Começo de tarde de quinta-feira. A passos lentos, retorno de meu almoço. Como mantenho o estúpido hábito de fumar, paro na calçada, em frente ao prédio que sedia a redação da Brasileiros, e disperso os minutos finais de meu intervalo, observando a movimentação no ponto de ônibus, a poucos metros dali. Em meio aos passageiros que aguardam a chegada de seus coletivos, percebo um sujeito que destoa do grupo. De cabelo impecavelmente penteado para trás, costeletas largas, cavanhaque estilizado e roupas negras, ele se dedica a fotografar grafites que ilustram a fachada de alguns comércios da Rua Mourato Coelho. A cena subverte a apatia que costuma reinar nos pontos de ônibus e me deixa instigado. Mal poderia desconfiar que, minutos depois, me veria cara a cara com esse suposto fotógrafo amador interessado por arte urbana, e que estava diante de uma das maiores autoridades mundiais, quando o assunto é a história da produção latino-americana de fotografia e artes visuais.
Roberto Tejada tem 45 anos. Historiador, curador, crítico e poeta, assume papéis relevantes em tudo o que faz. Doutorado pela Universidade Estadual de Nova York, em Buffalo, lecionou na Universidade Nacional do México (UNAM) e dissemina seus profundos conhecimentos em arte latino-americana para um sem número de instituições de ensino, veículos de imprensa, museus e galerias. Autor de livros de reconhecido valor histórico, como National Camera: Photography and Mexico’s Image Environment, Tejada conviveu por quase dez anos com o grande poeta mexicano Octavio Paz, vencedor do Nobel de Literatura de 1990. Veio ao Brasil para retomar as pesquisas sobre nossa produção fotográfica e poética, e chegou à nossa redação por recomendação de amigos comuns, que o apresentaram nossa publicação ARTE!Brasileiros – cuja última edição foi inteiramente dedicada à arte da fotografia.
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Cerca de uma hora depois de meu primeiro contato visual com Tejada, recebo ligação de nosso diretor de redação, com a pauta para entrevistá-lo, dali a 15, 20 minutos. Minucioso que sou com a história de meus personagens, fico preocupado com o breve tempo que tenho para pesquisas, mas, graças à rica trajetória e visão crítica de Tejada, a conversa fluiu com naturalidade e resultou nessa entrevista imperdível.
Brasileiros – Você nasceu nos Estados Unidos, mas seus pais são colombianos. Vem dessas origens o interesse pela cultura latino-americana?
Roberto Tejada – Meus pais são colombianos e nasci em Los Angeles. Desde pequeno, tenho enorme interesse pelo México, pois Los Angeles é uma cidade muito mexicana. Em 1987, fui para a Cidade do México, onde me envolvi com o movimento artístico que surgiu no início dos anos 1990. Escrevi em uma revista de política e de arte, que já não existe mais, a Vuelta, que era editada por Octavio Paz. Fiz parte da equipe editorial que fundou a Vuelta, e trabalhei depois com a revista Artes de México, onde fui editor. Vivi por dez anos no México e, por intermédio dessas duas revistas, comecei a escrever sobre a arte latino-americana e cada vez mais sobre fotografia.
Brasileiros – Prestes a voltar para os Estados Unidos, você passa a ter uma forte ligação com a fotógrafa Graciela Iturbide…
R.T. – Exatamente. Foi nessa época que conheci Graciela. A revista Aperture, de Nova York, me pediu que escrevesse o ensaio principal para um livro dela, o Images of Spirit, publicado em 1996. No ano seguinte, sua galerista em Los Angeles, Rose Shoshana, e um colecionador patrocinaram uma viagem que Graciela e eu fizemos ao sul dos Estados Unidos, que resultou na exposição Flatlands. Durante três semanas, rodamos pelo Mississipi, Alabama, New Orleans e Lousiana. Ela fotografando e eu escrevendo o texto para a exposição.
Brasileiros – Em 2009, essa década de permanência no México o instigou a produzir o livro National Camera.
R.T. – Essa paixão pela produção mexicana começa a ser aprofundada, em 1997, quando o J. Paul Getty Museum, de Los Angeles, me pediu para ser cocurador de uma exposição do fotógrafo e grande mestre dom Manuel Álvarez Bravo, chamada Optical Parables. Em 2001, estava terminando meu doutorado na universidade em Buffalo, prosseguia publicando textos sobre história da fotografia, e comecei a me dedicar às pesquisas que resultaram no livro National Camera: Photography and Mexico’s Image Environment, onde procuro estabelecer um olhar sobre a fotografia mexicana, desde seu início, nos anos 1920 e 1930 – durante a Revolução Mexicana e os anos de modernismo de artistas como Tina Modotti, Edward Weston e o próprio Manuel Álvarez Bravo – até chegar à produção dos anos 1970.
Brasileiros – Destacaria algum artista contemporâneo que te provoca grande entusiasmo?
R.T. – Há um jovem fotógrafo, chamado Luis Gispert, americano de origem cubana que muito me interessa. Ele produz fotografias em grandes formatos e lançou uma série, em 2001, que me chamou a atenção e resultou no livro Luis Gispert – Loud Image, onde escrevi o ensaio. A série apresenta garotas vestidas como cheerleaders, mas posando como em obras famosas da história da arte, em um fundo verde de cromaqui. Uma obra que traz referências da cultura popular e mistura elementos de hip hop com a história da arte.
Brasileiros – Seu interesse vai da arte multimídia ao fotojornalismo, mas esse olhar voltado para a América Latina continua predominante?
R.T. – Sim, me interessa abordar a América Latina, especialmente, porque nos Estados Unidos há uma presença muito forte da cultura latino-americana. Escrevi também o texto de A Ver, livro de uma importante artista multimídia – americana de ascendência mexicana – chamada Celia Alvarez Muñoz, que está hoje com 70 anos. Foi uma das primeiras artistas conceituais do movimento Chicano e tem um trabalho muito ligado ao minimalismo. Pouco conhecida por aqui, mas produz muito ainda hoje.
Brasileiros – E como surgiu seu interesse pela produção brasileira?
R.T. – Em 1994, houve uma exposição no Museo de Arte Contemporáneo de Monterrey, no México, chamada La Mirada Iluminante, com curadoria de Ivo Mesquita, onde escrevi um texto sobre o artista Daniel Senise. Tempos depois, escrevi sobre o fotógrafo Miguel Rio Branco, para a revista Aperture. Continuei investigando a fotografia contemporânea produzida no Brasil e conheci Paulo Herkenhoff (diretor do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro) na Cidade do México. Por meio dele – que é o curador – e dos patrocinadores, tive a oportunidade de vir para o Brasil, em Curitiba, para ver a exposição Onde a Água Encontra a Terra, que reúne trabalhos de Leonardo Kossoy, Fernando Azevedo e Carol Armstrong
Brasileiros – Essa é sua primeira visita ao Brasil?
R.T. – Não. Já estive antes, há quatro anos, quando vim a convite do poeta brasileiro Horácio Costa para uma conferência e palestras sobre poesia. Tenho duas coletâneas de poemas publicadas (Gift + Veredict, 1999, e Amulet Anatomy, 2001) e também sou diretor de uma revista anual de poesia, criada em 1992, que se chama Mandorla: New Writings from the Americas, mantida por mim e meus sócios, Kristin Dykstra e Gabriel Bernal
Brasileiros – E o que tem visto no Brasil? Como tem sido sua agenda por aqui?
R.T. – Tenho ido a galerias, museus e vi algumas coleções. Fui à SP-Foto/Arte, fui ao MIS ver a exposição de Miguel Rio Branco e devo dizer que a curadoria foi muito primorosa na seleção. Quarenta anos de um grande trabalho muito bem sintetizados. Conheci jovens fotógrafos e coletivos como a Cia de Fotos. Volto em outubro, para o II Fórum Latino-americano de Fotografia, no Itaú Cultural.
Brasileiros – E quais suas impressões sobre a exposição Onde a Água Encontra a Terra? Enxerga unidade na produção dos três artistas?
R.T. – Achei fantástica. Uma das coisas interessantes sobre essa exposição é que ela ajuda a estabelecer um olhar entre Brasil e Estados Unidos. Carol é americana e Leonardo e Fernando são brasileiros, mas vivem em Nova York. Penso que essa exposição está contribuindo para estabelecer uma nova fronteira – por meio do olhar – entre Brasil e Estados Unidos.
Brasileiros – E quais são seus planos? Tem alguma nova exposição em vista?
R.T. – No momento, tento negociar com o Paulo Herkenhoff para ver se levamos Onde a Água Encontra a Terra aos Estados Unidos. Como curador, também pretendo recomendar alguns fotógrafos brasileiros a museus, ou até mesmo eu, com o conhecimento que estou adquirindo aqui, organizar uma exposição.
Brasileiros – Você citou, há pouco, a Cia de Fotos. Como vê essa retomada aos processos coletivos de produção?
R.T. – É curioso, pois isso sugere um retrocesso. Nos anos 1970, havia muitos coletivos e agora cresce novamente o interesse pela coletividade. Nos Estados Unidos, no México, na Europa e até na Argentina, essa é uma tendência inegável. Corresponde a algo que, mais do que eu poderia opinar, me interessa como fenômeno, sugerindo que, de alguma maneira, querem esconder a autoria. Ao invés de se concentrar nos resultados, há um interesse maior pelo processo, pela prática.
Brasileiros – É curioso, pois esses coletivos também têm invadido a esfera do fotojornalismo. A Cia de Fotos, por exemplo, frequentemente publica trabalhos em jornais e revistas.
R.T. – Creio que há uma linha tênue entre o fotojornalismo e essas obras mais pessoais, que dialogam com o mundo da arte. Na Cia de Fotos, por exemplo, a coletividade dá condições de trabalhar processos e, por outro lado, esse trabalho coletivo nutre conceitos que poderiam estar por trás de uma obra de arte pessoal e crítica. As conversações obrigam a isso. O processo coletivo exige negociações continuas.
Brasileiros – Inevitável te pedir para contar um pouco sobre sua experiência ao lado de Octavio Paz.
R.T. – Convivi com ele por muito tempo. Além de trabalharmos na revista Vuelta, fui seu secretário pessoal e essa experiência tão próxima foi como estar em uma “Universidade Octavio Paz”. Estar ao lado de um intelectual de tamanha força te ensina a ser crítico, a usar a esfera pública para dialogar, ser polêmico e, ao mesmo tempo, manter uma obra pessoal como poeta e como crítico de arte. Octávio foi um gigante, tive a vantagem de não ser mexicano e, com esse distanciamento, muita vezes até discordei dele que devia até sentir falta disso. Muitos jovens escritores mexicanos reverenciavam demais a Octávio e sou irreverente por natureza.
Brasileiros – E como se deu o primeiro contato? Como o conheceu?
R.T. – Havia terminado a universidade em Nova York e conhecia seu tradutor Eliot Weinberger. Éramos amigos e ele me convidou para ir ao México, com a promessa de me apresentar a Octavio para uma entrevista, em 1987. Estava com 21 anos, e Octavio carinhosamente me recebeu em sua casa e me convidou para trabalhar na revista. Esse contato só fez aumentar minha admiração por ele, pois percebi que me envolvia com alguém de uma geração que não existe mais. Um intelectual que é poeta, historiador, crítico de arte, escrevia sobre política e editava revistas. Alguém de uma magnitude incomparável, como Borges, Cortázar, Fuentes e Haroldo de Campos, aqui no Brasil.
Brasileiros – Sua revista Mandorla dedica-se a mapear a poesia latino-americana. A quantas anda suas pesquisas sobre a produção de autores brasileiros?
R.T. – A revista pretende dar conta da produção latino-americana, mas não temos dado destaque suficiente a poetas brasileiros. Vi que a Brasileiros tem uma coluna de poesia e inclusive conheço a Virna Teixeira, que teve uma poesia publicada na última edição (edição 38). Horácio Costa também está me colocando mais próximo de outros poetas jovens, dessa geração de Virna.
Brasileiros – Você retorna para o II Fórum de Fotografia Latino-Americana, que será aberto no final de outubro. Pretende permanecer mais tempo no País?
R.T. – Sim, vou esperar o verão entrar para permanecer aqui e continuar minhas pesquisas, por três ou quatro meses. Devo ficar aqui até acabar o verão, logicamente… (risos).
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