Saudades da Panair

No Natal de 1964 eu ganhei uma guitarra Sonic Giannini do meu pai e um amplificador Ipame do meu avô. As férias seriam uma viagem a bordo do fusca branco até Porto Alegre. Eu, meu pai e minha mãe. Coisa de classe média. Não éramos ricos e certamente não éramos pobres. Na primeira parada, Curitiba, eu vi uma foto em uma vitrine. Era o Ringo Starr e um velho. Estava escrito, “hoje, no Cine Vitória, Os Reis do ié, ié, ié”. Fomos. À força. Meu pai dormiu de roncar. Minha mãe reclamou o tempo todo das meninas gritando na tela. Eu mal me lembro do resto da viagem. Só lembro que até o filme estrear em São Paulo eu virei o ídolo da turma do aeroporto. Remedava todas as cenas. John disse isso. Paul fez aquilo. George toca assim. O velho era o John McCartney, “avô” do baixista. A maior das maravilhas. O único senão foi quando meu pai chegou em casa mais cedo do trabalho. Trancou-se no quarto com a minha mãe. Os dois saíram e me disseram com um olhar incrédulo. “A Panair acabou.” Dia 10 de fevereiro de 1965.

“Panair do Brasil”, o documentário de Mário Altberg inspirado no livro “Pouso Forçado – A história por trás da destruição da Panair do Brasil pelo regime militar” (Editora Record), de Daniel Leb Sasaki, traz imagens dessa tragédia que se abateu sobre a até então gloriosa aeronáutica brasileira. A empresa nasceu de uma subsidiária da hoje também extinta Pan American, que havia adquirido as linhas da Nyrba – empresa da primeira metade do século XX que fazia a rota Nova York – Rio – Buenos Aires nos anos 1930. Nas mãos dos brasileiros a Panair transformou-se em uma potência. Além das rotas internacionais, a Panair tinha hangares e aeroportos – em Recife, Belém e Salvador, por exemplo, era proprietária dos terrenos também -,escritórios nas principais capitais, que funcionavam como embaixadas, e duas empresas para lá de lucrativas. A Celma, a primeira, especializada em retificar e fazer manutenção de motores, a jato inclusive, que era utilizada pela própria Força Aérea Brasileira (FAB), e outra, de telecomunicações, a única da América Latina a dar cobertura às aeronaves internacionais que se aproximavam do continente. Meu pai era diretor desta última em São Paulo. Dada a sua importância capital, a firma teve de ter continuidade sob o nome de TASA – Telecomunicações Aeronáuticas Sociedade Anônima.
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Quando a Panair foi cassada já operava com modernos Douglas DC-10, imediatamente abocanhados pela Varig de Ruben Berta, e havia acabado de encomendar aviões supersônicos, os futuros Concorde, que só começariam a operar em 1976 – e seriam desativados em 2003. A empresa foi literalmente abatida, segundo consta, para atingir a família Simonsen, proprietária da rede Excelsior, igualmente desapropriada pela “Redentora”. Os fatos estão no filme, o descalabro é gritante, irreversível e provocou muito sofrimento – até hoje, diga-se de passagem, sem trocadilhos. Violência com V maiúsculo. De Varig.

Meus pais choravam sempre que ouviam a música “Conversando no Bar”, de Milton Nascimento sobre letra de Fernando Brant magistralmente interpretada por Elis Regina (aparece no filme). Estava no disco dela de 1975. O verdadeiro título da música era “Saudade dos Tempos da Panair” que Brant, espertamente, modificou para não atiçar os milicos. Eu, particularmente, fiquei com saudade do fusca, dos tempos em que minha mãe e meu avô estavam vivos, em que os Beatles estavam juntos e em que havia classe média. A guitarra, o amplificador e o pai eu ainda tenho.

Assista o trailer do documentário:



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