Um eventual bacalhau no 53 era o que aproximava o meu mundo ao do Fernandes. O velho amigo era muito ligado à saúde e ao natural. Tal era sua devoção que somente esse abençoado peixe ao forno, banhado em azeite, junto às batatas e acomodado entre os legumes e as verduras, nos aproximava. Por graça de Deus, o tinto a ele era permitido e até recomendado. Assim pudemos manter nossa amizade, apesar dos caminhos distintos que tomamos.

Naquele sábado, ele chegou sério e foi logo ao assunto: O Barbosa, morreu. Pimba, sem mais! Um absurdo!

Perguntei quem era o Barbosa. Para agradá-lo, perguntei se era gordo, fumante e sedentário. Ele disse que não: Era um esportista, magro, não fumava, tomava vinho tinto, comia um dente de alho por dia, não tocava em açúcar, fritura nem pensar, comia tomates e muito brócolis com azeite virgem. Casquetada, como é possível?

Morrer é grave, claro. Mas se para mim aquilo apenas contrariava expectativas, para ele feria os fundamentos da sua existência. Ficou pensativo ao longo do bacalhau. Percebi que seu olhar não buscava memórias do Barbosa. Indagava: Como é possível que um animal saudável possa morrer? Aquilo me contaminou e assim perplexos falamos do destino. Fomos então à sobremesa, ao café e a um digestivo. Na verdade só eu, porque ele ficou numa entristecida banana assada.

Só fomos nos encontrar muitos meses depois. Ele havia radicalizado ainda mais as coisas, agora era ovolactovegetariano. Com a exceção do nosso bacalhau, disse ele. E mais, disse que agora vivia em um universo tântrico em que a relação sexual era uma alegoria para a relação com Deus. Um universo de contenção, de retenção de energia. Não entramos em detalhes, comemos nosso bacalhau.

Desde aquele encontro, eu o vi, vivo mesmo, só mais uma vez quando voltamos ao 53. Conversamos e bebemos até as três da tarde e nos despedimos. Não deu uma hora e me liga uma mulher. Disse que meu número havia sido a última ligação do celular dele. Disse que ele estava morto na cama dela e eu precisava dar um jeito. Aquilo foi um coice em meu peito, logo esfriado pelo susto: Dar um jeito? Como dar um jeito?

Corri para a casa da tal mulher, eu não sabia que o Fernandes tinha esses rolos. Ela explicou o ocorrido e o seu plano para preservar a honra do amigo. A solução era dizer que ele morrera em meu carro a caminho do hospital.

Vestimos o Fernandes e ajeitamos seu corpo no banco de passageiro, com cinto. Esperando escurecer, só nos restava conversar.

Descobri que ela era a viúva do tal Barbosa, cuja morte nos impressionara há dois anos. Ah, o Fernandes! Mais ainda, descobri que a tal atitude tântrica evoluíra, com ela, para um tal de Sasta que eu nunca ouvira falar. Encabuladíssima, ela explicou o que era: Sexo animal ao som de tambores africanos. Ah, o Fernandes! Foi em uma dessas que ele morreu. Olhei bem a viúva, inteira. Morreu bem, o Fernandes.

Escureceu, ela me deu o número do seu celular e pediu que eu avisasse do andamento das coisas. Parti para a arriscada missão. Eu não podia ser parado, de jeito nenhum. Nem em assalto.

Foi uma noite pesadíssima: hospital, perguntas, família e choro. Só fui para casa ao entardecer do dia seguinte. Aí que me dei conta que, no velório, eu havia pensado só na viúva, não a dele. Antes de entrar na minha garagem, maduro e calejado, resolvi jogar pela janela o papelote com o telefone dela. Aquela fera já abatera dois.

Na manhã seguinte, o porteiro me viu andando junto ao meio fio, cabeça baixa. Perguntou se eu havia perdido alguma coisa. Eu disse que não e segui lentamente.

Não é possível que um papelote suma da noite para o dia. Que evapore. Que desapareça. Como?

*Marcos Rodrigues é engenheiro civil, professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura.


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