Sampa de Bloco na Rua

O primeiro carro alegórico do ano com certeza é fevereiro. Antes dele, janeiro ensaia, faz coreografia sem tropeço, sorri pra arquibancada, mas não deixa de ser um qualquer invadindo a passarela. A folia nos degraus de concreto (ou nos camarotes condicionados) sobe mesmo com a entrada do mês seguinte, e o brasileiro abraça finalmente o novo ano com um jeitinho que é só nosso. O Brasil cordial é carnavalesco!

Em São Paulo, que pra um ou outro regionalista é túmulo cultural, o tal do samba nasceu fervendo, com batuque firme e muita volúpia. Ainda no Brasil colonial, alguns cronistas mais recatados se assustavam com as batucadas, dizendo não existir dança mais lasciva, grosseira e brutal. Já Mário de Andrade, paulista desvairado, visitou Pirapora do Bom Jesus em 1937 e escreveu sobre a “sensação fácil de sensualidade” encontrada no samba rural – sensação que o bom folião preserva até hoje.

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Esse samba apontado por Mário de Andrade ainda possuía muitos aspectos daquele praticado anos antes, no começo do século XX, e que responde pelas raízes mais profundas do samba essencialmente paulista. As festas religiosas no município de Pirapora, às margens do Tietê, eram um convite à reunião de sambistas e músicos da região. Ali, muitos bambas foram batizados em roda de poeira, dentro de barracão de alvenaria e na mais pura libertinagem.

Com o passar do tempo, a festa católica foi crescendo, assim como a parcela “profana” – e sambada – do festejo. A Igreja, descontente, aboliu os batuques e demoliu os barracões. Na mesma década de 30, em Santana do Parnaíba, outra decisão conservadora e de fundo racista proibiu os cordões carnavalescos de desfilar pelas ruas da cidade.

O declínio da festa de Pirapora deu início ao empobrecimento do samba paulista, e no interior do estado ele desapareceu aos poucos – em função ainda da modificação do padrão de vida da cultura caipira tradicional. Na capital, unificou-se ao processo de formação dos cordões carnavalescos e, posteriormente, constituiu parte da origem das Escolas de Samba, quando deixou, enfim, seus padrões tradicionais.

Os famosos cordões paulistanos, como Vai-Vai, Camisa Verde e Branco, e o inaugural Barra Funda, até certo ponto lutaram contra as transformações musicais. Foi difícil, no entanto, resistir à imposição mercadológica advinda principalmente com o surgimento do rádio, que disseminou o samba carioca por todo o Brasil, comercializando o ritmo. A modernização dos meios de divulgação musical contribuiu significativamente para a ascensão desse modelo, enquanto o samba paulista sequer dominava a programação local.

É expressiva a história do primeiro samba composto por Geraldo Filme, o Geraldão, quando era somente uma criança com dez anos de idade. Seu pai, admirador dos malandros cariocas, instigava o menino dizendo ser o samba do morro o melhor do país. A resposta veio com o cavaco, no sincero Eu vou mostrar. Apesar das boas intenções de Geraldo, no final da década de 60, quando o carnaval de São Paulo foi enfim oficializado, a influência do Rio de Janeiro já podia ser percebida em toda ritmada paulistana.

Poucos anos depois, os últimos e tradicionais cordões da cidade deixam de existir: tornam-se Escolas de Samba, seguindo a inovação carioca.

Mas é fevereiro (!) e o que não falta em São Paulo é gente querendo resgatar o espírito dessa terra. Quando o poder público colabora, a cidade chora de alegria ao ouvir o urro da cuíca no asfalto, no meio da rua. Os cordões, tradicional modo de festejar paulistano, estão reassumindo seu lugar ano após ano. O Carnaval já vai começar com a força de um bem tocado bumbo, com a população ocupando o espaço público, nosso salão de festas.

Pois é, amigo, pode me faltar tudo na vida, mas hoje o que não falta é bloco na rua.


Comentários

2 respostas para “Sampa de Bloco na Rua”

  1. A leitura corre fácil ,um toque de nostalgia..
    amei!

  2. Show!!!! Muito bom!

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