Saúde sobre rodas

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As instalações móveis do programa Hora Certa, em Guaianases

Quando o ginecologista do posto de Saúde de Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, pediu um ultrassom transvaginal, Cláudia Regina da Silva se preparou para o pior. Se no ano passado havia esperado cinco meses por uma radiografia, quanto tempo o Sistema Único de Saúde (SUS) demoraria para marcar um exame mais complexo e disponível em pouquíssimas unidades do serviço público? Calculou que esperaria dois anos na fila ou teria de arcar com o custo, entre R$ 70 e R$ 150, em uma clínica particular. Ficou surpresa ao ser chamada, em duas semanas, para comparecer a Guaianases e fazer o exame de graça.

Cláudia cumpriu o trajeto de menos de 10 km em 40 minutos de ônibus e se deparou com unidades móveis montadas no estacionamento de um Centro de Educação Unificada (CEU) da Prefeitura de São Paulo. Esperou por pouco mais de uma hora – o serviço estava atrasado – para voltar para casa com o resultado do exame nas mãos e em condições de marcar o retorno ao posto de saúde.

Empregado para detectar gravidez, miomas e tumores no aparelho reprodutor feminino, o ultrassom poderia chegar tarde demais para a dona de casa de 37 anos, mãe de dois jovens (19 e 17), se tivesse de aguardar os dois anos imaginados por ela. Mas não seria estranho para uma população acostumada a esperar. No dia 20 de maio, o serviço que atendeu Cláudia, instalado menos de dez dias antes, oferecia atendimento a pacientes que se encontravam há meses na fila do diagnóstico público.

Uma delas é Maria Aparecida dos Santos, 55, que finalmente conseguiu um ultrassom depois de um ano de espera. Prevenida, já havia marcado o retorno com o médico do posto de saúde, para dali 60 dias. Copeira em uma empresa da Zona Leste, estava preocupada em perder o dia, mas ficou aliviada quando soube que o serviço de saúde oferecia uma declaração de presença. Estelita Angélica Magalhães, 66, que tem problemas circulatórios e nas articulações, conseguiu um ultrassom das pernas uma semana após entrar com o pedido, mas continua na fila do SUS há quase um ano para outros exames, incluindo um eletrocardiograma.

As histórias de Cláudia, Maria Aparecida, Estelita e milhares de pessoas começam a ser reescritas pela determinação de um gastroenterologista de 45 anos que decidiu fazer o que menos se vê na saúde brasileira: medicina preventiva. Com uma frota de 27 unidades, entre carretas, caminhões baú adaptados, vans e boxes climatizados, Roberto Kikawa dribla as filas de exames do SUS em quatro Estados: São Paulo, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro. Ainda este ano os serviços devem chegar a Minas Gerais e Goiás. Na cidade de São Paulo, onde mantém um convênio com a Prefeitura, é possível marcar exames para dentro de um mês, prazo estipulado como ideal pela Organização Mundial de Saúde (OMS), mas nem sempre cumpridos – inclusive por convênios privados.

Com cinco anos de vida, o Projeto CIES (Centro de Integração de Educação e Saúde) atende hoje em São Paulo cerca de 2.500 pessoas por dia em exames, consultas e pequenas cirurgias. São 30 mil atendimentos por mês. Funciona como uma Parceria Público-Privada (PPP). O paciente não paga. O poder público arca com o custo de um atendimento pela tabela do SUS: R$ 24,20 por exame, mais R$ 16,30 pelo atendimento ou R$ 40,50 por paciente. O valor pode parecer baixo, mas viabiliza o projeto e assegura uma margem líquida de 8% a 10%. Os ganhos são reinvestidos em aquisições e na melhoria dos serviços. O modelo vale também para empresas que atuam em áreas sem assistência médica. É o caso da Metalfrio, que periodicamente recebe a frota do projeto em sua unidade em Três Lagoas (MS). As companhias pagam ao CIES o mesmo valor do SUS.
O CIES faturou R$ 5,1 milhões em 2013 – 64% mais que no ano anterior – e deve obter receita de R$ 23 milhões este ano, prevê Kikawa. Nos últimos seis meses, o projeto atendeu a 248 mil pessoas, realizou 158 mil exames pela tabela SUS só na capital paulista e ajudou a reduzir o contingente à espera de atendimento. O médico à frente do projeto estima em 800 mil o número de pessoas na fila de espera por exames em São Paulo, devido à falta de médicos e de estrutura na periferia da cidade. No ano passado, o CIES lançou em parceria com a Prefeitura de São Paulo o serviço móvel Hora Certa, de exames agendados. As instalações não são das mais confortáveis e os dias de calor ou de chuva requerem algum estoicismo, mas o atendimento é reconhecidamente mais rápido que em qualquer unidade de saúde pública. Além disso, o paciente tende a ser atendido perto de casa. A vantagem do serviço móvel é poder se deslocar para outra região depois de atender a demanda local.
Antes da implantação do serviço, uma pessoa que tivesse de deixar o extremo sul da capital para um exame no Hospital das Clínicas desembolsaria cerca de R$ 20 em transporte e alimentação, estima Kikawa. Sem falar no deslocamento de até quatro horas e a espera pelo atendimento, comprometendo o dia de trabalho. Com uma unidade móvel perto de casa, o paciente poupa, pelo menos, a metade do tempo e mais da metade do dinheiro.

O ganho para o poder público é evidente: além de diminuir as filas, a estrutura do CIES evita gastos na construção e aparelhagem de centros de diagnósticos e na contratação de pessoal – principalmente médicos, artigo escasso nas regiões mais pobres, motivo pelo qual o governo federal criou no ano passado o programa Mais Médicos. Nas contas de Kikawa, levando em consideração o custo normal de atendimento na rede pública, mais os investimentos necessários em instalações e equipamentos, a economia para a Prefeitura ou Estado chega a 80%. O CIES dá conta do processo com cerca de 250 pessoas empregadas, sendo 120 da área administrativa (incluindo segurança e limpeza), 60 do corpo técnico (enfermeiros e auxiliares), todos com carteira de trabalho, além de 82 médicos atuando sob contrato.

A frota está habilitada para realizar exames nas 20 principais causas de morte por razões de saúde no Brasil, justamente as que atingem a população mais pobre, alijada da medicina preventiva. Entre outros, são feitos exames de mamografia, ultrassonografia, audiometria, sala de procedimentos para pequenas cirurgias – típicas de hospital-dia – e clínica oftalmológica. Em 2013, o CIES tornou-se o primeiro hospital-dia móvel do Brasil com chancela da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). É considerado o maior projeto de medicina móvel do mundo. Já no primeiro ano de funcionamento, 2009, foi laureado com o Prêmio Finep de Inovação. Ganhou também, entre outros, os prêmios Empreendedor Social do Ano, da Schwab Foundation for Social Entrepreneurship e do jornal Folha de S.Paulo (2010); Empreendedor Social Ernst &Young Terco (2011) e Dr. Cidadão, da Associação Paulista de Medicina (2012).

A história do CIES começou em 1987, quando, aos 18 anos, estudante do primeiro ano de medicina em Maringá (PR), Kikawa e a família descobriram que o pai, Kunimasa Kikawa, havia sido atacado por um agressivo câncer de laringe. Filho único, criado com empenho, mas dentro de um orçamento modesto, Kikawa e a família não tinham recursos. O pai foi parar em um hospital “de segunda linha”, sem perspectiva de cura. Kunimasa sofria com dores e tratamento precário, quando um casal de missionários japoneses, Mitio e Megume Ono, ambos médicos, o encontraram, assumiram a responsabilidade por sua alta perante a direção do hospital e o levaram para tratar em casa. Em sua primeira lição de medicina humanizada, Mitio disse ao jovem estudante que para começar o tratamento era preciso “tirar a dor da alma”.

Os missionários acabaram com a dor da alma e diminuíram o sofrimento do corpo, mas a cura não seria possível. Sabendo do desfecho próximo, Kunimasa chamou o filho para uma conversa: “Beto, quero que você prometa ser um médico amoroso, que dê um tratamento humano aos doentes, como fizeram comigo”. A essa altura Kikawa tinha dúvidas se seria capaz de concluir a faculdade sem o apoio do pai. Mas prometeu. Formou-se com apoio dos missionários e decidiu criar uma casa de assistência para pacientes terminais. Deparou-se com a dificuldade de obter patrocínio e descobriu que “ninguém investe em quem vai morrer”. A ideia de oferecer uma morte digna evoluiu para a de proporcionar uma vida menos indigna por meio da prevenção.

Mesmo sem realizar o sonho de atender aos pacientes em situação crítica, Roberto Kikawa adotou voluntariamente mais de 30 pacientes terminais. Visita um por um e dá assistência às famílias. Levanta-se diariamente às 4 da manhã, faz meditação, responde os e-mails do dia anterior, toma café com a família e sai de casa às 7, sem hora para voltar. Além de administrar o CIES, é diretor clínico da gastroenterologia do Hospital São Camilo e atende pacientes em uma das quatro unidades do hospital uma vez por semana. Tira dois dias na semana para passar as manhãs com os filhos de 9 e 11 anos. Mantém a rotina de trabalho também aos sábados. Aos domingos, frequenta uma igreja evangélica na região do Bosque da Saúde.

O CIES não se paga só com o dinheiro do SUS. Os boxes são as estruturas mais baratas. Criados para serem transportados em caminhões plataforma – como os das companhias de seguro –, balsas e até aviões cargueiros, são climatizados e se destinam principalmente, à saúde da mulher e do homem, sempre com atendimentos em separado. O investimento em um boxe começa em R$ 70 mil, mas pode alcançar R$ 190 mil. Uma van custa em torno de R$ 150 mil e um caminhão adaptado e começa em R$ 600 mil e, no caso das carretas maiores, pode chegar a R$ 3,5 milhões.

Para fazer frente às necessidades, dois anos antes de colocar a primeira carreta na rua, Kikawa começou a articular uma rede de apoios e patrocínios. Fabricantes de equipamentos fornecem equipamentos a custo zero ou reduzido. A Olympus Optical colocou R$ 2 milhões em equipamentos no projeto. A Philips Healthcare, outros R$ 800 mil. A empresa especializada em baús para veículos de carga e unidades móveis Truckvan contribui com a adaptação dos veículos. A Flexmedical, que é a personalidade jurídica que pode responder como empresa social, destina 10% do que lucra para o CIES, a título de royalties.

As carretas maiores precisam de 150 m2 para operar, enquanto as vans e os boxes podem atuar em 50 m2. Uma van é capaz de realizar 70 atendimentos em um dia. Em geral, as unidades funcionam das 7 horas às 17 horas. Os locais em que funcionam várias unidades móveis são chamados “arenas”. Todas possuem banheiro e água potável. Com demanda elevada, São Paulo possuiu quatro arenas distribuídas por regiões da cidade – zonas Leste, Sul, Norte e Centro-Oeste. O local de atendimento muda a cada dois ou três meses.

A estrutura móvel permite que o projeto contrate profissionais para atuar próximo de suas casas. A ideia é atender os pacientes o mais próximo de casa, embora, devido à instalação recente, não seja esse o caso da arena de Guaianases. Durante a visita da reportagem da Brasileiros à unidade, muitos dos pacientes haviam chegado de longe. Foi o que aconteceu com Nilson Bispo dos Santos, 55, aposentado por problemas de saúde. Com o exame atrasado há mais de uma hora, ele reclamou da demora e e não aceitou o convite dos funcionários para se sentar na área montada para servir de sala de espera. Morador da Brasilândia, a 40 km de Guaianases, precisava de uma ultrassonografia doppler de joelho.

Reclamar não é praxe do público, diz Luciane Cristiano de Almeida, 40, coordenadora de enfermagem da arena Guaianases e responsável pelo corpo técnico de 15 profissionais. Ester de Lima Dorothea, grávida de pouco mais de um mês, por exemplo, estava satisfeita em conseguir um ultrassom de mama em um mês.

Parte da satisfação dos usuários vem da relativa rapidez dos serviços. Outra parte do atendimento humanizado preconizado
por Kikawa e seguido à risca pelos colaboradores. Moradora de Diadema – aliás, cidade natal de Kikawa –, a coordenadora de enfermagem é uma exceção: dirige 40 minutos de segunda a sexta pelo Rodoanel para ir ao trabalho. Isso não a incomoda. “Renasci para a enfermagem aqui. É gratificante atender a essa população carente. Você vê o resultado do trabalho.” Luciane conta que conheceu Kikawa em uma igreja, apresentada por um amigo. O médico a convidou para conhecer o projeto e ela abraçou a causa. Deixou para trás quase duas décadas de especialização em UTI neonatal e pediátrica.

Com apenas três meses de CIES, a endoscopista Patrícia Rocha Dragojivic, 38, é outra que vem de longe – mora nos Jardins e dirige por mais de 1 hora para ir uma vez por semana a Guaianases – e se encantou com o atendimento. Habituada a trabalhar em três hospitais públicos, elogia “a aparelhagem moderna, igual à do Einstein”, e a garra e união da equipe. O “animador de torcida” é o auxiliar administrativo Bruno Martinelli, 23. Ele orienta, brinca e até canta para os pacientes. “É preciso ser humano. São pessoas em situação de debilidade.”

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Estelita Angélica Magalhães, 66, paciente do programa Hora Certa
Um dos problemas do projeto é o alto absenteísmo. Entre 30% e 40% dos pacientes com exame marcado deixam de comparecer. “A população não está acostumada a cumprir agenda, já que o serviço público também não cumpre”, pondera Kikawa. Ele gostaria de ter um mecanismo que inibisse o absenteísmo, uma espécie de multa para quem falta, mas acha que aí é que entra a “educação” prevista no acrônimo CIES. É preciso educar o paciente, mas também para ser cidadão e cumprir com suas obrigações.

Educação que precisa chegar, também, a uma parcela dos médicos brasileiros. Para Kikawa, os profissionais estão acomodados e desinteressados. O paciente entra no consultório, mal relata os sintomas e já sai com um pedido de exame. “Mais de 50% dos exames são dispensáveis, inclusive os que nós fazemos. Hoje, o médico não realiza a consulta e o exame clínico como determina a OMS. E 90% do diagnóstico podem ser feitos apenas com o diálogo com o paciente e o exame físico.”

Crítico das pesquisas promovidas pela indústria farmacêutica, Kikawa afirma que a medicina hoje não trata das causas, apenas mitiga os sintomas: “75% das doenças têm origem psicossomática, mas a saúde pública não promove a prevenção, o combate ao estresse, a alimentação regrada e a atividade física, mas oferece medicamento para boa parte dos sintomas”.


Comentários

Uma resposta para “Saúde sobre rodas”

  1. Avatar de Marcelo Augusto
    Marcelo Augusto

    Tenho uma amiga que precisa de ajuda
    Ela precisa fazer o exame de câncer de mama
    Me ajude a ajudar ele, ir favor.

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