Sangue negro, navalha na carne

Noémia de Sousa. Foto: Divulgação / Kapulana editora
A poeta Noémia de Sousa. Foto: Divulgação / Kapulana editora

Plínio Marcos quem me apresentou à poesia de Noémia de Sousa. Foi lá no Recife, em viagem de férias.

A peça era Dois Perdidos Numa Noite Suja. O ator e poeta moçambicano Rogério Manjate quem veio me contar. Assim que eu o conheci em uma mesa de bar. Manjate e mais um ator encenavam, há muito tempo, lá em Maputo, o texto de Plínio. Fiquei pensando: no acento africano. Tudo a ver com os clássicos personagens Tonho e Paco. Os dois trabalhadores perdidos. Sofridos, à margem. Convidei Manjate para vir apresentar a peça em São Paulo dentro da programação da Balada Literária do ano de 2007. Ele veio e trouxe Noémia com ele. Pelas mãos. No peito. No gesto. Na afirmação da linguagem.

Deu-me de presente um, hoje raro, exemplar do livro Sangue Negro. Publicado em 2001 pela Associação dos Escritores Moçambicanos. Noémia nunca quis lançar livro. Se o leitor de meu país não pode comprar, não tem sentido eu publicar, dizia a Mãe dos Poetas Moçambicanos. Aquecido em seu colo, lírico. Seu exemplo digno. Fiquei deste jeito. Assim que Manjate partiu do Brasil. Eu, acalentado. Acordado pela defesa que a grande poeta faz da música. Sua Súplica algo cearense. Nordestina. Ela que amava a Bahia e os baianos. Ela que rezava. Gritava seus “queixumes”. Celebrava, vingada, a vitória da vida.

A partir daí, por onde fui passei a levar os versos do livro. O calor do lume. A mea-culpa. Lágrimas na terra do algodão. Ler Noémia é me sentir branco, covarde patrão. Ou, por que não, irmão da mesma tristeza. E saudade. Sou tomado da mesma liberdade que sinto quando, como leitor livre, leio Ana Maria Gonçalves, Paulo Lins, Sérgio Vaz, Ferréz, Cidinha da Silva, Miró da Muribeca. Todos e todas meus companheiros de palavra e ofício.

Foi Jorge Amado um dos melhores amigos de Noémia, a quem ela dedica um de seus poemas. Esta cumplicidade, este pacto, sempre. Leal e lírico.

O escritor irlandês Cólm Tóibín, a saber: veio me perguntar quem era ela. Logo depois de eu ter participado com ele de uma mesa na Festa Literária Internacional de Paraty do ano passado. Escolhi Sangue Negro como o meu livro de cabeceira. De cabeça. De conduta. Feito um fogo que incendeia quando recito, da mesma maneira, os cantos do meu conterrâneo Solano Trindade.

A literatura é isto, acredito. Quando a gente encontra, pelas linhas abertas de um livro, o destino de toda uma humanidade. Os tambores mais ancestrais de nossa fala. Noémia é samba. Tropical. Noite enfeitiçada. Não tem papas nem pompas na língua. Solta o verbo quando escreve. Os dentes e punhos em libertação.

Morta em 2002, logo depois de ter a sua poesia reunida com o apoio dos amigos, Noémia de Sousa segue viva. Pulsante. Amada por todo canto. E agora, felizmente, publicada no Brasil. Ela que conhecia Castro Alves, a história de Lampião, de Zumbi dos Palmares. Louvada por Mia Couto, José Luandino Vieira, Fabiana Cozza, Emicida, Nelson Maca. Reverenciada mais de uma vez no Sarau da Cooperifa, na periferia de São Paulo, eu vi.
Eu me lembro. Levei Rogério Manjate à Cooperifa àquele tempo. Antes de convidar os poetas para assistirem à sua versão da peça de Plínio Marcos, Manjate apresentou pela primeira vez em público, no bar lotado do Zé Batidão, os versos de Noémia. Comoveu. E doeu. Feito uma “Noite Suja”. Essa nossa navalha na carne.

Capa do livro Sangue Negro, primeira publicação de Noémia de Sousa a ser publicada no Brasil (Kapulana Editora, 198 páginas). Foto: Divulgação / Kapulana Editora
Capa do livro Sangue Negro, primeira título de Noémia de Sousa a ser publicado no Brasil (Kapulana Editora, 198 páginas). Foto: Divulgação / Kapulana Editora
Tirem-nos tudo,
Mas deixem-nos a música!
Tirem-nos a terra em que nascemos,
onde crescemos
e onde descobrimos pela primeira vez
que o mundo é assim
um tabuleiro de xadrez…
Tirem-nos a luz do sol que nos aquece,
a luz lírica do xingombela
nas noites mulatas
da selva moçambicana
(essa lua que nos semeou no coração
a poesia que encontramos na vida)
tirem-nos a palhota – humilde cubata
onde vivemos e amamos,
tirem-nos a machamba que nos dá o pão,
tirem-nos o calor de lume
(que nos é quase tudo)
– mas não nos tirem a música!
Podem desterrar-nos,
levar-nos
para longes terras,
vender-nos como mercadorias,
acorrentar-nos
à terra, do sol à lua e da lua ao sol,
mas seremos sempre livres
se nos deixarem a música!
Que onde estiver nossa canção
mesmo escravos, senhores seremos:
e mesmo mortos, viveremos
e no nosso lamento escravo
estará a terá onde nascemos,
a luz do nosso sol,
a lua dos xingombelas,
o calor do lume,
a palhota onde vivemos,
a machamba que nos dá o pão!
E tudo será novamente nosso,
ainda que cadeias nos pés
e azorrague no dorso…
E o nosso queixume
será uma libertação
derramada em nosso canto!
– Por isso pedimos,
de joelhos pedimos:
Tirem-nos tudo…
mas não nos tirem a vida,
não nos levem a música!


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.