Santo Inocêncio, um mártir desconhecido dos brasileiros

Vestido florido, lenço na cabeça, rugas no rosto e simplicidade no jeito de falar. Aos 71 anos, a bóia-fria aposentada Terezinha Maria é o retrato de uma brasileira que sobreviveu graças à enxada. Nas mãos, ela carrega os calos dos anos na lavoura. No coração, carrega a fé em um santo que está longe de ter a popularidade de Santo Antônio. Ela é devota de Santo Inocêncio, seu protetor e responsável pela graça da aposentadoria que conquistou mesmo sem ter carteira de trabalho e de identidade. “Fiquei
viúva, velha e sem forças. Todo mundo falava que eu não podia me aposentar porque não tinha documento. Então ajoelhei aos pés do menino Inocêncio e o dinheiro (da aposentadoria) saiu. Agora, todo mês dou 1 realzinho pra ele”, conta, toda prosa.

O mártir querido pela cabocla Terezinha, que faz milagres lá pelas bandas de uma região que os paranaenses chamam de Norte Pioneiro, tem uma saga curiosa. Começa há mais de 1.800 anos, no tempo em que os cristãos eram lançados aos leões em Roma, e culmina com seus restos mortais chegando a um canto do Brasil onde parece que o tempo parou, em 9 de novembro de 1975. A história de um santo que foi “importado” pelos frades capuchinhos para aumentar a fé do povo.

Qualquer pessoa que cruza a ponte sobre o Rio das Cinzas e troca o asfalto da PR-272 pelos paralelepípedos das ruas de Tomazina, cidade de 8,8 mil habitantes a 306 quilômetros de Curitiba, é informada que na matriz de Nossa Senhora Aparecida estariam guardadas as relíquias – ossos, crânio, uma longa cabeleira, sobrancelhas -, acomodadas em um corpo de cera, do santo que viveu nos primeiros séculos da era cristã. Há também um pequeno jarro, que guardaria as pedras nas quais respingou o sangue de Inocêncio no momento de sua morte. Aberturas nos braços, pernas e abdômen de cera permitem visualizar os ossos do santo. O cabelo teria resistido à ação dos séculos – pelo menos é no que acreditam os fiéis e o que defendem os padres.
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Achar alguém com a história de um milagre alcançado pela graça do santo não é difícil.

A decapitação
De acordo com o padre Antônio Marcos Depizolli, pároco de Tomazina, Santo Inocêncio era um adolescente de 15 anos quando foi “convidado” pelos oficiais romanos a negar sua fé. Era isso ou a morte. O rapazote preferiu a decapitação. Nada mais se sabe sobre sua história, que não está escrita em nenhum documento oficial. O único dado concreto que sustentaria a autenticidade das relíquias seria o fato de terem sido retiradas das Catacumbas de São Calixto, em Roma, lugar onde eram sepultados mártires cristãos dos primeiros séculos da Igreja.

Mas os devotos pouco se importam com isso. Joelhos e mais joelhos se dobram diariamente diante da urna de Inocêncio. “O cristianismo era uma religião ilícita, não aceita pelos romanos. O culto devia ser prestado ao imperador e não a Cristo”, explica o padre Vital Corbelini, vigário-geral de Caxias do Sul (RS) e pós-doutor em história da Igreja antiga. “Não há dados específicos, mas fala-se de algo em torno de mil mártires nos séculos I, II e III. Santa Cecília e São Sebastião, que hoje têm muitos devotos, são daquele tempo.” Segundo Corbelini, os mártires daquela época foram os primeiros a ser cultuados, por isso não precisaram passar pelo processo de canonização para serem reconhecidos como santos.

O padre fala com entusiasmo do tempo em que o santo “milagreiro” que hoje “mora” em Tomazina morreu. “Muitos mártires foram atirados aos leões, crucificados ou decapitados. A comunidade rezava para eles e recolhia seus restos mortais”, explica Corbelini.

No caso de Santo Inocêncio, o corpo e a cabeça decapitada teriam sido depositados nas Catacumbas de São Calixto, onde ficaram até 1833, quando as catacumbas foram abertas por ordem do papa Leão XII. Os restos mortais hoje cultuados como sendo os de Inocêncio foram retirados de uma tumba com a inscrição “Mártir”. Suas relíquias, junto com as de São Benedito e São Tigrino, foram parar na cidade italiana de Lendinara. Lá foram expostas na Igreja de Santa Águeda, onde ficaram até 1975, quando o endereço das relíquias do santo passou a ser o Paraná.

Na igreja de Tomazina, são conservadas algumas cartas dos padres italianos falando sobre as relíquias, nenhuma com timbre oficial. Um documento com o brasão do Vaticano e escrito em português, por exemplo, cumprimenta “pela vinda das veneráveis relíquias” e é assinado por um assessor da cúria romana. O documento mais importante, impresso e manuscrito em latim e italiano, é datado de 1838 e traz o brasão de Antonius Maria Calcagno, bispo de Ádria na época.

“Damos fé e atestamos a todos e a cada um que inspecionarem esta nossa presente carta, para a glória do Deus onipotente e veneração dos seus santos, que nós hoje reconhecemos que as relíquias sagradas retiradas (das catacumbas) são, sem dúvida, dos restos de São Benedito Mártir e Santo Inocêncio Mártir”, lê-se no documento, traduzido por João Bortolanza, professor de latim da Universidade Estadual de Londrina.

Um clandestino
O responsável pela vinda das relíquias para o Brasil foi o frei Carlos Maria. Ele havia visitado Lendinara quando era seminarista, se encantou com as relíquias, e não sossegou enquanto não conseguiu trazê-las para a paróquia onde trabalhava, a Nossa Senhora Aparecida, de Tomazina. O fato de as relíquias de Santo Inocêncio estarem na época confiadas aos irmãos da ordem de Carlos Maria, os capuchinhos, ajudou.

O incumbido de iniciar as conversas com os italianos foi o frei Mário Massarente, hoje com 68 anos, que era auxiliar de Carlos Maria em 1975. Italiano de Veneza, Massarente aproveitou suas férias sacerdotais e foi até Lendinara. Trabalhando atualmente em Pranchita, pequena cidade do Paraná próxima à fronteira com a Argentina, ele se lembra bem daquilo que classificou como uma “peripécia”. “Conversei com o provincial de Veneza, frei Liberal Martignago, sobre a possibilidade de trazermos as relíquias para o Brasil”, diz Massarente. “Ele disse que eu deveria consultar o povo. Falei com a comunidade e consegui que concordassem. Só faltava providenciar o transporte”, recorda o religioso.

Frei Carlos Maria, falecido em 2002, era do tipo empolgado, agitado. Foi ele que instalou em 1972 no alto da igreja o relógio eletrônico que faz o sino badalar até hoje. Ele foi pessoalmente à Itália buscar as relíquias, depois de seu colega Massarente fazer o “serviço diplomático”. Para facilitar a “troca de nacionalidade” do mártir, evitando a demorada burocracia da confecção de papéis e mais papéis para levar o que era considerado um defunto de um país para outro, o padre brasileiro omitiu o conteúdo do caixote que transportava. O medo de que alguém descobrisse que estaria transportando restos cadavéricos acompanhou o religioso ao longo do trajeto. O jeito foi rezar. “O frei veio fazendo uma novena para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro”, conta o seminarista Alex de Oliveira Nogueira, 20 anos, um tomazinense entendido na história do mártir.

Uma terra de Inocêncios
A casinha é simples, de madeira. O fogão é a lenha. O varal é a cerca de arame farpado. A água vem da mina. O elenco de bichos de estimação é de oito gatos e dois cachorros. A energia elétrica e a antena parabólica chegaram há pouco tempo, permitindo aos guris assistir ao velho humorístico mexicano Chaves, transmitido pelo SBT, e às mulheres o encantamento com as novelas. A família que ali reside se diz feliz. A matriarca é Nadir de Oliveira Farias, que não sabe quantos anos tem, mas acha que são 65. Mulher da roça, ela, a exemplo do marido, que morreu há alguns anos, carrega consigo a devoção a Santo Inocêncio desde que as relíquias do mártir chegaram a Tomazina.

Foi por conta da devoção que ela deu o nome de Terezinha Inocência à única de suas três filhas que sobreviveu ao parto. Terezinha se casou com José Aparecido Ambrósio, outro fã do santo. A prole, todos homens, carrega Inocêncio no nome: Bruno Inocêncio, 11 anos; Luiz Carlos Inocêncio, 10; Lucas Inocêncio, 8; e Mateus Inocêncio, 6.

Terezinha, 30 anos, diz que já alcançou diversas graças, porém não pode revelar nenhuma. “É particular demais”, justifica. Já dona Nadir, devota há tantos anos, só precisou recorrer ao mártir recentemente. “Eu não tava enxergando nada. Não conseguia mais fazer o serviço. Daí, fui lá na igreja, acendi uma vela pro santo e a vista limpou. Agora consigo fazer de tudo”, diz, como se estivesse relatando a coisa mais normal do mundo. Na despedida da reportagem, ela diz: “Olha, moço, desculpe eu não ter limpado a casa, é que eu não sabia que vocês vinham…”. Os Inocêncios de Tomazina não estão apenas na casa de dona Nadir. Da última vez que os padres folhearam os livros de batismo da paróquia da cidade, em 2004, contaram 800 homens batizados com o nome de Inocêncio desde 1975. Em uma conta simples, a média é de 27,5 Inocêncios por ano. Número alto, se considerarmos que as Estatísticas de Registro Civil do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2006, revelam que nascem em torno de 100 crianças por ano no município.

Milagres e mais milagres
Com a notícia da reportagem de Brasileiros na cidade, sobraram devotos com lágrimas nos olhos e histórias para contar. Em poucas horas entrevistamos mais de 20 pessoas, a maioria mulheres. “Elas são mais religiosas, têm mais fé. Minha esposa já foi atendida”, diz o agricultor José Vidal, 69 anos. “Os santos são caminhos que nos aproximam de Deus. Fico feliz por saber que temos um em Tomazina”, ressalta.

As mulheres atendidas pelo santo relatam suas histórias com a vontade de que mais gente conheça o poder daquele que elas consideram o responsável pela cura que alcançaram. “Infelizmente é um santo conhecido só aqui, no Norte Pioneiro do Paraná”, lamenta a professora Eliane Baltazar Martins Correia. Marli Carster conta que sua filha escapou sem seqüelas de um grave acidente de motocicleta graças a Santo Inocêncio. Ela também atribui a um milagre o fato de um tumor que estava em uma de suas mamas ter sumido sem mais nem menos. Neuza Aparecida dos Santos Balbino, no entanto, é a que mais se emociona. No ano passado, depois de uma cirurgia para retirada de um ovário, ela entrou em depressão profunda. Afastou-se de Deus até saber que teria de passar por outras cirurgias. Foi quando resolveu implorar para Santo Inocêncio que a curasse, e seus problemas desapareceram. “Eu nasci de novo e nenhum médico sabe dizer o que aconteceu.”

Ao lado da urna onde está o corpo de cera com as relíquias de Santo Inocêncio, uma caixa de vidro guarda centenas de fotos de pessoas que dizem ter recebido algum milagre graças à intercessão do jovem mártir. “Tinha muitas outras, mas em 1996 o Vaticano requisitou que fossem enviadas as fotografias para lá como prova da vida espiritual em torno do santo”, conta o seminarista Alex de Oliveira Nogueira.

Para dom Walmor Oliveira de Azevedo, presidente da Comissão Episcopal para a Doutrina da Fé da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), as relíquias dos santos têm um grande valor para a Igreja Católica “porque nos transportam a um momento histórico concreto como um resto, uma presença, uma passagem histórica”, ele diz. “Diante das relíquias podemos evocar mais facilmente a condição humana de um santo: foi com seus corpos que os santos agiram, pensaram, rezaram, trabalharam e sofreram. São sinais muito sutis e quase irrisórios, mas é deles que Deus, às vezes, quer se servir para manifestar sua presença e fazer brilhar seu poder e sua glória”, finaliza o bispo.

A COBRA DOS PESCADORES 

João da Silva tem 58 anos. É nascido e criado em Tomazina. Sujeito simples, de bom papo, ganha a vida carpindo quintais. Mais um dos muitos devotos de Santo Inocêncio, ele conta que reza bastante e faz de tudo para não cometer pecados. O grande esforço para não cair em tentações nada tem a ver com garantir a vida eterna. “É por causa da cobra”, revela. Cobra? É isso mesmo…
A cobra à qual se refere seu João está presente no imaginário do povo tomazinense desde o fim do século XIX, quando surgiu a lenda das duas moças grávidas que decidiram esconder o nascimento das crianças. Ambas tiveram a idéia de jogar os bebês no Rio das Cinzas.

Uma delas fez isso num local de corredeira. A outra, em um lugar abaixo, próximo à ponte de entrada da cidade, conhecido como “prainha”. Acontece que na tal “prainha” existe um redemoinho. Dessa forma, a criança ali jogada subiu o rio ao invés de descer. Os dois bebês se encontraram onde o Rio das Cinzas faz uma curva, atrás da igreja.
Com o encontro, as crianças se transformaram em uma enorme serpente, que até hoje mantém a cabeça sob a igreja. Ainda conforme a lenda, algumas rachaduras nas paredes do templo surgiram devido aos movimentos da “cobrona” tentando acordar. E ela acordará de vez se os moradores de Tomazina pecarem muito. Nesse dia acontecerá a destruição da cidade. “É coisa séria. Com isso não podemos brincar”, profetiza João da Silva.
SOBRE A REGIÃOSALTO CAVALCANTI –

queda d’água de 10 metros de altura no Rio das Cinzas. Distante 10 km por estradas vicinais do centro da cidade. Local pouco visitado.CAVERNAS –várias delas são formadas nos paredões de pedra e estão espalhadas por toda zona rural. É necessário contratar um guia para ter acesso aos locais.

SANTUÁRIO DO BOM JESUS DA CANA VERDE – localizado na cidade de Siqueira Campos, a 18 km de Tomazina.

COMO CHEGAR:
Partindo de São Paulo
(450 km de distância): Rodovia Castello Branco (SP-280) até entrocamento com a BR-153, na região de Ourinhos.
Pegar a BR-153 até o trevo de Japira (PR) e depois a PR-272 até Tomazina.
Partindo de Curitiba (306 km de distância): BR-376 até Ponta Grossa (PR). De lá, pegar a PR-151 até Jaguariaíva (PR). No trevo, pegar a PR-092 até Wenceslau Braz (PR) e depois a PR-422 até Tomazina.


Comentários

2 respostas para “Santo Inocêncio, um mártir desconhecido dos brasileiros”

  1. Avatar de maria de fatima braz macedo
    maria de fatima braz macedo

    Nasci aqui na região, mais só hoje que conheci a história de santo Inocencio.amei conhecer,quero saber mais!

  2. Conheço a igreja e maravilhosa, e conheço desde criança a cidade, a igreja e o Santo Inocêncio é realmente incrível a paz que se sente quando dobramos os joelhos próximos de seus restos

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