À frente do histórico terreiro do Gantois, considerado patrimônio nacional, a ialorixá Mãe Carmen diz que “o candomblé é como uma grande família, um grande útero”. O uso da metáfora pode ser atribuído ao domínio feminino na liderança das religiões de matriz africana e pela relação mais próxima que estas desenvolvem com a natureza, seus elementos e ciclos. Contudo, no caso de Mãe Carmen, a comparação ganha muito mais força. Afinal, ela literalmente nasceu no Gantois, em 29 de dezembro de 1928, sem parteiras ou médicos. O enxoval nem tinha ainda a obrigatória touca de bebê, pois, pela previsão, ela só viria ao mundo em janeiro. Seu nascimento antecipado foi anunciado por uma filha de santo, incorporada por Omolu, o “dono da terra” e orixá associado à cura.
A partir de então, Carmen nunca se afastou das obrigações espirituais nem do terreiro. Foi iniciada para Oxaguian (Oxalá jovem) aos 7 anos de idade e na infância costumava “brincar de candomblé”, fazendo vestimentas de plantas. E mal percebeu as brincadeiras virarem tarefas de adulto. Em maio, Mãe Carmen completa uma década como líder do Ilê Ìyá Omi Àse Iyámasé, o Gantois, ao lado de duas filhas biológicas, três netos (todos iniciados), uma bisneta e muitas filhas de santo. Acrescentando os demais frequentadores do terreiro, iniciados ou não…
Sim, uma família grande, cheia de artistas e pensadores que, inclusive, ajudaram a projetar a imagem do templo e do seu símbolo maior, a Mãe Menininha (1894-1986), cantada por Dorival Caymmi como “a Oxum mais bonita”.
Do mesmo trono de Menininha, entalhado com o símbolo da casa – uma sobreposição de ferramentas e elementos de vários orixás –, Mãe Carmen afirma: “A hierarquia é um fato”. Repete, arruma as guias no pescoço, pousa a mão no braço da cadeira e está pronta para as fotos. Mas a pose se desfaz em um riso de timidez. Ela não gosta de ser fotografada, de dar entrevistas (para televisão, então!), de estar nos holofotes. Quer sair bem na foto, sim: arrumou o torço, pediu os colares e braceletes. Mas, quando se trata do posto que ocupa, garante: “Não sou vaidosa”.
Pela sua própria trajetória e personalidade, não há espaço para vaidades dessa natureza. Há sim, a necessidade de muita atenção e firmeza. “É uma responsabilidade muito grande, é preciso estar não com os seis, mas os dez sentidos ligados. Eu sou exigente, às vezes chego a desenhar as coisas como devem ser feitas, seguindo a tradição, o legado”, estabelece.
Com Menininha, a caçula aprendeu a tratar igualmente todos os frequentadores da casa, poderosos ou humildes. “Não sei se é doutor ou PhD. Todos são filhos”, decreta, com a experiência vivenciada nos dois lados, de filha e agora de mãe, na vida e na religião – cujas fronteiras, em sua trajetória, estão mais que embaraçadas. Dispersa, enfim, o ar tímido e ri ao revelar qual lugar prefere: “Ah, ser filha é excelente, uma maravilha, a responsabilidade é outra”. Ao mesmo tempo, diz que nunca foi tão amada e acarinhada e, para o fiel da balança, desmerece os fingimentos. Além das manifestações de afeto e respeito, ela foi agraciada pela UNESCO, em 2010, com a Medalha dos Cinco Continentes ou da Diversidade Cultural.
Carinhos, faixas e títulos servem de conforto para quem teve de se conciliar com as incertezas internas, até enfrentar o desafio de assumir o posto que fora da mãe, uma decisão que demorou quatro anos para ser efetivada, em um período repleto de especulações e cobranças. No Ilê Ìyá Omi Àse Iyámasé, localizado no Alto do Gantois, bairro da Federação, desde 1849, a sucessão se dá por laços sanguíneos e a hierarquia segue a linhagem matriarcal: só às mulheres é permitida a direção do templo.
Nesse posto, Mãe Menininha permaneceu por mais de 60 anos e brilhou como figura carismática e articulada, aglutinando, com a mesma força, moradores do bairro e personalidades. Tornou-se a mãe de santo mais popular do País, num período em que o candomblé ainda era alvo de perseguição policial e institucional. Sua substituição, portanto, sempre foi alvo de interesse. “Se já foi difícil imaginar viver sem a mamãe, imagine, então, assumir o seu lugar. Eu nunca tinha pensado nisso. Sempre fui dos bastidores”, conta Mãe Carmen.
Essa postura mais reservada acompanhou sua vida profissional como tesoureira no Tribunal de Contas do Estado, pelo qual é aposentada. “Meus colegas adoram sair, fazer os trabalhos externos. Eu não.” Carmen Oliveira da Silva atuou 27 anos como contadora e, com isso, diz, mantinha a ilusão de “uma vida normal”, que seu destino não estava tão marcado assim. Mas, no terreiro, mal se lembra de quando a mãe lhe conferiu o cargo de ialaxé, posto elevado, responsável pelo axé (força, energia, preceito) da casa e pelas tarefas ligadas aos rituais. Foi uma transição natural para a menina que “brincava de candomblé” – assim como deveria ser sua confirmação ao posto de ialorixá, com a morte de sua irmã mais velha, Mãe Cleusa de Nanã, em 1998, primeira substituta de Mãe Menininha. Mas não foi.
Perante a recusa de Mãe Carmen em assumir o papel de herdeira legítima, o terreiro do Gantois entrou em crise e abrigou conflitos. Os boatos circulavam: a casa seria fechada, viraria museu; o período de luto seria de não se sabe quantos anos; a neta de Mãe Cleusa, que então mal chegara à adolescência, foi apontada como líder pelo jogo de búzios… “As pressões e os sinais para que eu assumisse o posto vinham de todos os lados”, recorda-se Mãe Carmen. Ao mesmo tempo que os orixás mandavam mensagens, cuja clareza ela só perceberia mais tarde, líderes de outras religiões e terreiros a visitavam para aconselhamentos e insistências. Quando, enfim, terminou o período de luto, o terreiro deveria ser reaberto. Era 30 de maio de 2002, uma concorrida noite de festa, na qual desavenças e expectativas se tornavam infinitamente menores perante a importância simbólica do Gantois. Quando ela mesma percebeu, Mãe Carmen de Oxalá estava sentada no trono que fora de sua genitora e mentora espiritual.
Nessa década à frente do terreiro do Gantois, Mãe Carmen tem promovido ou apoiado cursos para a comunidade do local, com aulas de inglês, teatro, leitura, bordado. Essas “coisas novas” convivem com o tradicional aprendizado de percussão, cânticos e danças. O terreiro também realiza feiras e bazares, além de eventos socioeducativos e distribuição de cestas básicas. A dedicação ao lado patrimonial também é uma forma de manter viva a luminosidade do Gantois, tombado em 2002 pelo IPHAN e considerado Área de Proteção Cultural e Paisagística pela Prefeitura Municipal do Salvador. Em 2010, a ialorixá lançou o livro Memorial Mãe Menininha do Gantois – Seleta do Acervo, com imagens e verbetes dos objetos em exposição no espaço em homenagem à Menininha, criado em 1992. “Não há futuro sem base no passado”, traça ela, aos 83 anos. Esse parece ser o lema da ialorixá que se mostra rígida com os preceitos, devotada à família e cada vez mais atenta à vontade dos orixás. Cabe a nós o desenvolvimento de meios e acertos dos caminhos para que os desígnios se cumpram.
Fotógrafo amigo do terreiro
Mãe Carmen foi fotografada para a Brasileiros por Claudiomar Gonçalvez, fotógrafo e designer conhecido do Gantois. Ele é o autor das imagens que ilustram o livro Memorial Mãe Menininha – Seleta do Acervo, que mostra a casa onde viveu Mãe Menininha até 1986, ano em que morreu, e 170 objetos pessoais e religiosos. O texto e a coordenação da obra são de ninguém menos que Mãe Carmen.
Gaúcho, Gonçalvez começou sua carreira de fotógrafo em São Paulo, em 1989, ao publicar a revista de bordo Trans Brasil, da ex-companhia aérea TransBrasil, recebendo prêmios na área de texto, projeto gráfico e fotografia. Em 1992, ele chegou a Salvador para desenvolver um projeto editorial na área de turismo da cidade e acabou ficando por lá, onde realizou diversos projetos, como o livro Uma História da Cidade da Bahia, de Antonio Risério, que ganhou prêmio por excelência gráfica em 2000, da Associação Brasileira da Indústria Gráfica. Depois, Gonçalvez recebeu outro prêmio, na mesma categoria, com o livro Palácio Pamphilj. Mais tarde, organizou e realizou, junto com a EMTURSA, órgão de turismo da prefeitura da cidade, a exposição 120 Anos do Carnaval de Rua de Salvador, reunindo cem painéis com uma seleção de antigas fotografias.
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