Carioca de Santa Teresa, Ana Maria Machado deu muitas voltas antes fazer só o que mais gosta: escrever livros. Depois de presa pela repressão no final dos anos 1960, ela partiu para o exílio na Europa para escapar, com diz, de uma situação política “insustentável”. Lá, trabalhou como jornalista na revista feminina Elle, em Paris, na BBC de Londres e ainda publicava histórias infantis na revista Recreio, da Editora Abril. Também se tornou professora na Sorbonne e participou de um pequeno grupo de estudantes, cujo mestre era ninguém menos que Roland Barthes. Foi ele quem a orientou na tese de doutorado em Linguística e Semiologia, que resultou no livro Recado do Nome, que trata da obra de Guimarães Rosa.
De volta ao Brasil, em 1972, Ana continuou ligada às palavras, mas ainda como jornalista do Jornal do Brasil e da Rádio JB. Pouco tempo depois, as histórias antes publicadas em revistas passaram a se tornar livros. Não bastasse tudo isso, a escritora ainda fundou, com uma sócia, a primeira livraria destinada ao público mirim no Brasil, a Malasartes, no Rio de Janeiro, que existe até hoje. “Um dia, quis dar um livro a uma sobrinha que fazia aniversário. Fui a livrarias e não achei um único livro infantil que me agradasse. Percebi que estava faltando uma livraria especializada.” Ficou no negócio por 18 anos. Mas nunca parou de escrever. Hoje, Ana Maria Machado é, além de atual presidente da Academia Brasileira de Letras, integrante da casa (ocupa a cadeira número 1) desde 2003 – e, assim como as fábulas que inventa, virou imortal. Mas desdenha da qualidade: “A ideia de mortalidade nunca esteve tão presente no cotidiano depois que entrei para a ABL”. Ela é a segunda mulher a presidir a instituição – a primeira foi Nélida Piñon. Mas, para ela, isso não importa. “Não há nada de significativo no desempenho do cargo pelo simples fato de que a presidente é uma mulher”, encerra o assunto.
Só que ser presidente de uma instituição com 115 anos de história dá certo trabalho. Por isso, no momento, Ana divide seu tempo entre administrar a ABL, tomar chá com os colegas e acompanhar de perto o relançamento de 20 livros seus pela Editora Alfaguara – a maior parte fora do catálogo. Para o público adulto, serão nove reedições, duas delas já nas livrarias – Tropical Sol da Liberdade (1988) e Alice e Ulisses (1983) – e 11 destinadas ao público infanto-juvenil.
A detentora do prêmio Hans Christian Andersen, o Nobel das Letras Infantis, entre outros importantes – Machado de Assis, dado pela Academia Brasileira de Letras pelo conjunto da obra; Jabuti, com História Meio ao Contrário, só para citar alguns –, curiosamente diz não entender de crianças. “Nunca estudei psicologia nem pedagogia e todo meu contato com criança se resume ao convívio com as da família.” Ana é mãe de Rodrigo, Pedro e Luisa, filhos de seus dois casamentos, e avó de Isadora e Henrique. Nessa conversa com a Brasileiros, que aconteceu em dois momentos, ela fala de sua convivência com outros escritores da ABL e, especialmente, de literatura. Certa hora, pede desculpas sinceras para falar o que lhe convém.
Brasileiros – Como a Associação Brasileira de Letras, a ABL, se mantém?
Ana Maria Machado – Graças ao aluguel de um patrimônio imobiliário constituído ou deixado em herança por acadêmicos que nos precederam e por benfeitores que quiseram nos ajudar, como o editor e livreiro Francisco Alves. Temos a obrigação de zelar por esse patrimônio e todos os colegas são muito gentis, polidos e cavalheiros. Uma das alegrias de nossa convivência na ABL é a certeza de estarmos lidando com gente muito educada e agradável.
Brasileiros – Sempre que se fala em ABL, vem logo a ideia de imortalidade, algo que tem funcionado como uma marca da instituição. Como vocês, membros da casa, lidam com essa ideia?
A.M. M. – Não posso responder pelos outros, mas lido com humor. Sabemos perfeitamente que, de imortais, não temos nada. Até mesmo por que a morte nos acompanha lá o tempo todo. Para entrarmos, precisa alguém ter morrido. Só saímos quando morremos. Estamos cercados pela memória dos mortos que nos precederam. Acho que, para mim, a ideia da mortalidade nunca esteve tão presente no cotidiano como depois que entrei para a ABL. No primeiro ano, fui a sete enterros de acadêmicos. Não dá para ficar impressionada com qualquer noção de imortalidade depois disso.
Brasileiros – Por que esse conceito de imortal foi adotado?
A.M.M. – Talvez venha do modelo da Academia Francesa, que serviu de guia para a nossa. Mas não faço a menor ideia. Nem de por que o adotaram nem de por que jornalistas gostam tanto dele.
Brasileiros – Como escritora, a senhora poderia definir imortalidade?
A.M.M. – Não tenho essa pretensão e isso não me preocupa. A vida me suga e eu quero aproveitá-la enquanto der. Detesto definições. Definitivo só a morte. Francamente, não tenho nenhuma obsessão com a imortalidade e acho a morte uma necessidade. Não há lugar no mundo para todas as pessoas ficarem por aí sobrando sem morrer. Acho que um dos males do mundo atual caminha para ser a superpopulação. Não quero ser imortal nem quero que ninguém seja, por mais que sinta muita saudade das pessoas amadas que perdi. A permanência da lembrança, a persistência da memória, como já disse o Dali, a eternidade da arte, a perenidade da literatura e da cultura é outra coisa, uma continuidade do espírito humano, necessária à espécie. De certo modo, aquilo que o poeta Keats disse de modo tão bonito: “A beleza é uma alegria para sempre”. Mas nada disso deve ser confundido com uma banalização do conceito de imortalidade associado à academia ou à atividade do escritor.
Brasileiros – Millôr Fernandes disse certa vez que as pessoas morrem quando a gente as apaga da memória. Essa é uma forma de imortalidade? Ou seja, somos imortais enquanto permanecemos na memória de quem nos ama?
A.M.M. – Acho uma ótima concepção. Lembrar, ter saudade, ainda é uma forma de ter por perto quem a gente ama, mas perdeu. Talvez o esquecimento é que seja a morte. Mas isso é uma ideia dos que sobrevivem, enquanto sobrevivem. Para quem morre não chega a ser um consolo.
Brasileiros – A senhora pensa que seus livros vão imortalizá-la?
A.M.M. – Escrever já envolve tanta coisa que nem sobra espaço/tempo para esse tipo de preocupação. As obras mais imortais e mais antigas que conhecemos não nasceram com esse propósito. Ou são de autores coletivos ou nem sabemos se foram mesmo escritas por algum indivíduo, como a Bíblia ou a Odisseia e a Ilíada ou, ainda, a obra de Shakespeare.
Brasileiros – Há exemplos na literatura brasileira que jamais deixarão de ser lidos e, portanto, serão eternos?
A.M.M. – Não faço previsões futuras e não acredito que exista esse tipo de coisa em termos gerais. Cada leitor é único. Detesto listas de leitura obrigatória, que eliminam as surpresas das descobertas individuais. Desculpe, mas por mais que me esforce realmente não consigo dar resposta a esse tipo de pergunta. Sei que não escapo à reprovação, mas não consigo. Posso sair pela tangente e citar três, mas sem a menor convicção de que serão lidos, apenas porque eu gosto tanto que torço para que permaneçam: Poesias, de Carlos Drummond de Andrade; Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa; e, talvez, Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Pronto!
Brasileiros – Conhece algum conceito, algo mais próximo da utopia humana, de nunca morrer?
A.M.M. – O homem sempre inventou alguma coisa por aí, de lendas de ressurreição e sobrevida a ficção científica e especulações metafísicas. Lendo ou assistindo a filmes, conhecemos vários: zumbis, reencarnações, vidas passadas, etc.
Brasileiros – Como escritora infantil também, não lhe parece curioso que hoje as crianças não só não têm medo desses monstros como adoram ter bonecos assustadores e assistir a filmes de terror?
A.M.M. – Não entendo muito de criança e não tenho muita base para opinar. Nunca estudei psicologia nem pedagogia e todo meu contato com criança se resume ao convívio com as da família – que foram e são muitas, entre muitos irmãos, primos, filhos, sobrinhos, netos, sobrinhos-netos. Então, a partir dessa amostra numerosa, mas pouco variada, é que posso falar. E o que vi e vejo é que não dá para generalizar. Acho que sempre muitas crianças gostaram muito desses temas, sem medo algum. Outras, não. Uma das minhas sobrinhas, por exemplo, sempre adorou reunir amigos em casa para varar a noite vendo filmes de terror em vídeo. Dava festas às sextas-feiras 13. Da minha parte, nunca na vida tive a menor vontade de entrar em um cinema para ver um filme de terror (aliás, acho que nunca assisti a nenhum) e sempre mudei de canal quando surgia algum (ou saía da sala, se outras pessoas fossem ver). Ia ler, achava pura perda de tempo. Acho que são gostos individuais, diferentes. Mas não acho que seja um fenômeno contemporâneo. Minha avó, às vezes, contava histórias de alma do outro mundo – que muitos de meus primos adoravam ouvir e eu detestava, saía de perto. Vai ver, tinha tanto medo que não aguentava.
Brasileiros – Então, terror não é um gênero de sua predileção.
A.M.M. – Nem terror nem ficção científica nunca. Vi e li muito pouco nessa área, embora adore histórias policiais e de aventuras. Mas gostei muito de alguns, que não sei se podem ser considerados, a rigor, exemplos desses gêneros. No caso do terror, contos do Edgar Allan Poe, ou O Médico e o Monstro. Mas não li Drácula, Frankenstein nem vampiros de qualquer tipo nem nenhum dos modernos. Dostoiévski já me aterrorizava suficientemente. Não dá tempo de ler tudo o que me atrai. Então, não vou perder tempo com o que não me deixa curiosa nem me faz a menor falta.
Brasileiros – Seus livros são densos e cuidadosamente elaborados do ponto de vista técnico, o que define seu estilo. Essa percepção é correta?
A.M.M. – Corretíssima. Escrever, para mim, é simultaneamente algo muito sério e prazeroso. Procuro fazer o melhor que consigo – e o faço com satisfação. Sou muito exigente comigo mesma ao escrever. Mas isso não me faz sofrer nem me angustia, porque sei que estou em busca de algo que, como leitora, gostaria de encontrar em um livro. E isso me fascina.
Brasileiros – A senhora é aquele tipo de autor que abandona um livro para sempre ou retoma a obra depois, quando fica mais claro na sua cabeça?
A.M.M. – Dos que leio, às vezes, abandono e tento voltar. Já aconteceu até de, anos depois, um livro que abandonei por não conseguir levar adiante acabar se tornando um de meus favoritos, em sucessivas releituras – O Velho e o Mar, de Hemingway. Na adolescência, eu o achei intransponível. Aos 20 anos, apaixonei-me perdidamente por ele e estou sempre relendo, acho admirável. Mas na minha escrita, acho que já aconteceu algumas vezes de eu abandonar um livro porque gorou. Umas duas ou três vezes, sempre porque falei neles enquanto escrevia e aprendi a nunca mais fazer isso. Mas não me lembro de jamais ter tentado retomar ou tido vontade. Perdeu, está perdido, a gente não tem de forçar. Se for o caso, um dia volta sozinho, eu pensava. Mas acho que não voltaram. Pelo menos, ainda. E já me aconteceu de ter escrito algo que eu não sabia o que era e só mais tarde ter visto que aquele texto fazia sentido como parte de outro que eu só estava vindo a escrever muito depois. Aí, foi só colar. Mas não precisei mexer em nada. Simplesmente, já estava escrito para o novo livro. Até o personagem do que eu achava que era um conto solto tinha o mesmo nome do romance, e eu tinha esquecido. Era justamente o final do livro. Mistérios do inconsciente.
Brasileiros – Como a senhora produz seus romances? Nascem de uma ideia sem um final definido ou existe começo, meio e fim antes do início?
A.M.M. – Cada livro é diferente do outro, não dá para generalizar. Mas, em geral, nascem de algumas ideias que vão se juntando, sem um final definido, apenas uma noção de para onde caminham. Mas só começam a ser escritos mesmo quando descubro a estrutura única que aquela narrativa vai ter. A partir daí, o trabalho vai fazendo que o romance aflore, que a história venha à superfície por meio do que os personagens vão fazendo, da única maneira que imagino possível.
Brasileiros – De seus romances adultos, Alice e Ulisses, que acaba de ser relançado, é o mais curto, com diálogos e períodos breves. Tem algo de mais pessoal nessa história entre um homem e uma mulher?
A.M.M. – Todo livro tem algo pessoal e algo inventado, numa mistura de memória, observação, imaginação, em doses variadas. Mas se eu quisesse contar um episódio biográfico pessoal teria contado, não? Feito uma reportagem ou um livro de depoimento ou memórias. Não ia disfarçar em um romance para, de repente, revelar algum segredo. Sobretudo, por que não tem a menor importância. Eu escrevo o que imagino a partir do que vi e vivi, como a maioria dos romancistas. Dostoiévski não precisou assassinar ninguém para escrever Crime e Castigo, nem Kafka virou inseto para escrever A Metamorfose. Quem tem compromisso com os fatos é jornalista, não romancista.
Brasileiros – Tropical Sol da Liberdade é considerado um dos mais importantes romances políticos da literatura contemporânea, já que faz um relato das desventuras políticas da juventude brasileira pós-64. Foi um livro planejado?
A.M.M. – Foi uma ideia com a qual convivi muito antes de escrever o livro: as relações entre mãe e filha. Ao começar a escrever, a política entrou nele e o dominou. Mas não é nenhum acerto de contas, é uma elaboração da memória. Uma espécie de romance de formação feminina, talvez, segundo me disseram, uma vez. Quando comecei a escrever, minha mãe estava muito doente e fui morar ao lado dela, na praia. Sabia que um dia desejava escrever sobre a presença materna na vida de uma mulher. E percebi que, se não pudesse escrever ainda a tempo de que ela lesse, sempre me sentiria de alguma forma um pouco desleal com ela, quase como se estivesse falando dela pelas costas. Então, me apressei, já estávamos mesmo tendo um convívio muito intenso, precisava lembrar, pensar, escrever. Comecei pela casa, passei para as duas, acabei falando da história da minha geração frente a outras mães. Eu vinha observando e pensando no assunto havia muito tempo, tinha uma fantástica coleção de mães e filhas na memória e no repertório (o livro é dedicado a muitas delas), com a certeza de que, para nós, mais que uma paisagem, o Brasil era um momento histórico. Daí ter saído um livro tão político. Aquilo vinha sendo ruminado havia uns 20 anos. A primeira versão acabou sendo escrita em pouco mais de um ano. Minha mãe gostou muito, se emocionou e chegou a ver o livro publicado. E abençoado por ela.
Brasileiros – É mais difícil escrever para adultos ou crianças?
A.M.M. – Cada um tem suas dificuldades próprias. Talvez para crianças seja mais difícil, para conseguir acertar o tom do uso estético da linguagem e explorar as intertextualidades em uma obra dirigida a um público de repertório cultural menos extenso. Mas muitas vezes escrever para adultos implica enfrentar uma complexidade maior em uma obra mais extensa.
Brasileiros – O que um bom livro infantil precisa ter?
A.M.M. – O mesmo que um bom livro para adultos: qualidade suficiente para que dê ao leitor vontade para continuar lendo e para que, ao final, ele seja transformado de alguma forma. E para permitir que leitores diferentes nele encontrem surpresas diferentes. E que o mesmo leitor em releituras descubra outros aspectos em que não tinha reparado.
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