneta filho da puta”. Me tiraram de lá, eu só via o Emerson falando pro PM: “Não, não, ela não está bêbada”.
Brasileiros – Como é ser mulher no Brasil?
B.G. – É foda. Mais ainda se for preta e gay. Eu sou muito gregária, falo com todo mundo, minha herança de alcoólatra. Quando era jovem e mais tetuda, falava com as pessoas e elas imediatamente me respondiam. Agora que sou mais velha, elas demoram mais para se abrir, acham mais esquisito.
Brasileiros – O mundo é dominado pela aparência?
B.G. – Escrevi um artigo sobre o beijo gay que rolou na última novela… Por que o personagem causou tanta empatia, se a maioria, 99% das pessoas, não é gay? O personagem comoveu pela trajetória de ele pecar e se redimir, tem essa coisa religiosa de mito da redenção, mas também tem a ver com aquele pai, que é o Estado autoritário, paternalista. O Estado velho está morrendo e acho que o beijo simbolizou uma coisa. A burguesia não percebe que precisa mudar a linguagem. Marina (Silva), por exemplo, é uma candidata que tem muito apelo, mas vai ser uma péssima administradora porque é inflexível, um pouco como o Lula era antes da Carta ao Povo Brasileiro. Antes da carta, escrevi uma coluna que tinha o título Lula Nunca Vai Ser Presidente do Brasil, e as pessoas me cobram até hoje. Mas, antes dela, ele não seria presidente por dois motivos: as forças ocultas jamais deixariam e ele era inflexível demais. No fundo, esse é o grande drama do PT, uma virgem que resolveu virar pessoa do mundo. Não que tenha aberto as pernas, mas resolveu viver o mundo real.
Brasileiros – Você quer dizer que o PT aderiu à real politique?
B.G. – Lula tem uma capacidade grande de fazer política, e o negócio do mensalão era uma maneira de lidar um pouco mais digna. Em vez de dar cargo, resolveram dar dinheiro. O cargo não pertence a ninguém, pertence ao País, e os políticos estavam acostumados a ganhar o cargo e fazer dele o que quisessem. Zé Dirceu, de uma forma ou de outra, isso é uma teoria estapafúrdia minha, resolveu dar um dinheiro. Por que o Jeferson não aceitou? Isso se chamou mensalão porque o dia que o Zé Dirceu estivesse fora acabaria o dinheiro. Política é a arte de se comprometer. Por isso não quiseram o Serra em lugar nenhum, nem o Maluf.
Brasileiros – Você acha que a Dilma sabe fazer política?
B.G. – Pelo o que ouço falar, não. Ela tem boa intenção. De certa forma, eu a admiro. O que ela tentou falar? “Chega de mandarem neste País.” Tentou outra via, só que os caras falaram: “Ah, é? Vamos te sabotar pra caralho”.
Brasileiros – Você também admira o prefeito Fernando Haddad.
B.G. – Ah, muitíssimo, e por vários motivos. O primeiro é que ele está cagando para a próxima gestão. O outro é que, quando fui sabatiná-lo pela Folha, conheci um empregado da família dele, um sujeito que, por acaso, sentou do meu lado. Vi que ele estava empolgado, um senhor de uns 70 anos. Perguntei o que ele estava fazendo ali e ele me contou que trabalhava pro prefeito. Ele me contou que o cara, desde menino, é muito comportado. Outra coisa: uma das pessoas que mais admiro no Jornalismo é Eugênio Bucci, e o melhor amigo dele é o Haddad. Isso me faz supor que ele é legal. Escrevi um texto sobre Haddad e lá dou argumentos objetivos da minha admiração: ProUni, CEUs, a briga com os empreiteiros… Isso tudo não parece heroico?
Brasileiros – Por que você decidiu se assumir gay publicamente?
B.G. – As pessoas não gostam de falar de alcoolismo nem de homossexualidade. Mas, quando os homossexuais viraram o judeu no Brasil, com os evangélicos atacando para polarizar o debate eleitoral para presidente, na última eleição, achei que era a hora. Pensei nos meus sobrinhos, que já estão crescidos… Minha mãe tem 90 anos e não acha que a culpa é dela. Isso é bom, o problema é quando os pais se sentem culpados. Outro dia, ela me disse: “Acho que sou esquisita como você porque não aguento mais seu pai”. Imagina, já tem quatro anos que ele morreu. Na Folha, as pessoas não se deram conta do que eu estava falando. Um dia, a Suzana (Singer, ombudsman) me ligou surpresa, perguntando se eu tinha me assumido e ela queria escrever sobre isso. Mas eu já vinha falando na minha coluna fazia um tempo.
Brasileiros – Você manteve uma relação longa, rompeu e agora está em outra…
B.G. – Fiquei dez anos com uma mulher, agora namoro a Marcela há quatro. Ela é dez anos mais nova do que eu, mora perto de mim, foi casada com um homem e tem dois filhos, um de 8 e outro de 11. Quando fui para o Saia Justa, a Daniela Mignani (diretora do programa) quis falar comigo e com a Marcela. Queria que a gente entendesse que minha vida ia mudar, que eu ia ficar exposta e isso atingiria Marcela também, que é filha única, toda certinha. Ela queria ter feito Jornalismo, mas a mãe falou: “Nem fodendo, você vai fazer GV”. Quer dizer, ela reprimiu essa coisa da homossexualidade a vida inteira. Achou que tinha de casar, ter filhos. Até teve um casamento feliz, mas uma hora sentiu que ia começar a trair o marido. Todo o processo foi muito doloroso, inclusive o de ela se entender. Mas o que aconteceu no Saia Justa foi o seguinte. Dona Paula Lavigne (a presidente da Associação Procure Saber foi convidada a ir ao programa para discutir a questão das biografias) achava que Marcela ainda não tinha falado para a mãe, nem para os filhos sobre essa coisa toda da homossexualidade. Era verdade até dois meses antes. O pai e o ex-marido, com quem me dou muito bem, sabiam desde o início. Por isso, quando Paula perguntou no ar o nome da minha namorada, ela se fodeu com a resposta. Ela esperava uma negativa para falar “Tá vendo como é ruim ter a intimidade invadida”. Mas é tão prepotente…
Brasileiros – Você já estava com a Marcela antes da separação dela?
B.G. – Não, não. Ela ficou com outra mulher antes, uma filha da puta, metida pra caralho, um esquilo gigante. A gente se conheceu nessa época. Marcela foi executiva a vida inteira, é superdiscreta, totalmente diferente de mim. Agora, ela está se abrindo, sentindo aquele suspiro de alívio. É muito inteligente, mas nunca desafiou o quanto deveria.
Brasileiros – Quando você se descobriu gay?
B.G. – Com 19. Eu namorava um cara, mas tinha uns sentimentos conturbados por uma menina. Achava aquilo esquisito, mas… Um dia, esse cara foi me visitar e, quando entrou na sala, a garota passou. Pensei: “Caralho, eu gosto dela”. Telefonei para uma grande amiga italiana, que é melodramática e falei: “Francesca, sou lésbica”. Ela começou a chorar e disse: “Sabe o que você faz? Pega isso, coloca numa gaveta, tranca com uma chave e joga fora”. Eu, evidentemente, briguei com o namorado.
Brasileiros – Você e seu namorado transavam?
B.G. – Sim. Foi com ele que perdi a virgindade, a gente tinha 16 anos. E foi muito bom. Gosto de pau. Só não gosto do que está grudado no pau, a começar do saco.
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