O rosto da minha mulher expressava as tantas horas trabalhadas e o receio pelas tantas horas de espetáculo que nos aguardavam. Chegamos ao teatro às 21 horas de 16 de agosto. Adentramos o Oficina, já com uma fila festiva de atores e público dançando juntos. Olhei o rosto da minha companheira e a vi feliz, alegre, brilhando, bela no meio a tantos corpos belos que transpiravam uma felicidade tão singular e tão brasileira. Era o começo da Macumba Antropófaga Urbana de Sampã que estreava aquela noite para festejar os 50 anos do Teatro Oficina, o tombamento do prédio do teatro e o lançamento da Universidade Antropófaga.

Logo a seguir, nós e os 300 presentes saímos em cortejo pelo Bixiga, até a primeira parada no Teatro Brasileiro de Comédias. Silêncio. Feito o primeiro ponto de macumba, as portas do TBC se abriram. Surgiu Cacilda Becker. Maravilhosa. O cortejo continuou até o prédio onde morou Oswald de Andrade. Depois do tributo, voltamos para o teatro com José Celso Martinez Corrêa já conectado com todos, elenco e público.
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Voltamos ao teatro pelo terreno de Silvio Santos, até uma tenda ali erguida. Um carro de luxo chegou ao terreiro do Oficina. Dele desceram Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Ali foi celebrado o banquete antropofágico, com destaque para o corpo de uma atriz de 75 anos, Vera Barreto Leite, em um erotismo difícil de se compreender pelo senso comum e fácil de se transportar a um ser desejante por mundos oníricos.

De volta ao teatro, a Macumba continuou pela passarela, pelas colunas e pelos quatro cantos do Teatro Oficina. Ali baixaram Carlos Gomes, com atuação magistral do guerreiro Zé Celso, ao piano, manifestando um dos tantos talentos com os quais combate o tradicional teatro da representação e hipocrisia. Padres, juízes, inúmeros personagens e até Amy Winehouse – e o teatro inteiro cantou No, No, No!

Em meio ao carnaval, minha companheira me assinalava com seu olhar os poucos outros que, como nós, teriam mais de 50 anos. Mas, além da alegria de se confundir com esses corpos juvenis e a nudez antipornográfica do Oficina, é preciso observar que a impaciência de muitos cinquentões se deve ao preconceito reinante a respeito das repetições que se observam nas obras do Oficina. Quem assistiu às Dionisíacas pôde ver ritornelos ou ritmos que marcam um estilo e que a cada repetição liberam uma diferença. Cada obra do teatro expressa uma paixão irrefreável pelo acontecimento. Todo texto é recriado e todo som produzido, especialmente em uma produção de singularidade e de criatividade.

No meio da obra que portamos na memória como um turbilhão inalcançado e uma sensação de infinito, ouvimos da boca do Zé Celso a expressão “Sampã”.

Fomos embora com ela, com a sensação de ter experimentado a grandeza de um ponto de luz de nossa cidade. Grandeza não somente porque o Oficina é um contraponto às políticas de exclusão, as paixões tristes e avarentas da cidade grande de alma pequena, mas porque sua práxis dionisíaca e sua poiesis antropófaga estão persistindo à plena criatividade.

O Oficina pode cunhar a voz “Sampã”, porque expande sua peste pela cidade verdadeiramente grande, porque é múltipla. Lá acontece tanta coisa, como o Projeto Bexigão com oficinas de dramaturgia, circo, música e outras ações antecipatórias da Universidade Antropofágica, que hoje, apesar da injusta falta de financiamento, expande sua ação pelas ocupações do centro. É difícil compreender ações não assistencialistas. O Oficina é um polo ético-estético de São Paulo, nossa reserva libidinal. Que Uzyna Uzona continue iluminando o Brasil e o mundo.


*Psicanalista, autor de Clínica Peripatética Editora Hucitec


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