A Santa Casa de Misericórdia de São Paulo é um dos maiores hospitais do País. É também uma peça fundamental da rede pública de saúde em São Paulo, onde responde pelo atendimento de grande parte do contingente de pessoas que buscam o SUS no Estado.
Na prática, porém, é difícil saber ao certo quanta gente é tratada ali. Por vários motivos. Um deles é o desabastecimento provocado pela grave crise financeira da instituição, que se tornou mais aguda a partir de 2014 e levou, mais uma vez, à suspensão de exames e cirurgias por falta de material e restrições do atendimento.
Outro motivo para a falta de informações precisas é o caos administrativo encontrado pela equipe do médico José Luiz Setúbal, eleito por aclamação em junho de 2015 para liderar a instituição. Ele substituiu o ex-provedor, o advogado Kalil Abdalla, afastado em janeiro de 2015 e sob investigação do Ministério Público por irregularidades administrativas, como superfaturamento e prática de nepotismo. Um dos herdeiros do Banco Itaú, Setúbal se especializou em pediatria e, em 2005, comprou o Hospital Infantil Sabará, em São Paulo, que alavancou para o primeiro time do atendimento na cidade.
Em uma sala imponente da Santa Casa, um prédio de 150 anos no centro da cidade, e sob o olhar circunspecto de ex-provedores, membros da Irmandade e doadores imortalizados em quadros enfileirados nas quatro paredes, Setúbal falou por duas horas sobre as pendências e vitórias após 18 meses de gestão, dos esforços para equacionar a dívida, em torno de R$ 878 milhões, e dos planos para organizar a instituição e mudar sua estrutura decisória.
Brasileiros – Qual é o papel da Santa Casa em São Paulo?
José Luiz Setúbal – Somos um hospital filantrópico e atendemos 100% SUS. No Brasil, existem mais de 1.750 instituições desse tipo que são responsáveis por metade do atendimento do SUS e por mais de 60% dos procedimentos na área de média complexidade. Com essa crise enorme que está no País, estamos funcionando abaixo do que deveríamos porque não há insumos.
Como está a saúde da Santa Casa?
Assumi a Santa Casa em julho de 2015 em uma situação muito ruim. A instituição vinha de um período de seis meses de paralisia total, em que não se tomaram as atitudes necessárias e as coisas ficaram mais graves do que antes. Em maio de 2015, tivemos um prejuízo de R$ 19 milhões. A maior parte desse dinheiro, R$ 12,5 milhões, em números arredondados, foi de déficit operacional. Os serviços bancários e da dívida foram de R$ 6,5 milhões. Nos meses seguintes, isso foi diminuindo. E precisávamos passar novembro de 2015 para sobreviver, porque havia a primeira parcela do 13º salário a ser paga. Sobrevivemos, conseguimos zerar o déficit e, a partir de então, em fevereiro de 2016, passamos a ter superávit operacional. Mas ainda devemos uma folha e meia de pagamentos. Reconheço a dívida, mas não tenho condições de pagar. E os juros da dívida continuam aumentando.
Os juros da dívida consomem os recursos que chegam?
Conseguimos ter uma operação melhor, mas não temos dinheiro para pagar os juros da dívida, que ficam entre R$ 9 milhões e R$ 10 milhões todo mês, e nem a dívida propriamente dita. Estamos sendo financiados pelos nossos credores – Receita Federal, fornecedores, funcionários. E, com essa crise no País, não só não estamos pagando os fornecedores como me parece que o governo também não está pagando os fornecedores em dia e nem outros hospitais. O que aconteceu? Os fornecedores pararam de atender a Santa Casa. Conversamos com o governo, que não tem dinheiro. Esperamos agora por um empréstimo pedido ao BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Esse dinheiro é para pagar banco e fornecedores. Nem a dívida trabalhista nem a tributária podemos pagar, mas essas estão equacionadas.
Até 21 de novembro, o empréstimo não havia sido liberado. Sem o dinheiro do empréstimo, a Santa Casa vai quebrar?
Quebrar é uma palavra muito forte. A Santa Casa é uma entidade privada sem fins lucrativos que opera de maneira filantrópica, sem visar lucros. O hospital da Santa Casa não vai fechar, mas a Santa Casa enquanto Irmandade, que é uma associação, pode quebrar. A solução que nem a Irmandade e muito menos o governo querem é a Santa Casa sofrer uma intervenção do governo. Por que eu falo que o hospital não fecha? Porque atende muita gente, o sistema público está sobrecarregado em São Paulo e essas pessoas não têm para onde ir. (Nota do Redator: O contrato do empréstimo foi assinado em 6 de dezembro com a Caixa Econômica Federal. Leia, em Saúde!Brasileiros, Santa Casa consegue o esperado empréstimo de R$ 360 milhões para se recuperar.)
Quais foram as principais medidas adotadas desde que assumiu a Provedoria, em julho de 2015?
Posso ficar falando horas sobre isso, embora não seja o superintendente, que toma as decisões e executa as medidas. Uma delas foi a demissão de 1.397 funcionários. O enxugamento de pessoas é a coisa mais importante e mais difícil de fazer, porque elimina postos de trabalho numa época de crise. E só autorizei depois que encontramos uma solução junto ao Ministério Público e ao sindicato para indenizar todos. Com isso, tivemos uma economia de cerca de 10% na folha de pagamento. Era um ajuste necessário. Para ter uma ideia, há dois anos a Santa Casa tinha 39 unidades de saúde. Hoje tem seis. Ficou com os hospitais próprios, uma unidade básica de saúde e a gestão de uma unidade de saúde mental, que é na Vila Mariana e pertence ao Estado. Na minha gestão, entregamos apenas as unidades básicas da saúde do centro e da zona norte, que são da prefeitura, porque o contrato havia terminado. Houve um chamamento para isso, nós participamos, mas fomos desclassificados por causa da situação econômica da Santa Casa.
Quais foram as outras providências de peso que tomou?
Fizemos a centralização das compras, revisamos todos os contratos, passamos a gerenciar melhor os estoques e serviços. Ocorriam absurdos. Lembro, por exemplo, que na semana em que cheguei haviam comprado não sei quantos computadores, não sei quantos celulares. Não se sabia para quê. Havia procedimentos no contrato com o SUS que a Santa Casa fazia a mais do que estava contratado – e você não recebe a mais por isso – e também serviços que fazíamos a menos e, por isso, seríamos multados. Também melhoramos a eficiência: tínhamos um sistema de informatização de prontuário comprado muito tempo antes – lembro porque eu era membro da mesa quando isso foi aprovado – que não estava instalado. Como precisamos cobrir o buraco do subfinanciamento do SUS (responsável por mais de 90% dos recursos da Santa Casa), decidimos informatizar primeiro o Hospital Santa Isabel, que também pertence à Irmandade e gera recursos, o que melhorou os resultados. Depois informatizamos o ambulatório.
Como a aprovação da medida que congela o teto dos gastos públicos, a PEC 55, interferirá na crise da Santa Casa?
Sempre respondo como médico. O Brasil é um paciente crítico. Os remédios para o paciente crítico são duros, mas devem ser tomados. Fazer quimioterapia é um remédio ruim para a pessoa, porque cai o cabelo, a pessoa fica propensa a ter outras infecções, fica fraca, mas é necessário para curar o câncer. É um pouco isso o que penso da PEC 55. O Brasil precisa tomar essas atitudes, ter coragem para enfrentar seus problemas e não varrer para debaixo do tapete. Tenho estudado o sistema de saúde do Brasil e não pode ficar como está. Minha vida profissional se deu na medicina suplementar e não sou especialista na área pública, mas acho que a governança do nosso sistema de saúde é ruim como um todo, e na área pública é ainda pior. Há um grupo liderado pelo Claudio Lottenberg, presidente do Hospital Israelita Albert Einstein, chamado Conexão Saúde, que tem estudado o assunto.
A expectativa dos médicos sobre a sua gestão era de que o senhor seria um canal para discutir as demandas e promover a transparência. Tem sido muito cobrado?
Não acredito em personalismo e não sou o salvador da Santa Casa. Para o meu ego, isso poderia ser ótimo, mas para a instituição pode ser ruim. Quem é o salvador são as pessoas que fazem parte dessa comunidade. Quando foram me pegar em casa, viram que tudo que disse que iria acontecer, aconteceu. Mas as soluções que eu propus há dois anos, em uma situação completamente diferente, eram apenas parte do que é preciso fazer para começar a resolver os problemas, hoje maiores. Com relação à transparência que o corpo clínico reclama, digo que nunca teve tanta informação na Santa Casa como há nesta gestão. Posso garantir que eles sabem exatamente o rumo que a Santa Casa vai tomar. Pelo menos uma vez por mês, eu reúno todos os diretores de departamento e tenho informações que eles repassam aos seus subordinados. A cada três meses, publicamos um jornal dizendo todas as decisões que são tomadas. Mas a mudança de cultura da instituição é muito demorada e não tenho dúvida de que, se eu chegar aqui amanhã e falar que assinamos o contrato do empréstimo, em dez minutos todo mundo vai saber. Se for uma má notícia, as pessoas não vão transmitir. Evidentemente, isso aqui não é uma república popular, onde todo mundo tem seu voto. As discussões são feitas com as pessoas pertinentes. Existe um grau de hierarquia e isso é respeitado.
O que o motivou a assumir uma instituição com tantos problemas?
Encaro isso como um grande desafio. Acho que, se queremos um País melhor, nós, que temos condições, devemos assumir o desafio e não só ficar jogando pedra nos telhados de vidro. Um dia eu assistia a uma entrevista do Guilherme Leal (da Natura) e ele perguntou à plateia quem deixaria ou incentivaria o filho a ser político. De umas 600 pessoas, acho que quatro levantaram a mão. Eu fui uma delas e outra pessoa eu conhecia, que era uma minha prima. Leal disse que esse é um problema do Brasil. Se as pessoas que estavam ali, são do bem e têm consciência não deixarem seus filhos serem políticos, os indivíduos decentes nunca vão liderar a política aqui e vai ficar como está. Eu diria que quando as pessoas foram me buscar – porque eu não queria ser candidato – aceitei realmente por querer ajudar.
Haverá eleições novamente para a Provedoria em abril de 2017. O senhor será candidato?
Ainda não decidi porque tem várias coisas que vêm antes. Entendo a minha responsabilidade, entendo os compromissos. Acho que boa parte do que está acontecendo, como o contrato desse empréstimo com a Caixa Econômica, é porque estou aqui. Agora, preciso ter certeza de que vou conseguir implantar o projeto que precisa ser implantado. Preciso do apoio dos meus pares para que isso aconteça, mas tenho uma mesa administrativa (um conselho formado por 50 mesários que toma decisões) que não é minha. Fiz, por exemplo, uma proposta de mudança de estatuto que não foi para a frente, foi criticada e jogada para depois da eleição. Também preciso decidir se fico casado com a Santa Casa ou continuo casado com a minha esposa.
O senhor emagreceu desde a última vez que nos vimos. Como cuida da saúde em meio a tanta tensão?
Perdi peso por ordens médicas. Estou bem, mas desde que resolvi ser candidato até hoje, já coloquei nove stents. Você faz as coisas e tem consequências boas e ruins. No caso, consequências boas para a Santa Casa, boas para a sociedade, ruins para mim. Mas todos esses stents eu só fiz porque cuido da minha saúde. Não tive sintomas de problemas cardiovasculares. Descobri em exames de rotina, que devo repetir logo. Pode ser que eu tenha que colocar outros stents.
Em agosto, o senhor lançou o fundo patrimonial Areguá para a Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa. Como funciona?
Criamos uma associação independente e um conselho formado por seis pessoas da minha confiança para administrar o fundo, que dará bolsas de ensino. Se o Areguá fosse gerido pela faculdade, não tenho certeza de que seria assim. Hoje, a faculdade é meio a Passárgada: quem é amigo do rei tem tudo. O restante não tem nada. As bolsas poderão até ser parciais para filhos de professores, mas o caráter desse fundo é dar bolsas de graduação e pós a pessoas carentes. Precisamos promover o acesso e encontrar e desenvolver talentos.
O senhor foi criticado porque doou recursos ao Areguá e não à Santa Casa?
Prometi colocar um real para cada real depositado no fundo. Hoje, há cerca de R$ 170 mil em caixa, mas ainda não tive tempo de me dedicar a ele. As pessoas que fazem essa pergunta deveriam perguntar assim: Quanto é que o José Luiz já doou para a Santa Casa, quanto valem as horas que ele dedica, cerca de quatro a seis todos os dias? Quanto vale a minha credibilidade para a Santa Casa? Doação é uma coisa pessoal.
É fato que a Faculdade de Ciências Médicas ocupa um prédio de propriedade da Santa Casa, mas nunca pagou aluguel e há professores da faculdade que são pagos pela Irmandade?
Sim. A Santa Casa não pode prescindir da faculdade e nem o contrário. Mas são instituições diferentes. O Ministério Público foi muito claro ao dizer que a Irmandade está subvencionando uma fundação e a classe alta. Existe, por exemplo, uma situação que não sei como estava contabilizada na faculdade e na Santa Casa: o diretor da faculdade é funcionário da Santa Casa, pago por ela. E muitos professores da faculdade são médicos daqui, dão aula lá e por isso recebem da Santa Casa. Sempre foi assim, mas não pode ser. Quando essa situação foi denunciada, o promotor público da saúde, o dr. Arthur Pinto, disse que não era aceitável e a faculdade começou a reembolsar a Santa Casa. Há alguns dias, queriam mandar embora um professor, sugeri que tirasse licença não remunerada daqui para resolver o problema e não ter conflito. Além disso, precisa existir um plano de cargos e carreira. Em uma reunião com o Ministério Público, também se estipulou que a faculdade pagaria aluguel para ajudar a recuperação.
Quais serão os próximos passos para mudar a relação com a faculdade?
Como vamos reestruturar a Irmandade, e a faculdade é baseada na estrutura desta, eles vão ter que mudar. Agora, podem mudar junto conosco, discutindo o assunto, ou à revelia, e daí atrapalha, porque eles podem pôr os alunos contra nós. Veremos o que irá acontecer.
Qual será o seu legado na Santa Casa?
A Santa Casa é uma organização caótica. Se eu conseguir organizar a operação financeira, serão as regras de controle da organização, que vão ser mais importantes. Hoje, não há controle nenhum, mas é necessário ter, por exemplo, um controle da pessoa que está no comando. E é difícil isso, porque no Brasil as pessoas falam muito de governança, mas não sabem o que significa. Ainda é o País do jeitinho – você recebe ligações de deputado, de vereador e de amigo porque a funcionária está doente, para você furar a fila. Aqui ou no Hospital Infantil Sabará é a mesma coisa. A governança precisa existir e ser mais valorizada.
Deixe um comentário