Pra começo de conversa, imaginar um grupo de tango sem bandoneón soa tão absurdo quanto trio de forró sem zabumba. Instrumento de teclado aerofônico, como o órgão e, é claro, a sanfona, o bandoneón não foi o único a ser abandonado pelo gatoNegro, quinteto paulistano dedicado a essa música derramada e visceral. Liderado pelo violonista paulista Ramiro Murillo e a cantora argentina Natalia Mallo, o grupo – que traz ainda Cintia Zanco, violino, Marisa Silveira, violoncelo, e Rui Barossi, contrabaixo – também deixou de lado os exageros vocais e instrumentais, além de outro instrumento de teclado, o piano (este, cordofônico), para focar-se naquilo que o tango tem em comum com a música brasileira – a sutileza, a emoção, a riqueza melódica. Melancolia sim, mas com um solzinho, uma brisa batendo no rosto, que ninguém é de fierro.
Filho de pai boliviano, com família na Argentina que sempre visita, Ramiro toca violão desde os 14 anos. Depois de um período radical de Ramones e metaleiros, cumpriu o rito de passagem com um professor jazzístico, ressurgindo afeito a Bach e João Gilberto. Apesar da lembrança do avô tocando tangos no piano de casa, o gênero surgiu-lhe por acaso. Em 2003, em Curitiba, conheceu Luiz Peres, o elo perdido, que, além de despertar-lhe o interesse pela música argentina, municiou-o com partituras de tango contemporâneo. O encontro com Natalia seria definitivo para que optasse pelo gênero.
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Criada em Buenos Aires, para ela o tango, como para todas as garotas de sua idade, era coisa de velhos. Menininha, estudante da Escola Cinco Esquinas, participou das homenagens dos 50 anos da morte de Carlos Gardel, em 1985. Na ponta dos pés, cantou ao microfone El Dia em que me Quieras. Lembra-se de anos mais tarde acompanhar seu pai à rádio Tango FM, onde ele trabalhava. Via aquilo tudo como coisa de senhores de terno, sérios. Admirava, como admira até hoje, a elegância daqueles cavalheiros, mas sua praia era o pop. No Brasil, tornou-se produtora, baixista e cantora, participou dos três discos do grupo Trash Pour 4 e juntou suas composições no sofisticado CD Qualquer Lugar, cantando sem sotaque portenho. O tango era mera lembrança naquele longínquo 2003.
Conheceu Ramiro por meio de uma amiga comum. Juntaram-se a fome e a vontade de comer. Ele queria tocar, ela queria cantar. Tango. Estrearam em duo. Experimentaram um trio com o celista Cerrone. Outro com o tecladista Dudu Tsuda, do Trash Pour 4. Dudu ficou pouco tempo, mas lembrou do nome de um cabaré, o Le Chat Noir (gato preto, em bom português), rival do Moulin Rouge, para batizar o conjunto que evoluiu para um quinteto. Natalia se diz admirada com a aceitação do grupo. Segundo ela: “É como se o tango permitisse o acesso à emoção negada, porque é brega. As pessoas se soltam, elegantemente”.
O disco de estreia, Tango, traz os arranjos de Ramiro, que divide a direção artística com Natalia, para clássicos como “Malena”, “Uno”, e o gardelíssimo “Mano a Mano”, modernizados por brasileirismos (sem exagero) e a influência de Astor Piazzolla, de quem interpretam “Vuelvo al Sur”. Ramiro é autor das instrumentais “Tango del Abuelo” e “Badeniana”. “Tango”, de Ryuichi Sakamoto, meio que batiza e sintetiza o CD. Originalmente uma bossa, moderna e eletrônica, tinha uma letra em japonês que falava em um patrício de Sakamoto que largou tudo para viver um amor na Argentina. A versão de gatoNegro ganhou letra em castelhano e, segundo Ramiro e Natalia, é mais Tom Jobim com arranjo tangueiro. O gatoNegro já pensa em um segundo álbum com mais músicas autorais e letras que fujam dos amores derramados, traições e desventuras. Tem até nome: Tengo.
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