Seleção brasileira?

O sentimento de inferioridade dos brasileiros, assim que Bellini ergueu a taça Jules Rimet na Suécia, no dia 29 de junho de 1958, inventando o gesto que seria imitado por todos os capitães campeões mundiais seguintes, não existia mais. Sim, o fantasma do Maracanazo de 1950 estava enterrado com a conquista do primeiro título mundial. Cinqüenta anos depois, será que somos tão brasileiros quando se trata de seleção de futebol? Será que a torcida perdeu o encanto pela camisa amarela? Onde está o orgulho por nossa pátria de chuteiras, usando uma expressão do genial Nelson Rodrigues? Será que temos o mesmo sentimento de antes pela seleção brasileira?

Perguntas e questões em torno do time nacional de futebol têm sido discutidas ultimamente, principalmente na ocasião dos dois jogos das Eliminatórias para a Copa de 2010, em junho. Antes dos confrontos, dois amistosos em solo norte-americano. Uma vitória apertada para a “poderosa” seleção do Canadá (3 a 2) e uma derrota para a Venezuela, por 2 a 0, a primeira da história do confronto! Já em Assunção, pelas Eliminatórias, uma pífia apresentação contra o modesto Paraguai, em que o time brasileiro, além de perder por 2 a 0, esteve irreconhecível, jogou encolhido, sem raça, sem vontade e, sobretudo, sem demonstração de orgulho dos jogadores em vestir a camisa amarela. Depois, em Belo Horizonte, uma festa preparada para a redenção da equipe de Dunga. No campo, um empate sem graça e sem gols contra a Argentina, que parece também ter perdido o encanto que tinha à época de don Diego Maradona. O Mineirão lotado vaiou o técnico e alguns jogadores, expressando as inúmeras interrogações em torno do time verde-amarelo. Para completar, o Chile roubou o quarto lugar do Brasil e deixou, momentaneamente, o time canarinho numa eventual disputa de repescagem para se classificar para a Copa da África do Sul. A seleção parece distante da torcida, que sente isso a cada jogo, a cada amistoso realizado lá fora.

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Antes de procurar respostas para questões sobre a seleção, é bom relembrar o conceito de nação. Na definição do Dicionário Aurélio, nação, do latim natione, é um “agrupamento humano, em geral numeroso, cujos membros, fixados num território, são ligados por laços históricos, culturais, econômicos e lingüísticos”. Nação é um conceito abstrato, frágil. A formação de nação, na prática, se dá ao longo de séculos. Na Europa, por exemplo, eventos marcantes, como guerras, formaram a personalidade dos povos, principalmente aos cos fatos demarcaram o que é o povo brasileiro. E tivemos de ir atrás do que nos identificasse. Além da música, das mulheres, do samba e do Carnaval, o futebol foi um dos elementos que nos identificaram. “O futebol passou a ser uma forma de congregação. Passou a ser um elemento que ajuda a constituir a nacionalidade. É claro que a seleção representa, teoricamente, o país. Em torno dessa idéia, a seleção ganhou prestígio”, diz o sociólogo Hilário Franco Júnior, autor do livro A Dança dos Deuses – Futebol, Sociedade, Cultura, da Companhia das Letras, que reconta a história do esporte como produto da sociedade do século XX.

Assim, a Seleção Brasileira de Futebol é a representação, no gramado, da nação. A construção da “nação seleção” foi forjada com “guerras” dentro do campo, com derrotas que nos marcaram, como as de 1950 e 1982, com disputas contra rivais ferrenhos, como os argentinos. E com vitórias que fizeram o povo brasileiro ter orgulho da seleção, se ver representado pelo time de futebol e, principalmente, se sentir uma potência mundial no esporte bretão. Foi a partir de 1958 que o Brasil passou a ser olhado como tal, como uma força no futebol. O que se confirmou com o bicampeonato, em 1962, e o tri, no México, em 1970. O longo hiato de 24 anos entre o tricampeonato e o tetra, em 1994, não abalou a imagem do Brasil como seleção de futebol, nem aqui nem no exterior. No entanto, o mundo mudou muito nos últimos 50 anos e o futebol, espelho e representação viva da sociedade, acompanhou o processo. Transformações econômicas, sociais e culturais estremeceram a relação do torcedor com as seleções, vínculo que parece não ter a mesma força de antes. E isso é notado não só no Brasil, mas em todo o planeta.

Atualmente, o Estado-nação vive uma crise. A globalização vem apagando as fronteiras nacionais, principalmente econômicas. O mundo virou a chamada aldeia global, com a redução das distâncias, a comunicação instantânea, a conexão dos mercados financeiros, entre outras transformações. O futebol passou a ser um grande mercado, com transações milionárias de jogadores em todos os cantos do globo, contratos de publicidade, de transmissão de TV e de mídia cada vez mais gordos e com mais dinheiro envolvido fora das quatro linhas. Nesse novo cenário, cidadãos têm menos vínculo com as nações e, em conseqüência, torcedores sentem-se menos ligados às seleções de futebol. No final dos anos 1980 e início dos anos 1990, o futebol brasileiro começou a assistir ao êxodo de seus craques. Dessa época até o fim do último século, jogadores formados e experientes como Zico, Sócrates, Júnior, Falcão, Raí, Bebeto, entre muitos outros, arrumaram as malas e foram jogar em outros países.

A partir do século XXI, o mercado, principalmente o Leste Europeu, passou a não olhar mais para a data de nascimento dos atletas. Dois exemplos dessa nova ordem são Breno e Alexandre Pato. O primeiro atuou em 36 jogos pelo São Paulo, conquistou o Campeonato Brasileiro de 2007 e rumou para Munique, para vestir a camisa do Bayern. O segundo, promissor atacante da Inter de Porto Alegre, atuou apenas 26 vezes com a camisa colorada e foi para o poderoso Milan, da Itália. “O esporte bizz virou só o bizz. A profissionalização e a globalização estão descaracterizando o futebol dos países em função dos jogadores, descaracterizando o futebol dos clubes. Você vê um Arsenal (Inglaterra) com 11 estrangeiros. A seleção parece o último refúgio dos craques nacionais”, diz Joelmir Beting, jornalista especializado em economia, mas que iniciou a carreira na área esportiva e acompanhou a conquista de 1958. Para ele, isso faz com que o torcedor acabe virando as costas para o jogador, porque a negociação para o exterior afasta cada vez mais cedo o atleta do povo. “O público vai perdendo essa aura da seleção”, completa.

Na seleção brasileira, o marco do êxodo foi a Copa de 1990, a primeira a contar com mais “estrangeiros” do que “brasileiros” no grupo eliminado pela Argentina nas oitavas-de-final. Apenas dez jogadores atuavam em clubes do Brasil. Em 1994, na conquista do quarto título, 11 brasileiros estavam no plantel comandado por Parreira. “Que seleções, de vários anos para cá, passaram a representar a gente? A questão não é nem deles, mas nossa. Não tem mais a identificação com o jogador. O laço emocional ficou esgarçado, diluído. E é essa a principal relação do futebol, a paixão”, diz Franco Júnior. Para a Copa de 1998, Zagallo levou oito jogadores que atuavam no País. De 1990 para cá, a seleção que teve mais brasileiros, coincidentemente, foi a que mais se identificou com o povo. A “Família Scolari” contou com 13 jogadores
atuando no País e trouxe o pentacampeonato para o Brasil. Franco acredita que Felipão tenha restabelecido a conexão emocional com o torcedor brasileiro em 2002 exatamente por ser uma figura passional, como o sujeito da arquibancada. “Existe um elo entre ele e o torcedor. O jeito dele transmitiu para os jogadores uma parte da identidade perdida. ‘Você mora na Europa, mas teus amigos, teu pai, teu avô estão no País e precisam da alegria de ganhar a Copa’. Ele conseguiu mobilizar essas forças todas”, afirma.

Para Juca Kfouri, Luiz Felipe Scolari conseguiu, sim, restabelecer o elo entre povo e time, mas vê outras questões em torno de todo esse desencantamento. Primeiro, o jornalista acredita que o torcedor tem maior apego pelo próprio time em detrimento da seleção, principalmente no Brasil. No Blog do Juca, seguidas vezes ele faz a seguinte pergunta ao internauta: “Você prefere ser campeão do Mundial de Clubes da Fifa ou da Copa do Mundo?”. Resposta em 100% das vezes: Mundial de Clubes da Fifa. Kfouri acredita que a paixão pelo clube sempre foi maior e não é fenômeno de hoje. Ele cita o célebre jogo entre o Brasil e o Corinthians, antes da Copa de 1958, no Pacaembu, em que o zagueiro Ari Clemente quase “quebrou” Pelé. A torcida corintiana encheu o estádio para pedir Luizinho, o “Pequeno Polegar”, no grupo que viria a conquistar o título na Suécia. “Acabou aquela coisa de ‘Convocaram o Rivellino e não convocaram o Ademir da Guia! Baita sacanagem’, dizia o palmeirense. Hoje, se você convocou o jogador do Real Madrid e não o do Barcelona ou do Ajax, é uma discussão que se dá muito mais entre os formadores de opinião”, analisa.

Franco Júnior concorda com Kfouri e acredita que a paixão do torcedor pelo clube é maior por causa do contato freqüente com a agremiação, no dia-a-dia dos jornais, nos jogos no estádio, pela TV. A seleção, para o sociólogo, fica em segundo plano. “A questão da nação como abstração também torna a seleção abstrata. A maior parte do tempo não é nada, é uma lembrança. E o clube é uma realidade, que tem uma história também, mas tem um presente concreto, visível”, diz Franco Júnior, exemplificando a idéia de que “o Rio Tejo não é mais belo do que o rio que corre pela minha aldeia, porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”, de Fernando Pessoa. Globalização, êxodo de jogadores, paixão maior pelo clube do coração, tudo pode explicar se o sentimento do torcedor pela seleção brasileira foi perdido ou não. Aliás, torcida, em italiano, é tiffosi, que vem de tifo, febre na língua do país da bota. “Se a seleção brasileira sempre foi muito criticada, se sempre houve uma relação de amor e ódio, hoje existe um sentimento muito pior, que é a indiferença e, às vezes, até desprezo”, diz Kfouri. Será que perdemos a “febre”?


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