Música para humanizar e curar

Os integrantes do Saracura em ação
Os integrantes do grupo Saracura em ação/ Divulgação

Para acompanhar de perto a atuação do grupo Saracura – um dos mais importantes na área de humanização hospitalar com música no País – em uma tarde no Hospital Sabará, este repórter precisou se juntar aos dois instrumentistas presentes como se fosse também músico, membro do grupo. Não seria possível entrar nos quartos do hospital infantil paulistano, onde as situações são muitas vezes delicadas e dramáticas, e ficar no canto observando, nem muito menos anotando coisas em um bloquinho de jornalista. Afinal, como explicou de saída um dos sócios do Saracura, o músico Gabriel Corrêa, 30, algumas crianças e pais estão tão fragilizados, naquelas situações, que a simples presença de um estranho pode se tornar um enorme problema.

Com o uniforme do grupo e um ovinho (pequeno instrumento de percussão) na mão, portanto, pude acompanhar o violonista Fabio Lyra e o bandolinista Ivan Rafael pelos leitos do Sabará. A orientação era para apenas tocar o ovinho o mais baixo o possível – sem perder o andamento da música – e, nas cantigas, cantar discretamente as que eu soubesse. Se um certo nervosismo já me pegava, a coisa ficou mais intensa quando percebi que o primeiro setor em que iríamos entrar era a UTI (Unidade de Terapia Intensiva). E batemos na porta do primeiro quarto. O homem que apareceu agradeceu, mas disse que não queria música naquele momento. Seguimos para o próximo, e vimos que o paciente estava sendo atendido pela enfermeira. “Nunca entramos quando há ou acabou de haver algum procedimento, para a criança não associar a música com algo ruim, com dor”, me explicaram.

Na terceira tentativa, os adultos que estavam no quarto (aparentemente os jovens pais de um bebê) aceitaram a música do trio. Mãos lavadas, avental descartável e máscara cirúrgica vestidos, entramos. E lá estava o casal, um tanto acuado no sofá, e um bebê na cama hospitalar, com uma série de tubos ligados ao corpo e com os olhinhos fechados. Meu coração disparou, admito, e por sorte a máscara escondeu a cara de espanto. Ivan e Fábio começaram a tocar um chorinho, com execução impecável, e me esforcei apenas para acompanhar o ritmo, com a máxima delicadeza, e não atrapalhar a qualidade do som. Esta primeira visita foi a mais difícil, mas a coisa seguiu intensa nos leitos seguintes. Em um deles, uma menina com dois ou três anos, em situação aparentemente bastante grave, interagiu chacoalhando a cabeça, e soltando alguns grunhidos quando tocamos Dona Aranha. E a mãe comentou: “Ela gosta tanto quando vocês vêm”. Fiquei sabendo, depois, que ela estava na UTI há cerca de quatro meses.

Já no andar de internação comum, entramos no quarto de um bebê de apenas um ano que ficou conhecido pela campanha de arrecadação “Amigos do Pedrinho” – que já contou com a colaboração de jogadores de futebol e outros famosos. Portador de uma síndrome rara, Pedrinho precisa fazer uma cirurgia que custa mais de R$ 2 milhões e só pode ser realizada nos EUA. Para ele, tocamos O Pato, Atirei o Pau no Gato e Alecrim Dourado, observados por toda a família que enchia o quarto. Neste mesmo andar do Sabará, enquanto fazíamos um outro chorinho pelos corredores a caminho do elevador (era hora do intervalo para o café), saíram de dois leitos algumas pessoas atraídas pela música. Um dos pais, com o filho não tão pequeno no colo, disse, emocionado: “É a primeira vez que ele vê música ao vivo”.

Mariana Zacca e Fabio Lyra
Os integrantes do grupo em hospital paulistano/ Divulgação

Profissionalismo

A experiência descrita resumidamente acima, tão impactante para o repórter, não é nada mais do que os 15 músicos do Saracura – na casa dos 20 ou 30 anos – vivem quase diariamente em suas rotinas de trabalho. “Acho que tem uma carga emocional grande, a ponto de você precisar, ao longo do tempo, criar uma casca, e aprender a digerir as coisas que você passa lá dentro”, diz Corrêa. “Tem um caso muito triste, de uma vez que entramos no quarto e a criança tinha acabado de ter morte cerebral. E a mãe falou: ‘Toca uma última música, por favor’. A criança lá, a mãe lá, e a gente tocou. E nisso a mãe começou a chorar, chorar, chorar… Acho que isso foi o mais marcante para mim até hoje”. Não à toa, alguns dos integrantes que passam pelo grupo não duram muito tempo, e preferem sair.

É por essa intensidade emocional que envolve, pelo tamanho da responsabilidade que é atuar em hospitais e também pela busca de um reconhecimento maior aos músicos que o Saracura é firme na luta pela profissionalização do trabalho de humanização hospitalar. Criado há sete anos, o grupo foi pioneiro no Brasil na atuação nesta área, ao menos no campo musical – já existiam grupos importantes como o Doutores da Alegria, mais focados em teatro e circo. “Na música, existia uma coisa de trabalho voluntário, onde as pessoas não precisavam ter preparo”, explica Corrêa, que sem desvalorizar as iniciativas de caridade, procura diferenciá-las dos trabalhos profissionais.

No caso do Saracura, expansão e profissionalização caminharam juntos ao longo dos anos, principalmente após a aprovação do primeiro projeto do grupo na lei Rouanet. Com ele, em 2012 e 2013 o Saracura passou a atuar de modo mais intenso em hospitais públicos e conseguiu atingir, entre pacientes e familiares, cerca de 18 mil pessoas no período. O trabalho no Sabará – com ótima estrutura e onde o grupo começou – é muito diferente, ressalta Corrêa, de Santa Casa, HCor, AACD, GRAAC, Hospital das Clínicas e Hospital São Paulo,  nos quais as situações enfrentadas costumam ser mais pesadas. O segundo projeto aprovado na Rouanet, para os anos de 2014 e 2015, teve até o momento captação de 35% do valor total, com apoios de Itaú e Libbs. Se a totalidade do patrocínio for captada, cerca de 83 mil pessoas poderão ser atendidas. Além disso, com mais recursos a ideia do grupo é intensificar as pesquisas sobre a relação entre música e cura de doenças, tema cada vez mais presente em universidades e hospitais pelo mundo.

Para crescer, segundo Corrêa, o Saracura precisa investir também na formação de quadros qualificados, o que deve ser feito em um processo lento e cuidadoso. Para isso, o grupo já criou um curso de capacitação, que envolve não só a parte musical e de repertório, mas ensinar infectologia, modos de abordar uma criança e assim por diante. Envolve também preparar as pessoas para a parte emocional, e selecionar os músicos dispostos a presenciar momentos difíceis como os descritos nesta reportagem. “A gente se preocupa com isso, e ainda está criando métodos para que o músico se sinta extremamente confortável. Tentamos, por exemplo, não colocar a mesma pessoa para trabalhar dois dias seguidos, porque o cara precisa pensar naquilo, digerir”, explica Corrêa.  

“Mas é um trabalho muito gratificante, no qual o aplauso é outro”, diz o músico – que assim como outros membros do Saracura está acostumado também a tocar em palcos, bares e rodas de samba. “Às vezes é apenas um sorriso, ou nem isso. Às vezes a criança está tão tímida que, se ela não chorou, você já conseguiu o resultado. E ganhar um sorriso, ver uma criança dançar… É um sentimento incrível”, conclui.

Alguns dos integrantes do grupo
Grupo Saracura/ Divulgação

Conheça melhor o trabalho do grupo aqui e veja o projeto de financiamento colaborativo para o mês das crianças aqui


Comentários

Uma resposta para “Música para humanizar e curar”

  1. Avatar de Isaac Rodrigues Jr
    Isaac Rodrigues Jr

    Muito emocionado e cheio de orgulho eu fico, PARABÉNS!! Vocêos são demais!!!!!!

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