Saindo da toca

Carlos Azevedo existe. Como o Piauí, tema de uma de suas antológicas reportagens escritas para a Realidade – revista que morreu já faz quatro décadas e, no entanto, continua bem viva na memória de jornalistas e leitores formados nos anos 60 do século passado -, o autor se confunde com sua obra, ao mesmo tempo rica e humilde.

“Quando você faz alguma coisa que ama, ela toma conta de você. Depois dela, para onde você vá, ela vai com você. É uma cicatriz, talhada a fome e sede, suor e medo, esperas e correrias, a ferro e fogo. Ela é sua criatura, mas também criou você. Está lá e não volta mais”, lê-se na última página de Cicatriz de Reportagem, livro em que resume a trajetória de uma carreira interrompida pela ditadura militar no auge do sucesso profissional.
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Há tempos não o encontrava, embora morando na mesma cidade e tendo a mesma profissão na carteira de trabalho. O repórter Carlos Azevedo sempre foi para minha geração a mais misteriosa daquelas lendas vivas que passariam o resto dos tempos contando a história do nascimento, vida e morte da revista Realidade – tema central do livro, que reproduz seus principais trabalhos e conta como foram feitos.

De vez em quando, ele faz uma aparição rápida em alguma publicação ou campanha política, e imerge de novo, sem deixar pistas nas redações, sobrevivendo pelas beiradas. Por onde andará o Azevedo?, costumam se perguntar seus antigos colegas. Nem sei direito o motivo, mas sempre me interessei mais pela vida desses autores que foram ser esquerdos na vida do que por suas obras – quem sabe, até para poder entendê-las melhor.

Por isso, ao reencontrá-lo tomando uma cervejinha ao lado da inseparável companheira, Maria Lúcia, na mesa mais discreta do sempre lotado restaurante Martín Fierro, na Vila Madalena, em São Paulo, nem falei do livro. Fui logo perguntando se foi ele quem abandonou a grande imprensa ou se viu deixado por ela. Naquela segunda semana de setembro, Azevedo tinha saído da toca para o lançamento do livro Cicatriz de Reportagem (Editora Papagaio, 404 páginas), obrigando-se a fazer uma coisa de que não gosta, e visivelmente o incomoda: falar de si mesmo, em vez de contar as histórias dos outros, como é do seu ofício.

“Sabe, eu vivi muitos anos na clandestinidade e acho que, depois, fiquei meio queimado…”, começa a falar com muito cuidado, olhando para os lados, pesando cada palavra em frases bem pontuadas. Parece até que ele ainda incorpora Marcos Rovaris, o nome falso que usou por dez anos ao viver na clandestinidade, em Campinas, no interior paulista. Já passava das duas da tarde. A idéia era almoçar primeiro para depois conversar sobre o livro, mas o jeito foi começar logo a fazer minhas anotações para não perder as lembranças do período que representou um divisor de águas na vida do casal e o marcou para sempre.

1969. Maria Lúcia tinha um filho adolescente do primeiro casamento, Rogério, que já trabalhava. Os dois tiveram Ana e Luciano, que ainda eram pequenos quando Azevedo resolveu largar a Realidade e a carreira de jornalista, para tornar-se militante da Ação Popular, uma organização posta na ilegalidade pelo regime dos generais (ler em “Aproxima-se a hora de ‘pegar o paletó’”, capítulo do livro no qual ele conta as razões de sua virada na vida).

Ao entrar para o PCdoB (Partido Comunista do Brasil), algum tempo depois, ganhou a carteira de identidade de Marcos Rovaris, capturada por militantes encarregados desse serviço entre os achados e perdidos num ponto final de ônibus. Nascido em Criciúma, Santa Catarina, Rovaris era dois anos mais novo que Azevedo, mas deu para quebrar o galho.

Anos mais tarde, Azevedo tomaria um susto ao ler num jornal de Santa Catarina que Marcos Rovaris, membro do antigo MDB, estava sendo denunciado por corrupção. Com o aluguel de um pequeno apartamento herdado da mãe por Maria Lúcia e um pró-labore pago pelo partido, como membro da Comissão Nacional de Propaganda, não foi fácil adaptar-se à vida clandestina. “Com a vivência na clandestinidade a gente se transforma, tem que aprender a dividir um bifinho”, recorda-se Azevedo. Junto com a mulher, começou a fazer traduções e adaptações de histórias de amor para as revistas femininas da Editora Abril, o jeito que os amigos encontraram para ajudá-lo.

A situação piorou de vez a partir de um dia que ele não esquecerá nunca, o do “Massacre da Lapa”, como ficou conhecido o episódio em que a repressão exterminou o Comitê Central do PCdoB, em 16 de dezembro de 1976. Por razões de segurança, Azevedo mantinha contato com apenas uma pessoa do partido, Aldo Arantes, que acabou preso. Como era ele quem tinha de ser procurado pelo partido, e nunca o contrário, o jornalista ficou dois anos sem se comunicar com qualquer membro do PCdoB.

Só no final da década de 1970, já com o movimento pela Anistia nas ruas e a volta dos primeiros exilados, Azevedo se animou a procurar novamente os amigos para avisar que estava vivo e precisava de trabalho. Queria, lentamente, voltar para a vida legal, abandonando a identidade de Marcos Rovaris. Nesse meio tempo, escreveria dois pequenos livros mimeografados em que denunciava a política indigenista do governo militar e a estrutura fundiária, publicações que circularam mais no exterior do que no Brasil. Partes desses textos foram depois editadas no semanário alternativo Movimento, ainda com pseudônimos (Pedro Ferro e Tiago Santiago), e serviriam como peças de acusação contra a ditadura militar brasileira no julgamento feito pelo Tribunal Bertrand Russell.

“Estou voltando, preciso trabalhar em algum lugar porque na grande imprensa não dá mais”, avisou Azevedo a José Carlos Marão e Narciso Kalili, seus amigos dos tempos da Realidade. De volta a São Paulo, passou a trabalhar durante o dia com Kalili na Doçura, uma revista voltada para as donas-de-casa e distribuída aos clientes pela rede de supermercados Pão de Açúcar, e à noite editava o jornal Tribuna Operária, do PCdoB. Tudo a ver…

Pouco tempo depois, em maio de 1980, Azevedo deixaria o partido, mas sua carreira na Doçura durou bem pouco. “Os Maridos Assassinos de Minas Gerais”, uma reportagem dele que está no livro, provocou uma crise com os donos da revista que acabou levando à demissão de Kalili. Mas, como eram bons de serviço, não demoraram a aparecer novos trabalhos. Kalili foi para o Fantástico, da TV Globo, enquanto Azevedo era convidado pelos velhos amigos de antes da clandestinidade para trabalhar como repórter do Globo Rural. “Reportagem para televisão? Nem pensar, falei para eles. Não sei fazer isso.” Eles, no caso, eram o diretor Humberto Pereira e o editor Gabriel Romeiro, que estão lá até hoje.

Pois fez, sim, e deu tão certo que Azevedo se tornou uma das estrelas do programa, autor de uma bela série de reportagens apresentada durante nove semanas seguidas pela TV Globo, em 1984. O texto de “A Boiada” constitui um dos capítulos mais emocionantes do livro. “Em algum momento de 1985, a insatisfação, que sempre me acompanha, me levou a uma nova mudança”, escreveu na apresentação. Na campanha de Fernando Henrique Cardoso para a Prefeitura de São Paulo, em 1985, seria convocado por outro amigo, Eurico Andrade, para assumir a direção do programa de TV, depois que toda a equipe de marqueteiros havia sido demitida pelo coordenador Sergio Motta.

“Minha única experiência em televisão era como repórter. Falei que não me sentia em condições de aceitar aquilo, mas me responderam que era uma missão, tinha que ir.” O grande desafio do tarefeiro Azevedo com seu know-how de PCdoB – além de montar uma equipe às pressas e aprender a fazer televisão fazendo – foi popularizar o candidato que só queria gravar em estúdio “feito um rei”. Bota ele no meio do povo cumprimentando as pessoas, diziam, mas de que jeito?

“Ele achou ruim, mas acabou aceitando. Era duro pra caramba. Dava a mão pra um e olhava pra outro, tinha uma dificuldade muito grande pra falar com o povo”, conta Azevedo. Nem os artistas da TV Globo e as peças publicitárias que Walter Clark mandou para ajudar na campanha deram jeito naquilo – e Fernando Henrique Cardoso acabou perdendo as eleições municipais para Jânio Quadros. “E eu estava novamente desempregado…”

1989. Durante a campanha em que seria eleito diretamente o primeiro presidente da República após a ditadura, fui encontrar Carlos Azevedo novamente ao lado de Paulo de Tarso Santos, com quem havia trabalhado na campanha de FHC, agora na montagem da Rede Povo, o programa de televisão do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva no horário eleitoral.

“Era tudo muito diferente. Ficavam uns 20 caras da Frente Brasil Popular a manhã inteira discutindo num mesão na minha sala, e nunca chegavam a conclusão nenhuma. No segundo turno, teve uma participação muito grande de militantes e voluntários. Foi a única campanha política coletiva que vi na vida, todo mundo querendo ajudar, alugando a minha orelha o tempo todo, dando sugestões de como responder ao Collor…”

Collor ganhou, mas Azevedo nunca viu uma festa da derrota tão animada como a do PT. Dias depois da eleição, ele foi a um churrasco na casa de Ermínia Maricato, na Vila Madalena, que varou até a madrugada, com Lula e tudo. Desempregado outra vez, arranjou um trabalho no Estadão, mas bem longe das páginas de política que havia freqüentado antes do golpe de 1964. Foi ser repórter do “Suplemento Agrícola” do jornal por algum tempo, até aparecer outra campanha política para fazer, em Campinas.

Dessa vez, foi vitorioso, e era lá que ele estava, trabalhando com o prefeito eleito Magalhães Teixeira, quando Lula ligou. Queria tê-lo novamente a seu lado na campanha presidencial de 1994. Mais uma vez, porém, era Azevedo quem não queria, mas acabou indo, como de costume. Lula era o favorito até o início da campanha, aí veio o Plano Real, FHC disparou nas pesquisas, e não havia mais milagre capaz de reverter o resultado.

Ainda com faro bom de repórter, apesar da atividade de “propagandista político”, Azevedo se deu conta de que a derrota era irreversível ao encontrar um bêbado num bar empunhando a nota de um real da nova moeda. “Isso aqui agora é dinheiro, meu amigo! Dá pra tomar cinco doses! Tomo hoje, tomo amanhã, o preço não muda, é o real!” Daí para frente, lembra Azevedo, “foi só apanhar”.

Em novo período de entressafra, qualquer coisa ajudava a pagar as contas no final do mês, até colaborar num guia turístico do Rio de Janeiro editado para a Folha, com patrocínio da Fiat, por amigos de Azevedo. Reportagem mesmo ele só voltaria a fazer em 1997, na mesma época em que escreveu a primeira versão de Cicatriz de Reportagem, que permaneceria por dez anos arquivado no seu computador, até ser resgatado pelo editor Sergio Pinto de Almeida, outro outsider multimídia da nossa imprensa, no início deste ano.

Raimundo Rodrigues Pereira, o editor de Movimento, com quem Azevedo trabalhara clandestinamente numa edição especial da Realidade sobre a Amazônia, depois de ter saído da revista, encomendou-lhe uma reportagem sobre a vida na fronteira do México com os Estados Unidos para o número zero de Manifesto.

“O Muro Americano” acabou ocupando a edição inteira, mas a revista nunca saiu do zero. Para economizar nas despesas, bem diferente dos tempos de Realidade, em que dinheiro não era problema, Azevedo alugou um carro em Los Angeles e dirigiu por 3.140 quilômetros, trabalhando ao mesmo tempo como motorista, repórter e fotógrafo. Mal falando inglês, passou por apuros. “Você fica sem saber se faz uma coisa ou outra…”

Na volta, em mais uma fase de ressaca profissional, começou a reler suas reportagens antigas e teve a idéia de fazer uma seleção das matérias com comentários sobre os bastidores de cada uma: “Isso aqui pode dar um livro”. Os amigos o desanimaram na empreitada. “É legal, mas… Você tem que escrever um livro é sobre o teu período de clandestinidade”, foi o conselho que mais ouviu, e esqueceu o projeto literário.

Até hoje, Azevedo não se animou a escrever sobre os seus tempos de Marcos Rovaris. Prefere contar como virou jornalista por acaso – ele queria mesmo era ser escritor, embora só tenha estudado até o segundo grau – no vespertino A Hora, chefiado por Ângelo Calabrese, na Rua Barão de Iguape, perto da Lavapés, no bairro da Liberdade, como ainda bem se lembra, depois de passar uma breve temporada trabalhando no Banco Mercantil.

Tinha 19 anos, está com 67. Sem nostalgia ou saudade das grandes redações, em que já não consegue mais se ver trabalhando, o velho repórter mostra ceticismo ao falar do atual cenário da sua profissão. “É uma imprensa cada vez mais corporativa, representante de setores da elite. Esse jornalismo neutro de que falam é um embuste, não existe. Nos últimos embates políticos no País, botaram o rabo de fora e perderam credibilidade com seu discurso hegemônico.”

Teimoso por vocação, Azevedo segue na trilha que escolheu, sem nunca mudar de lado, preocupado apenas em garantir a sobrevivência, alheio a maiores ânsias de poder e glória. A perda de Ana, a filha que morreu de câncer há três anos, levou Azevedo e Maria Lúcia a fazer de suas vidas uma homenagem a ela, quer dizer, “a ser melhor nas coisas que ela gostaria que a gente fosse e fizesse, oferecer mais resistência ao inimigo, ser um osso mais duro de roer”.

Foi Ana quem deu a melhor definição do pai: “Ele não é fácil”.


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