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Foto: Vicente de Paulo

Doze anos após afirmar-se artisticamente e atingir uma série de êxitos, Maria Rita vive outro grande momento. Em novembro de 2014, ela conquistou seu 11o Grammy Latino com Coração a Batucar, o sexto título de sua discografia, eleito Melhor Álbum de Samba. Com produção e direção artística da cantora, arranjos de Jota Moraes e repertório baseado em sambas com roupagem moderna, de compositores como Arlindo Cruz, Almir Guineto, Noca da Portela e Serginho Meriti, o álbum conquistou fãs de primeira hora, novos ouvintes de todo o Brasil e, recentemente, atingiu a vendagem de 50 mil cópias, marca que conferiu à obra o título de Disco de Ouro.

Para celebrar a conquista das duas premiações, a Universal, gravadora de Maria Rita, acaba de lançar uma reedição especial de Coração a Batucar, acrescida de um DVD, no qual a cantora apresenta as canções do disco, ao vivo, para uma plateia formada por fãs. O DVD traz também, no conteúdo extra, um videoclipe do samba Bola pra Frente, de Xande de Pilares e Bernini, registrado em Salvador, na Bahia. O filme flagra encontro especial, há tempos esperado pela cantora: a parceria com o maestro Letieres Leite, o carismático líder da Orkestra Rumpilezz, que colocou à disposição de Maria Rita parte dos músicos do Rumpilezzinho, projeto social idealizado por ele, que forma gratuitamente adolescentes e jovens músicos baianos.  

Em entrevista à Brasileiros, Maria Rita falou sobre sua relação com o samba, o encontro com Letieres, como chegou a difícil decisão de tornar-se cantora, o cotidiano familiar e como reconstrói a memória da mãe, Elis Regina, que morreu quando ela tinha apenas 4 anos de idade. Claro, fala também da influência exercida por seu pai, o compositor, arranjador e produtor Cesar Camargo Mariano.

Como tem sido a trajetória de Coração a Batucar nos palcos?
Lançamos o álbum há um ano, logo estreamos a turnê, e é muito interessante ver como o público dialoga com o repertório, dependendo do local de cada show. Em Minas Gerais, por exemplo, a recepção dos fãs sempre foi muito quente e já sabemos que será um show pra cima, que as pessoas vão para dançar. Em todas as apresentações, falo brincando para as meninas que é para elas melecarem a maquiagem e que, se ao final elas não borrarem o rosto, é porque o show não foi bom. Logo no começo dessa turnê, alguém jogou um chapéu no palco e eu o vesti no momento do bis. Devo ter, agora, uma coleção com mais de 40 chapéus. Os fãs vão se falando e acabam sabendo o que aconteceu nos shows anteriores. Eles fazem esse trabalho de boca a boca, nas redes sociais, algo muito bacana, porque cria uma cumplicidade que contagia até mesmo nós, que estamos em cima do palco. A intimidade entre eu e os músicos vai ficando cada vez maior e são esses momentos que fazem tudo valer a pena. É por isso que existe a máxima “cada show é um show”, por que nós nos alimentamos da plateia e ela da gente.

Na composição É Corpo, É Alma, É Religião, de Arlindo Cruz, Rogê e Arlindo Neto, há a frase “Eu não nasci no samba / Mas o samba nasceu em mim”. Como foi que o samba nasceu em você?  
Não tenho um momento marcante, mas minha lembrança é de, ainda criança e durante o Carnaval, ficar em casa assistindo desfiles de escolas de samba na TV. Nesse mesmo período, também recordo que eu ouvia rádios populares em um walkman que havia ganho do “Papai Noel”. Fazia o dever de casa e depois ia ouvir rádio popular e uma fita cassete do Grupo Raça, que eu adorava. Sempre gravitei nesse universo naturalmente, mas quando fui morar nos Estados Unidos (a cantora foi para os EUA com a família, em 1994) o samba era o que fazia me sentir mais perto do Brasil. Mesmo assim, as coisas não eram como hoje, que todos tem acesso a downloads. O que chegava lá não era exatamente samba. Eu tinha um disco ao vivo do Gilberto Gil com uma versão de Aquele Abraço, e lembro que a ouvia repetidamente. Depois, veio uma paixão quase acadêmica pelo samba enquanto expressão social, cultural e afirmação de negritude. O contexto histórico sempre me atraiu muito para o samba. A partir do momento que eu também descobri que um desfile de escola de samba exige um ano inteiro de preparação das comunidades, que elas se entregam daquela forma, me apaixonei de vez. Então, o samba é uma paixão que permeia minha vida desde sempre.

A propósito, o álbum embala o samba tradicional em uma roupagem mais moderna, à maneira de alguns artistas dos anos 1970, como a dupla baiana Antonio Carlos e Jocafi. Isso foi intencional?
Não foi intencional. Quando fui convidada a participar do Palco Sunset na última edição do Rock In Rio, disse que gostaria de fazer um show baseado no repertório do Gonzaguinha, porque esse palco é justamente um espaço de experimentação, um respiro para o artista que se sente engessado. Por eu ser casada com um guitarrista, aliás, o maior do Brasil (o guitarrista Davi Moraes, filho de Moraes Moreira), decidimos fazer arranjos mais pesados. Dos elementos tradicionais dos sambas do Gonzaguinha, mantivemos somente a percussão, acrescida de texturas mais elétricas. Fiquei pirada com essa sonoridade e a levamos para o disco. O Jota (o arranjador Jota Moraes) chegou a comentar “essa sonoridade era usada por alguns artistas dos anos 1970” e eu disse a ele que não sabia disso. Então, não foi mesmo intencional, aconteceu de forma orgânica e não me ocorreu pensar “ah, vamos resgatar aquele som”, até porque não sou bombeiro para ficar salvando coisas (risos).

Como se deu a parceria com o maestro Letieres Leite?
Meu flerte com ele começou há uns sete anos, quando o vi, pela primeira vez, em um programa de televisão. Desde então, o desejo de trabalhar com ele virou uma meta. Como sou absolutamente tímida, não tive coragem de passar a mão no telefone para convidá-lo. A Universal propôs fazer um videoclipe para a reedição especial do Coração a Batucar e o projeto ganhou a parceria do Instituto GVT, que apoia diversas iniciativas de educação musical, entre elas a Banda Rumpilezzinho, um trabalho lindo do Letieres, que deveria ser espalhado País afora, pois o curso eleva a consciência desses meninos e meninas, ao apresentar a música do Brasil em termos históricos, culturais, sociais e geográficos. Quando fui para Salvador e ouvi aquela molecada tocar, fiquei de boca aberta. O Letieres veio me dizer que aquela era a primeira experiência profissional e a primeira gravação deles. Quase caí de costas. Eles fizeram um trabalho inspiradíssimo. Foi emocionante tocar com eles. Sai de lá chorando.

Veja o clipe da cantora com a Banda Rumpilezzinho

Há alguns anos, entrevistei seu pai (leia a reportagem) e ele disse que sua intenção de ser cantora foi para ele uma enorme surpresa. Como se deu essa decisão?
Foi mesmo um processo solitário. Aos 15 anos, eu li o Cartas a um Jovem Poeta, do Rainer Maria Rilke – livro de uma poesia muito humana, que devia ser obrigatório nessa idade –, e logo na primeira carta ele diz para o garoto algo como: “Na hora mais solitária, na noite mais escura, no momento mais sombrio, questione: se tirassem de você o direito de escrever, você viveria? Se a resposta for sim, faça qualquer outra coisa, menos escrever”. Eu ignorei a mensagem, fingi que não era comigo, segui minha vida e fiz duas universidades, Comunicação Social e Estudos Latino-americanos. Em 2001, houve o atentado ao World Trade Center e os Estados Unidos entraram em um enorme caos. Vim passar um tempo no Brasil para depois retomar meus estudos, mas o Pedro (o cantor Pedro Mariano, irmão de Maria Rita, também filho de Cesar) estava gravando um disco e fui vê-lo algumas vezes no estúdio. Entrei em crise existencial e fiquei uns quatro dias sem dormir. Eu já estava com 24 anos e vinha fugindo da música desde os 10. Fui reler o livro do Rilke e conclui que eu estava sobrevivendo e não vivendo. Meu pai é um cara muito romântico, artista à moda antiga, e sempre disse que ficaria feliz se soubesse que o que escolhi para fazer da vida me faz feliz, mesmo que fosse catar lixo na praia. Ele percebeu que eu não estava bem, contei a ele o que se passava. Ele disse que ia me dar apoio total, mas também alertou: “Você sabe que vai enfrentar um problemão…”. Sim, eu sabia que teria de enfrentar tubarões, lança-chamas e uma barra tremenda para me afirmar, mas cantar era algo que estava dentro de mim. É aquilo que o Rilke diz: “Pouco importa o que pensam sobre o que você faz, o que importa mesmo é que você seja verdadeiro, que você seja você”.

Apesar desses 15 anos de segredo, qual a dimensão da influência musical exercida por ele em você?
Ele é minha maior influência. Foi ele quem me ensinou tudo, porque tive de enfrentar essa coisa cruel de ver minha mãe morrer aos 36 anos de idade, no auge de uma carreira incrível. Papai está aí batalhando, correndo atrás das coisas dele e para muita gente ele também é um mito. Canso de encontrar músicos que vem dizer que ele mudou suas vidas. Para muitos, a marca registrada do meu pai é o trabalho dele como arranjador. A década de 1970 e início dos anos 1980 ficaram marcados pelos arranjos dele e do Lincoln Olivetti – que Deus o tenha (Olivetti morreu em janeiro último, aos 60 anos). Meu pai é de uma geração em que o produtor era apenas produtor, o arranjador era somente arranjador e ele meio que fundiu isso tudo. O discernimento de caras como ele e Lincoln, de compreender o artista para poder torná-lo maior, é tão ou mais importante do que ficar a frente como compositor.

Impossível falar de seu pai e não tratar da sua mãe… Como você, que teve tão pouco convívio com Elis, procura reconstituir a memória dela?
Por volta dos 15 anos, procurei entender quem foi minha mãe. A Elis personagem, a Elis cantora, que todos conhecem, eu também conhecia muito bem. Nessa busca, descobri uma mulher à frente de seu tempo, determinada, guerreira, inteligente, intensa, apaixonada, ferozmente leal aos amigos, à profissão e aos seus músicos. Por isso mesmo, facilmente traída. Por todas essas características, e por sua enorme sensibilidade, ela foi uma mulher muito incompreendida. Um ser humano de sombras e luzes, e até mesmo suas sombras eram muito interessantes. Se ela estivesse viva, tenho certeza de que seríamos grandes amigas. Fico magoada, triste, por não ter tido a chance de conhecê-la de verdade. Vivo catando os cacos da sua história e prefiro ouvir os depoimentos de amigos dela do que ficar lendo o que escreveram sobre ela. É por isso que adoro ficar vasculhando velhas entrevistas que ela deu, porque eu sei que ali estava Elis por inteiro.

A propósito, como é a Maria Rita mãe? A rotina de ensaios e shows afeta sua relação com as crianças (ela é mãe de Antônio, 10, filho da primeira relação com o cineasta Marcus Vinícius Baldini e Alice, 2, filha dela com Davi)?
Não é fácil. Antônio não tem mais idade para perder aulas, mas Alice, claro, a gente protege demais. Às vezes, estou no aeroporto e começo a chorar de saudades deles. Ou então, preciso viajar e Alice está em casa com febre. Não gosto de ficar muito tempo ausente deles, porque a casa gira em torno da mãe. O mais bacana dos filhos é a troca. Valorizo muito as lições que meus filhos me dão. O Antônio, por exemplo, já entende que sem trabalhar eu não fico legal, que não me sinto bem e ele é muito parceiro. Claro, vez ou outra reclama, porque é criança. A Alice vai pelo mesmo caminho.

E o cotidiano com Davi? As pessoas devem imaginar que vocês são um casal que passa o tempo a pensar em música…
É uma relação muito bacana. A gente conversa muito, mas, claro, não só sobre música. O Davi nasceu em um sítio e mesmo depois de o Moraes ter saído d’ Os Novos Baianos e do sítio, as casas em que ele viveu tinham uma frequência absurda de músicos e parceiros do Moraes. Já o meu pai, enquanto arranjador e produtor, sempre teve uma relação de trabalho mais solitária, na dele. Com isso, eu e Davi tivemos experiências que permitem trocas muito legais. O estúdio em casa está sempre aberto para outros músicos. Ele está sempre tocando, me chama para mostrar as coisas que está fazendo. Ouvimos gêneros muito diferentes e trocamos muitas informações, mas devo dizer também que, talvez, a gente veja mais futebol do que ouça música. É uma relação muito leve e natural.

MAIS: 
Cesar Camargo Mariano esteve no Brasil no início de março, para mais uma participação no festival Música em Trancoso, e foi entrevistado pela Brasileiros. Leia a íntegra da reportagem: http://old.brasileiros.com.br/iJOF0 


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