Sensualidade, autoestima e ativismo sócio-político

A estilita paulistana Marcita, criadora, ao lado da mãe, Margarida, e da irmã, Verôica, da marca de lingeries exclusivas À Dor Amores (foto: divulgação)

 

O texto que abre o convite para o desfile intitulado Ventre Livre da À Dor Amores, confecção paulistana de lingeries exclusivas, não deixa dúvidas sobre a possibilidade de coexistência dos três elementos que intitulam essa reportagem: “Ser mulher numa sociedade patriarcal. Tornar-se dona do seu corpo e dos seus desejos. Ser livre para decidir e ser feliz. À Dor Amores nasceu por isso. Pelo direito de ser na sua integridade, esse desfile será uma homenagem à todas as mulheres que tomaram as rédeas do seu destino”, diz o programa do evento que será realizado amanhã, 06 de junho, na Casa da Luz, espaço recém-aberto nas cercanias da secular estação de trem de mesmo nome (confira a programação do evento). O nome À Dor Amores – para a dor: amores – também assume o aspecto de carta de intenções da marca. Criada em 2002 pela costureira Margarida e as filhas Marcita e Verônica, a confecção de calcinhas, soutiens, cintas-ligas, hot pants, bodies, meias e luvas exclusivas surgiu por acaso, com as primeiras experiências de costura de Marcita.

Na adolescência, a estilista sentia-se deslocada dos padrões estabelecidos de beleza feminina e encontrou no ofício praticado pela mãe, desde os 15 anos, um antídoto para a essa suposta normatividade que, desde cedo, procurou questionar. “Por volta de 2000, eu comecei a criar meias para mim e as pessoas passaram a fazer pedidos. Foi isso que me levou ao universo da lingerie. Não foi uma coisa que eu planejei. Eu não me achava uma mulher sexy, pelo contrário, era muito gordinha e bem tímida. Desenvolver esse trabalho acabou sendo também um encontro comigo. A À dor amores fez com que eu também desabrochasse como mulher”, diz Marcita.

Das meias para o começo da produção artesanal de peças que hoje são objeto de desejo feminino tudo se resolveu em casa, com o apoio da mãe e da irmã do meio, Verônica (a caçula, Camila, também colabora para a marca). “Mamãe tinha o ateliê com uma boa estrutura, achou que esse era um caminho legal para seguirmos e decidimos somar forças para, juntas, começarmos a marca. A Verônica, que é artista plástica (conheça o trabalho de V, codinome da artista), é uma das grandes criadoras da À Dor Amores, porque ela desenvolveu todo o projeto visual e trouxe essa coisa muito sexy para as criações.”

Sensualidade e autoestima a postos, o elemento de conscientização sócio-política inerente à marca também foi algo que veio do núcleo familiar: “Uma das coisas que a gente sempre procurou fazer foi tratar a À Dor Amores como uma arma de comunicação. Desde o começo a gente usou nossas criações para expor posições críticas. Meu pai, Marco Ferrari, que morreu no ano passado, era argentino, sempre foi um rebelde e defendia esse pensamento crítico. Crescemos com isso dentro de casa. Ele veio parar no Brasil durante uma viagem, era um homem livre, e decidiu ficar por aqui porque a ditadura em seu país estava pesadíssima. Ele era médico e escreveu um livro não publicado, chamado Tesão Recolhido, que tratava de questões femininas como o direito ao aborto. No começo, as pessoas não entendiam nada e perguntavam ‘mas o que isso tem a ver com as lingeries?’. Para nós fazia todo sentido, pois esse olhar crítico sempre fez parte da nossa vida, da nossa formação. As pessoas tem o costume de pensar em política como uma coisa restrita à Câmara, ao Congresso, aos deputados, ao prefeito, ao governador e ao presidente do País, mas a gente acha que a discussão política também pertence a outras esferas e sempre tivemos essa conduta de usar a À Dor Amores como um meio de comunicar sobre questões sociais importantes.”

O desfile de amanhã, que também vai tratar de temas como aborto e redução da maioridade contrária (claro, elas são contrárias à medida) retoma um ciclo. Com o agravamento da saúde do patriarca, Marcita, Margarida e Verônica suspenderam temporariamente a produção das lingeries, atendendo a pedidos esporádicos. Nesse interim, Marcita criou uma nova confecção, com produção menos complexa, a Tropicalwear, destinada ao público masculino (conheça as criações). Em 2014, Verônica, que participará do evento com depoimentos sobre as questões pautadas para o encontro, decidiu priorizar sua carreira de artista visual e a confecção passou a ser conduzida por Marcita e a mãe Margarida. “Em 2013, fizemos nossa última ação em conjunto, o vídeo das bicicletas (veja abaixo), e depois veio o problema de saúde do meu pai. Foi um longo processo e comecei a fazer a Tropicalwear. Houve esse intervalo, mas a À Dor Amores sempre teve vida própria. Por mais que a gente não faça nada as pessoas nos procuram com novos pedidos e a gente queria marcar essa volta com algo especial.”

Com exemplares que chegam ao máximo às cem réplicas, a À Dor Amores teve por um breve período uma loja na Rua Augusta, no entanto, realiza hoje suas vendas por meio virtual e em bazares e eventos mensais organizados por Marcita (siga a página da confecção para acompanhar a programação). “Tivemos uma loja física por dois anos e meio e fechamos as portas no começo de 2013. Nenhuma de nós é administradora e manter uma estrutura física era uma coisa complexa. Recuamos até porque não havia como manter um volume de produção que atendesse as demandas da loja e concluímos que seria bem melhor fazermos delivery e esses encontros mensais.”  

Nesses 12 anos de existência da À Dor Amores, Marcita garante que a marca conseguiu consolidar uma fidelidade de público que vai além da questão de identidade com a marca: “A gente recebe muitos testemunhos das clientes, de como elas se transformaram, da mesma forma que eu me transformei. Acho que esse é um dos segredos, porque sempre fomos muito verdadeiras. Claro, a gente pensa no nosso sustento, mas não abrimos mão de certas coisas. Por exemplo, jamais faríamos como algumas confecções que, para assegurar uma produção em larga escala, mantém os funcionários trabalhando num porão, ganhando uma miséria. Não pretendo ganhar dinheiro por meio da exploração alheia. Isso não faz parte do meu projeto de vida. Quero continuar fazendo o que eu gosto e, dentro dessa simplicidade, ensinar meu ofício para outras pessoas. Criamos algo que a gente acha que todas as mulheres do mundo tem o direito de usar. Mulheres de 15 a 90 anos. Quando a mulher veste uma lingerie À Dor amores, nosso desejo é que antes de querer seduzir o outro ela se olhe no espelho e diga ‘como estou gostosa, como meu corpo ficou valorizado’. São coisas assim que fazem parte da nossa identidade”, conclui ela.


Comentários

Uma resposta para “Sensualidade, autoestima e ativismo sócio-político”

  1. Avatar de Bruna Lopes
    Bruna Lopes

    Muito Orgulho mis hermanas! Foi lindooooo….♥

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