Samba indie já morreu

Nesses dias cabeludos em que o lançamento de um CD já é discutível – por que não oferecer para download, distribuir em pen drives, lançar só em Marte? -, colocar um álbum no mercado, ainda por cima duplo, é sem dúvida louvável. Romulo Fróes dividiu seu terceiro álbum, No Chão sem o Chão (YBmusic) em 1a Sessão – Cala a Boca já Morreu e 2a Sessão – Saiba Ficar Quieto. Tal ousadia atraiu uma coleção de cabeças coroa-das da novíssima geração. De uma enfiada, o cantor de óculos e cara fechada contou com as vozes afinadas de Mariana Aydar, Lulina, Nina Becker, Andreia Dias e da americana Anya, além das brincadeiras de Tatá Aeroplano, e cercou-se por um Power Trio. Formado pelo baterista Curumim, o guitarrista Gui Held e o baixista Fábio Sá, esse trio evoca com todas as letras, sons, viagens e idiossincrasias o núcleo lendário em torno do qual a Tropicália foi eternizada: o guitarrista Lanny Gordin, o baixista Bruce Henry e o baterista Tutty Moreno. Em linhas gerais, o primeiro álbum traz novas leituras para canções de gaveta. O segundo privilegia as canções que nasceram do encontro.

Aos 38 anos, artista plástico de formação, Romulo é daqueles que acredita que a música vive um momento de acerto de contas com o Tropicalismo, seu modo pragmático de aceitar Odair José, Jimi Hendrix, David Lynch e Sidney Magal. “Sem pagar pau, mas também sem negar, sem precisar explicar”, define. Há duas décadas trabalhando como assistente do artista plástico Nuno Ramos, para quem faz tudo “menos cuidar de filho”, Romulo gravou dois discos na adolescência com o grupo Losango Cáqui: “O nome, do livro de Mário de Andrade, revela a pretensão”, diz o cantor que na época imitava Renato Russo. Foi só ao conhecer Clima, apelido de Eduardo Climachauska, cineasta e artista plástico, é que sua paixão por música deu liga. As primeiras composições foram sambas nostálgicos, já que Clima é de uma turma de sambistas tradicionais do Ipiranga, bairro paulistano, berço da Independência. Tem até um grupo formado há décadas, Perímetro Urbano, que só chegou ao disco agora. As músicas ficaram tão redondas que Nuno quis entrar na brincadeira.
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Cabe aqui uma explicação. Segundo Romulo, o meio de artes plásticas ao qual pertence, dá de dez na “tosqueira” musical. É um mercado no qual sua mulher, a artista Tatiana Blass, vive há cinco anos, embora tenha apenas 30. “Eu nem sequer vislumbro um dia viver da minha música”, lamenta. É um mundo que tem pensamento e crítica. Discute-se muito sobre tudo. Assim, Nuno e Clima, na faixa dos 50 anos, revelaram-se letristas incríveis. Romulo vê Nuno como um escritor, como seu contemporâneo Arnaldo Antunes. Acontece que Arnaldo foi para os palcos e Nuno para as galerias. Tal proximidade com os “senhores” levou-o naturalmente para a tradição. Cercava-se de violonistas como Ruy Weber e Zé Barbeiro (7 cordas), o cavaquinho e o bandolim do incrível Milton Mori. Com seu primeiro disco, Calado (2004), foi acertadamente tachado de sambista indie pelo crítico Pedro Alexandre Sanches – que flagrou aquela mistura de Mangueira, all star, Nelson Cavaquinho e Joy Divison. Os shows foram ficando cada vez mais underground para o desconforto dos músicos. As músicas eram roots demais, para desconforto do público. No segundo disco, Cão (2006), a contradição chegou a tal ponto que Romulo mudou a banda na véspera do lançamento, estreando seu Power Trio.

O baixista Fábio vem do Losango Cáqui e, entre outros projetos, tem o Projeto Alpha, grupo de apoio do lendário Lanny Gordin, músico que participa dos discos de Romulo desde Cão. Gui Held, a mais completa tradução de Lanny, é do Alpha. Já Curumim, a exemplo das cantoras citadas, foi caçado por Romulo, notório frequentador de camarins de novos talentos. Segundo ele, Mariana foi a primeira que deu bola para seu trabalho, gravou música sua, e dá um show em “De Adão pra Eva”; Lulina foi chamada para “Se Eu For”, pela pernambucanidade; Andreia sabia de cor “Uva de Caminhão”, de Assis Valente. Nina ganhou três: “O Que Todo Mundo Quer”, “Ninguém Liga” e “Astronauta e Tatá”, iluminou os riffs de Gui em “Para Fazer Sucesso”. Anya, que o compositor e cantor Bruno Morais conheceu em Seattle, teve a incumbência de substituir a velha guarda musical da Nenê da Vila Matilde (Irene, Clara e Laurinha) por um arremedo de “Negronas da Motown” brinca Romulo.

“Há anos que não vou a shows de artistas consagrados”, se orgulha o cantor que se arrisca até a escrever releases para o amigo Bruno, Curumim, Nina, e para o grupo cearense Cidadão Instigado. Tal combinação de bom gosto e clareza de propósitos faz com que Romulo tenha trânsito fácil entre o público e seus pares. Por exemplo, pensou em piano? André Mehmari. Trombone, arranjos para sopro? Bocato, lógico. E os dois estão lá satisfeitíssimos por participarem de um trabalho que deixa bem claro que o som de hoje já estava ali no meio de Transa (Caetano Veloso), Expresso 2222 (Gil), Fatal (Gal), Pérola Negra (Luiz Melodia) e Macalé, Macalé, Macalé, Macalé, lembra Romulo Fróes.

Explica-se: Macalé, além de grande arranjador, teve sua fase de morbeza romântica, neologismo que une morbidez com beleza. Romulo não gosta muito de ser identificado como sambista triste, mesmo porque não faz as letras. Aliás, os três nem músicos são, embora na opinião de Nuno “o Clima tenha ‘roubado’ ao estudar harmonia”. A entrada de Gui e suas composições mexeram nas letras que ficaram mais pop, duras, non sense, meio sem assunto. “Meio Melodia”, exemplifica Romulo, que as vê como sem paródia, sem humor ou ironia. Zero de amor. Não tem, vamos lá, galera. Como o artista se acha carrancudo, tem medo de parecer cabeçudo, pretensioso, mala. Prefere comparar-se a Caetano Veloso, “que não é sambista, mas é metido a”, do que a Tom Jobim seu ideal de mundo – “Ah, se o mundo todo fosse igual a Tom Jobim”, suspira o artista que não tem nada de carrancudo e só se irrita quando falam sobre a ciclotimia da MPB.


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