Segue o baile

Na Patuá Discos, com discos de Airto Moreira e Flora Purim, Jorge Ben e Sambalanço Trio, os DJs MZK, Ramiro e Paulão - os dois últimos, sócios da loja sediada na Vila Madalena. Foto: Luiza Sigulem
Na Patuá Discos, no bairro da Vila Madalena, em SP, com discos de Airto Moreira e Flora Purim, Jorge Ben e Sambalanço Trio, os DJs MZK, Ramiro Z e Paulão – os dois últimos, sócios da loja. Foto: Luiza Sigulem

Segregados nos bairros periféricos de São Paulo nos anos 1970, os bailes b
lack foram redescobertos na segunda metade dos anos 1990 por um novo público. Essa movimentação, dispersa em clubes da região central da cidade e na boemia da Vila Madalena, foi testemunhada – e protagonizada – por personagens como os DJs Paulão e MZK, pontas de lança de pesquisas que reafirmaram a herança da música negra em nosso País.

Paulo Sakae Tahira, o DJ Paulão, saiu da zona norte de São Paulo, aos 17 anos, em 1991, para viver em Campinas, onde estudou Ciências Sociais, na Unicamp. Mesmo determinado a concluir a formação de cientista político, ao começar a atuar em programas da Rádio Muda, braço de comunicação interna da universidade, logo descobriu que a música falaria mais alto. “Antes de chegar no segundo ano eu já sabia que não era aquilo que queria para minha vida, mas que devia aproveitar ao máximo tudo que a faculdade tinha a oferecer”, diz.

Paulão fez mesmo bom proveito da Rádio Muda. Com o intercâmbio entre alunos, propiciado pela ex­­periência de produtor, pro­gramador e locutor da emis­sora, construiu uma rede de contatos com alunos, radicados na Unicamp, de todas as regiões do País e da América Latina, que expandiu suas pesquisas musicais. O acesso a trabalhos de artistas, álbuns e compactos obscuros, assemelhados pela força rítmica, levou Paulão a desenvolver a faceta de DJ. Nas pistas conduzidas por ele, em noites como a Festa Black, improvisada no campus e em espaços alternativos, de centenas a 1,5 mil jovens, se entregaram ao embalo irresistível da música negra no biênio 1995/1996.

Quatro anos mais tarde, em 1999, Maurício Zuffo Kulmann, o DJ MZK, também artista gráfico, iniciou, em quatro noites avulsas no Hotel Cambridge, a festa Jive. Na pista regida por ele e os amigos Magrão e Don KB, um misto quente de sonoridades de matriz afro, que ia do funk ao samba-rock, do jazz latino aos grooves globais, da música lounge às trilhas sonoras de cinema e de novelas. Com o sucesso da empreitada, eles migraram o baile para uma sala comercial no térreo de um edifício da rua Caio Prado, no centro de São Paulo. O espaço, dos irmãos Márcio e Alex Ceccin, o Don KB, foi batizado de Jive e logo atraiu uma seleta fauna noturna.

“O público era de artistas, músicos, jornalistas. Uma rede de frequentadores que influenciou o crescimento da festa. Algo bom, porque a gente também tinha a liberdade de ou­sar e tocar o set que quisesse”, diz MZK. A incursão na Caio Prado, no entanto, teve vida efêmera. Corria o sexto mês de bailes semanais quando, depois de impasses com a fiscalização da Prefeitura e pressão da vizinhança, a aventura teve fim. “O dia em que o primeiro Jive foi fechado, o Luiz Melodia estava lá, um baita clima legal, mas a polícia chegou e acabou com tudo”, recorda. Em outros endereços, fixos e itinerantes, no entanto, a festa Jive durou dez anos.

Artista gráfico, DJ MZK cria flyers para as festas que produz, como a emblemática Jive, de 1999, e a mais recente, Entrópica. Ao lado, flyer de uma das edições da festa Chica Chica Bum, das DJS Ju Salty e Prila Paiva. Foto: Reprodução / Arquivo pessoal
Artista gráfico, DJ MZK cria flyers para as festas que produz, como a emblemática Jive, de 1999, e a mais recente, Entrópica. Ao lado, flyer de uma das edições da festa Chica Chica Bum, das DJS Ju Salty e Prila Paiva. Foto: Reprodução / Arquivo pessoal

Filho de um caminhoneiro de ascendência japonesa, Eizo Tahira, e de uma dona de casa, Maria Salomé Vaz Santos, Paulão cresceu na zona norte da cidade e teve pouca influência dos pais em sua formação musical – segundo ele, a trilha sonora de casa era um misto de música sertaneja e oriental. A vocação para a discotecagem, no entanto, deu vestígios desde a mais tenra idade. “Com 7 anos, em 1980, eu pegava minha vitrolinha Sonata, uns discos de trilhas de novela e ficava tocando no quintal de casa.”

Trinta e três anos depois, em 2013, o predicado de garimpador de relíquias levou Paulão a lançar, em LP, a coletânea Brazuca!, pela gravadora holandesa Kindred Spirits. Com mais de três mil cópias circulando pelo mundo, o álbum, que está sendo reeditado e terá um segundo volume, foi recomendado pelo jornal francês Libération como essencial para conhecer o melhor da música brasileira no ano da Copa do Mundo de Futebol de 2014. Com 12 faixas, o álbum reúne composições lançadas entre 1966 e 1978, por artistas como Evinha, Toni Tornado, Arnaud Rodrigues, Di Melo, Elza Soares, Silvio Cesar e Noriel Vilela.

Nascido na Vila Universitária, vizinha da USP, na zona oeste de São Paulo, MZK teve na adolescência uma grande influência para se tornar DJ: os bailes black organizados por uma modesta equipe local municiada apenas de luz negra e estrobo. Com recursos ainda mais precários, ele decidiu fazer com amigos seus primeiros bailinhos de garagem. “Descolamos uns soquetes de luz, lâmpadas coloridas e gravamos as músicas em fitas K-7. Eu já tinha a influência do funk e da disco music, mas não era um conhecedor desses sons. Não cheguei a participar daquela parada da São Bento (a cena de hip-hop surgida na estação de metrô que, nos anos 1980, foi embrionária do rap brasileiro), mas acompanhava tudo de perto. Ouvia os primeiros discos do Thaíde e DJ Hum, os Beastie Boys, Malcoln McLaren, Kool Moe Dee, Kurtis Blow e RUN-DMC.”

Depois de um período em que morou em Santos, predominado pelo interesse em rock, MZK voltou a São Paulo e integrou uma banda de surf-music com o sugestivo nome de Los Sea Dux, tocando maracas. Com a expansão das influências musicais do grupo, que incorporou grooves de diversos gêneros, veio o desejo de discotecar novamente. Ao lado de Magrão, contrabaixista do trio e futuro parceiro nas noites do Jive, MZK começou a fazer a trilha sonora que antecedia as apresentações do combo. Experiência embrionária da Jive, uma das festas que impulsionaram um culto jamais visto ao samba-rock. De mero estilo de dança, os sons que embalavam a negritude dos anos 1970 foram elevados ao status de gênero musical, por meio de bandas como Clube do Balanço, Os Opalas, Farufyno, Sandália de Prata e Sambasonics.

Guitarrista, cantor e compositor desta última, Marcelo Munhoz nasceu em Araraquara, cidade do interior paulista com forte predominância de cultura negra, celebrada anual­­­mente na tradicional Festa do Carmo. “No final dos anos 1970, perto de casa acontecia um baile da comunidade que se chamava Academia do Samba, uma escola para mim”, diz. As informações armazenadas nessas festas expandiram sua compreensão do universo da música afro-brasileira. Com o Sambasonics, que completa 15 anos neste mês, Munhoz tocou em quase 500 bailes, somente no bar Grazie a Dio!, lançou dois álbuns no Japão e ganhou uma canção inédita de Jorge Ben Jor, Achados e Perdidos, registrada no CD Jorge Ben Beat.

Sócio de Paulão na loja Patuá Discos, sediada na Vila Madalena, o jornalista Ramiro Zwetsch, o DJ Ramiro, divide com MZK a festa Entró­pica, realizada mensalmente no Boteco Pratododia, celeiro de DJs sediado no bairro da Barra Funda (sócio do espaço, o jornalista Luís Felipe Freitas, ao lado do fotógrafo Neto In, fará perfis de outros personagens no site pratododia.org, acesse). Na pista da Entrópica, Ramiro e MZK fazem um passeio por sonoridades afro vindas de países como Brasil, Cuba, Jamaica, Nigéria, Congo, Angola, República de Camarões e Serra Leoa. Filho dos também jornalistas Valdir Zwetsch e Harumi Ishihara, o DJ herdou dos pais mais que o interesse pelo ofício. No final dos anos 1970, Valdir foi editor da revista Pop. A mãe, assessora de imprensa de duas grandes gravadoras, a Warner e a Continental, tinha entre os amigos estrelas como Gilberto Gil e Elis Regina. “Acostumei a ver pacoteiras de discos chegando dos correios na casa da minha mãe e do meu pai, que se separaram quando eu era criança. Toda minha formação passa por isso. Na adolescência, aquele lance de gravar fitinhas K-7 para presentear amigos, paqueras e namoradas, um clássico da minha geração, logo me levou a ser DJ”, recorda.

Em paralelo à carreira de repórter, ocasião em que escrevia para a o extinto Jornal da Tarde, Ramiro começou a discotecar, solitário, em bailes para os amigos da faculdade, que atravessavam a madrugada. “Foi quando percebi a força do funk, do soul e das coisas menos óbvias da música brasileira”. A fonte dessas descobertas era um vendedor ambulante que vivenciou a febre dos bailes black nos anos 1970. “Comprei muitos discos com o falecido Billy. Minha coleção foi muito alimentada por ele. Discos de artistas que hoje eu não conseguiria comprar, como União Black, Gerson King Combo e Wilson Simonal.”

Outra fonte do DJ era a loja Phono 70, do pesquisador Rodrigo Piza, dono do extinto bar Suíte Savalas. Ponto de encontro de garimpeiros obcecados por títulos brasileiros raros, a Phono 70 propiciou a Piza manter, por cinco anos, um programa semanal, homônimo na Rádio UOL.

Inquieto por não poder disseminar o conteúdo de suas pesquisas nos veículos em que atuava, Ramiro também embarcou no mundo virtual, com a criação do Radiola Urbana. No ar há dez anos, o site permitiu ao jornalista e colaboradores produzir um sem-número de entrevistas, perfis e resenhas, e conteúdo exclusivo, como as conversas com dois ícones da música africana, o ganense Ebo Taylor e o nigeriano Tony Allen, baterista do papa do afrobeat, Fela Kuti. A experiência virtual no Radiola Urbana também rendeu boas parcerias reais com amigos que dele se aproximaram por meito do site, como o designer Vini Marson, o jornalista Filipe Luna, também DJ da festa de soul Talco Bells, e o arquiteto Pedro Pinhel.

Criador do blog de compartilhamento de arquivos de áudio Original Pinheiros Style, Pinhel mantém com o fotógrafo Henrique Ribeiro, conhecido pela alcunha de DJ Peba Tropikal, a festa Funky Nuggets. Como MZK e Ramiro, o arquiteto também foi influenciado pelo hip-hop. “A descoberta do funk veio com a cultura do sample no rap. Eu ouvia muito Beastie Boys, House of Pain e Cypress Hill. Antes de sacar os samples mais óbvios do James Brown, fiz descobertas ainda mais obscuras e concluí que o funk é uma instituição, com nomes de peso, como o próprio Brown, George Clinton, Parliament e Funkadelic, mas também com toda uma dinastia de bandas menos visíveis. Em 2009, fiz um primeiro projeto como DJ, no Caos. O maior aprendizado que tive foi conhecer pessoas conectadas a música.”

Foi em uma dessas festas na loja de antiguidades instalada na rua Augusta que Pinhel conheceu Peba. Atuando na noite como fotógrafo de festas, o estopim de seu interesse pela música deu-se na adolescência, quando descobriu o álbum Mondo Bizarro, dos Ramones. Não tardou para o punk ser substituído pelo funk. “Comecei a me aventurar pelo rock, mas no meio do caminho topei com James Brown e comecei a pesquisar. Eu não pensava em ser DJ até que o Alexandre Bispo, um dos donos da Torre do Dr. Zero, me convidou para tocar lá no começo dos anos 2000.”

Ao lado de Mauricio Fleury, guitarrista e tecladista da big-band Bixiga 70, e do jornalista e produtor Ronaldo Evangelista, Peba criou, em 2006, a equipe Veneno. A troca de figurinhas com os amigos fez com que ele enveredasse por obscuridades brasileiras da transição dos anos 1970 para os 1980. “Fui dando mais atenção para o Movimento Black Rio, o funk e o boogie feitos no Brasil, e percebi que eles são coisas singulares na América do Sul. Um movimento que veio dos negros norte-americanos e foi rebatido aqui por uma galera que vinha do samba. Essa mistura resultou em novas sonoridades, muito ricas e interessantes. Foi muito importante entender esse meio de campo, porque nós temos uma das músicas mais maravilhosas do mundo”, diz Peba.

Criados pelo DJ Pedro Pinhel, os flyers da festa Funky Nuggets têm inspiração em filmes do movimento Blaxploitation. Foto: Reprodução / Arquivo pessoal
Criados pelo DJ Pedro Pinhel, os flyers da festa Funky Nuggets têm inspiração em filmes do movimento Blaxploitation. Foto: Reprodução / Arquivo pessoal

Descobertas semelhantes surgiram nas pesquisas das DJs Ju Salty e Prila Paiva, criadoras, em 2010, da festa Chica Chica Bum. Como Ramiro e Pinhel, elas também se conheceram por meio de sites de compartilhamento. Em 1990, Ju também foi cooptada pelo rap. “Ailton, um grande amigo, me presenteou com uma fitinha K-7 do álbum Hip- Hop Na Veia, do Thaíde e DJ Hum, e amei o que ouvi. No mesmo período, comecei a sair na noite paulistana e passei a frequentar a Der Tempel, uma casa de rock, mas que, na pista, misturava tudo. Claro, não rolava música negra na essência, mas tocavam muito hip-hop. Tanto que a primeira vez que ouvi Racionais MCs foi lá. Lembro que fui correndo perguntar para o DJ o que estava tocando. A música era Hey Boy”. De ouvinte compulsiva a DJ, Ju iniciou a carreira em 2006, em clubes como Tríade e CB, onde fez as noites Versão Brasileira, com o cantor e compositor Rômulo Fróes, e Tiki, ao lado de João Gordo.

Em festas amadoras na faculdade, Prila experimentou situações divisoras para sua formação de DJ. “Em 2000, eu ingressei na Unesp para estudar Artes Visuais e comecei a discotecar nas festas organizadas pela turma. Eram eventos grandes com 500 pessoas. Veio daí o meu entendimento sobre o que é ser DJ. Foi também nessa época que mergulhei nos ritmos de matriz africana e latino-americanos, mesclados à psicodelia. Marva Whitney, Gal Costa, Elza Soares, Trio Ternura, Wilson das Neves, Djalma Corrêa, Geovana, James Brown, Kool and The Gang, Sly and The Family Stone, Jimi Hendrix, Mongo Santa Maria, entre outros, costuram até hoje minhas sessões. Busco a maestria da história da música que é contada com a alma”, diz.

Ju e Prila fazem parte de movimentação ascendente. Antes restrito a iniciativas isoladas, como as festas da pioneira DJ Sonia Abreu, iniciadas, em 1977, em 1977, na Papagaio Disco Club, a presença feminina atrás dos toca-discos é fenômeno visível na noite paulistana, em bailes como os do coletivo Mulheril, que reúne dezenas de colaboradoras; Veraneio, das DJs Laylah Arruda, Laura Mercy e Raffa Jazz; Pitangueira, das DJs Dé Schw, Mariana Boaventura e Gabriela Ubaldo; Macumbia, também de Gabriela; e Viva o Vinil, da paraibana DJ Kylt, radicada em São Paulo.

Ju, no entanto, considera que essa evolução ainda é tímida. “Acho legal que exista hoje um número crescente de mulheres DJs, mas essa movimentação ainda é pequena, se comparada com a hegemonia masculina. Infelizmente, esse é um reflexo das dificuldades que a gente vive em uma sociedade machista e misógina. Somos minoria, mas sigo fazendo o que gosto, porque sei que a música tem a força de aglutinar as pessoas. A partir do momento que descobri que eu tinha o poder de uni-las através do som, essa paixão sempre me moveu”, diz.

Prila reitera a opinião da parceira de Chica Chica Bum. “Das instituições públicas às domésticas, vivemos em um Estado masculino. Vejo pouco intercâmbio entre produtores e DJs que incluam as mulheres pela perspectiva criativa. Muitas vezes, elas são incluídas nas redes culturais para atender protocolos de consciência de quem se diz não machista. Ao mesmo tempo, é incrível como coletivos de mulheres têm transformado as coisas por insistência e resistência. Mas esse trânsito precisa fluir mais. Concluo, deixando um salve à DJ Sônia Abreu, desbra­vadora do universo dos bailes, mulher sonhadora, que saltou o muro do preconceito com sua Kombi mágica e sua coleção de discos, levando suas Ondas Tropicais para o espaço público na década de 1980.”

Com esses oito personagens, encerramos aqui as duas reportagens dedicadas à história dos bailes black e sua herança para a noite de São Paulo. Vale lembrar, como afirmamos na primeira matéria, que centenas de anônimos também construíram essa narrativa. Um salve a todos eles!

MAIS
Leia Negro é Lindo, primeiro capítulo desta reportagem


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