Segredo a sete chaves

De trás da bancada de madeira, escura e empoeirada, Ana Joana sai com duas garrafas abertas. Caminha até o meio do salão e as oferece ao avantajado nariz do avô. “Essa é 2001. Essa não. É mais nova.” Sem titubear, o velho soluciona a dúvida da neta. Ela agradece, retorna ao bar e serve os clientes. Ele dá meia-volta e se junta a amigos ao redor do fogão a lenha, que despeja linguiça frita e bisteca sem parar por duas horas. O cheiro de garapa, o suco natural da cana-de-açúcar, impregna o ar do recinto. Afinal, trata-se de um engenho. Mas aqui o odor é mais forte, brota dos buracos da madeira carcomida, é cheiro de mais de 200 anos de fabrico de cachaça – o engenho Boa Vista, em Coronel Xavier Chaves, Minas Gerais, é o mais antigo alambique em funcionamento no Brasil, segundo a Embratur (Empresa Brasileira de Turismo).

Papo de botequim, vira e mexe, tem conspiração no meio. E os ares que rodeiam essa construção simples não estão lá à toa – ou na imaginação fertilizada pelo álcool. O engenho tem traços de brasilidade que rompem a barreira do interesse puramente etílico. Na década de 1780, um grupo da elite mineira se reunia, entre outros lugares, no engenho, a fim de buscar um basta à exploração da Coroa portuguesa no Brasil. Sim, era a turma que lideraria o movimento chamado Inconfidência Mineira, em 1789. Enquanto tramavam, eles tomavam cachaça. Não queriam saber de vinho ou do destilado originário da metrópole, a bagaceira. Só arrebenta-peito, calibrina, quebra-munheca, uca, xinapre, cachaça. Quem fazia o álcool da turma era o dono do engenho, o padre Domingos da Silva Xavier, cujo irmão mais novo também estava entre eles: Joaquim José, o Tiradentes. É de uma irmã dos inconfidentes, Antonia Rita, de quem descende Rubens.
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Seu Rubinho, como é chamado em Coronel Xavier Chaves (cidade que tem o nome do bisavô dele), recebe dezenas, às vezes centenas, de pessoas que chegam – a maioria via boca a boca – para conhecer o alambique.

“O terreno é pequeno, como você vê. São só 17 hectares, tudo em cana pra cachaça. Além dos meus filhos, tenho quatro funcionários, que não estão aqui (que bela folga eles estão tendo!)”, conta Rubinho.

Com 75 anos, ele tem cabelos brancos fartos da metade do cocuruto para trás. Veste calça jeans sujas no dia a dia no campo, botinas marrons e camisa polo. Tem a voz suave, a serenidade de quem não abre mão da vida que leva. E, por mais que possam pensar o contrário, está longe de ser um beberrão. É bebedor comedido e elegante. A primeira caipirinha veio só aos 45 anos. O suficiente para adorar de cara, mas sem querer recuperar tempo perdido, porque isso não é com ele. Rubinho é bem apessoado, lembra o galã dos anos 1950, Charlton Heston na velhice. A diferença é que ele tem a menos alguns dentes e muitos milhões de dólares que o ator, morto em 2008.

Rubinho administra também O Sobrado, pousada adaptada em sua própria casa, que ele faz questão de chamar anti-hotel, por não ter recepção e o serviço de quarto se limitar ao contato com os próprios donos.

Rubens Resende Chaves nasceu na vizinha Resende Costa, em 9 de janeiro de 1933. É da infância dele que vem as mais fortes e significantes lembranças do alambique: “Todo mundo sempre fez cachaça na família. Nas férias eu ficava lá, vendo aquela coisa toda no alambique do meu avô. Ficava curioso, olhando o movimento, parecia um quadro do Debret. Mas o encanto sempre foi mais com a moenda movida a carro de boi (que até outro dia tinha aqui), do que com a cachaça em si. Porque não bebia. Um pouco mais velho, sempre que tomava um golinho, eu ficava com soluço. Então não tomei cachaça até comprar o alambique”, conta. Mas da compra falamos depois.

Cecília, uma das empregadas da casa, interrompe a conversa:

– Dá licença, seu Rubens. Um hóspede lá embaixo pergunta se ainda tem cerveja.

– Os meninos tomaram muito ontem, teve uma festinha do Zé Sérgio. Acho que beberam tudo. Faz o seguinte, busca um pouquinho lá no Nanado e um tiquinho pra mim também!, responde Chaves.

O casarão foi construído em 1900 e fazia parte da fazenda do Coronel Xavier Chaves, bisavô de Rubinho. Em um terreno de 500 m2, ele tem dez quartos e é decorado com quadros e tapetes, no estilo rural chique. Na sala da casa, cartas e documentos da família se espalham nas paredes.

Leitora inveterada, a paulista Maria Aparecida Chaves, mulher de Rubinho, pesquisa com paixão as raízes dos antepassados. É a maior responsável por preservar a memória do alambique do padre Domingos e da antiga fazenda.

Rubinho e Cida casaram-se quando ele tinha 21 e ela, 18. Tiveram cinco filhos. Morando em Belo Horizonte, ele se formou em Administração e Economia, depois trabalhou por trinta anos no Banco do Brasil. Em 1975, foi convidado para trabalhar no Banco Central, em Brasília, onde, por um ano, ele diz ter visto escândalos de corrupção que só conhecia na literatura policial. Decidiu voltar “para a roça”.

Em 1978, comprou do primo José Afonso Rodrigues o engenho Boa Vista. “Paguei uns 600 e não sei quantos mil cruzeiros na época – mais ou menos 100 mil dólares. Foi naquele ano que arrisquei tomar caipirinha pela primeira vez. Achei gostosa. No ano seguinte, passei a tomar cachaça, e agora sem soluço.”

Rubinho enfatiza que comprou o engenho por apego à memória da família, pois sabia que ele tinha uns 200 anos e nunca havia sido abandonado nem reformado. Mas ele não imaginava que a construção pertencera ao padre Domingos, seu antepassado. Muito menos que Tiradentes havia tomado vários goles de “aguardente da terra” lá.

Era uma tarde de domingo nos anos 1990, e Cida estava entediada. Começou a folhear livros antigos da família do marido com cópias de registros, contratos e testamentos dos antepassados de Rubinho. Sentada na escada de tábuas de madeira e azulejos coloridos, ela leu:

Sem querer e de supetão, Cida descobriu que o irmão de Tiradentes fora dono do engenho. A vontade de conservar se juntou à necessidade de cuidar do que Rubinho tinha em mãos. Ele precisou profissionalizar o velho alambique e seguir as normas de higiene do Ministério da Agricultura, para que seu “museu vivo” pudesse fazer uma aguardente com selo de qualidade e ser exportada, mesmo que em pequenas remessas. Rubinho usou os conhecimentos aprendidos com um primo, Olímpio Chaves, experiente alambiqueiro que por 11 anos tocou o engenho com ele, para transformar em negócio o que vinha sendo feito informalmente por dois séculos. Mas ele não revela seus segredos de produção. Estão guardados “a sete chaves por sete gerações de Chaves” – é o trocadilho preferido dele.

O dia começa cedo no sobrado. Por volta de 8h30, Rubinho aparece na mesa do café da manhã e pergunta quem vai visitar o alambique, a três minutos de carro dali.

O engenho tem uma entrada discreta, um tanto largada. Desce-se por um caminho de pedra ladeado por bromélias e pitas. Dois cavalos magros dão as boas-vindas. Do lado de dentro da casinha branca fica o alambique e o bar. A cana é plantada atrás da casa e seu caldo é recolhido na moenda, que até hoje funciona com a força da água do ribeirão. A bebida descansa por, no mínimo, 10 meses em um depósito de alvenaria, porque Rubens é catedrático quanto ao uso de tonéis de madeira. “Minha cachaça não tem vergonha de ser cachaça. Não vai se fantasiar de uísque.” É branca para sempre, transparente até o último gole. A produção é modesta, cerca de 30 mil litros por ano, um traguinho comparado às gigantes industrializadas, cujos números giram nas centenas de milhões de litros.

De pé em volta do fogão a lenha, Rubinho conta a história do dono ilustre do alambique. Domingos da Silva Xavier ganhou a fazenda de uma tia em 1763, como dote para ordenar-se padre. Ele morou por 21 anos no engenho, produzindo, bebendo e conspirando com o irmão mais novo e os outros colegas inconfidentes. Em 1784, partiu para a Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá, afastando-se do sacerdócio. Muitas especulações acompanham a viagem dele, entre elas a do plano de criar um braço inconfidente no Mato Grosso. Lá, em 1790, Domingos foi preso por suposto tráfico de diamantes e deportado para Portugal. Nesse meio tempo, Tiradentes foi condenado e enforcado, em 21 de abril de 1792, quando, segundo a lenda, teria dito, como último pedido: “Molhem minha goela com cachaça da terra”.

Na sala do sobrado, ao lado da escrivaninha há um quadro cuja imagem é uma brincadeira de um amigo pintor. Ele retratou Rubinho como um pomposo senhor de engenho, um poderoso coronel – tal qual seu bisavô -, com suas infinitas terras de pano de fundo. Rubinho ri quando explica o teor do quadro. Claro que ri. Rubinho é, no máximo, um anticoronel.

Cachaça


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