Qualquer que seja seu desfecho, o levante da multidão é um terremoto que faz ruir, ao mesmo tempo, os prédios governamentais da esquerda que está no poder e os palácios decadentes das ideologias. Fica a pergunta: a esquerda é reformável? Como militar pela esquerda diante do fato que suas categorias (seja ela “a classe operária” ou a “Nova Classe Média”) e suas formas (as bandeiras, os partidos, os sindicatos, as ONGs patrocinadas) são ultrapassadas?
Depois das agressões às bandeiras de partidos, no último dia 20 de junho, toda a esquerda entrou em uma postura reativa: “se as manifestações não gostam de nossas bandeiras, elas são de direita ou são massa manipulada pela direita”.
A extrema esquerda se junta aos oportunistas encastelados nos governos. Aqueles que tinham esquecido as bandeiras e as usavam apenas para limpar as mãos sujas nas coalizões espúrias, passaram a fazer do uso delas uma questão de “honra”.
Já os que faziam oposição pela esquerda não conseguem ver que o problema das bandeiras é exatamente o… problema das bandeiras: a luta não é por ideais (as tais bandeiras). A mobilização deve ser, agora, multitudinária, sua polifonia, espontânea e auto-organizada, bem como a ausência de linha, organicidade e liderança; estas, são as maiores bandeiras que um militante pode carregar! Insistir em impor a “Luta das Bandeiras” a um movimento que tem a luta como bandeira foi um erro político até aquele recente 20 de junho. Hoje, pode ser uma grave irresponsabilidade: deixar esse espaço aberto justamente àquela direta, que avança usando apenas o verde e o amarelo.
A questão é inventar uma nova antropofagia política, um novo “pau-Brasil”, como Oswald de Andrade soube fazer nos anos 1920. A poeira dos escombros e a fumaça dos gases lacrimogênio ainda não baixou, mas já dá para ver um novo horizonte. Apesar dos perigos, este é o horizonte do possível. E ser de esquerda é sobretudo ter coragem, política e até ontológica, de mergulhar no possível.
* Cientista Político, doutor em História Social pela Université de Paris I (Pantheon-Sorbonnee), e professor-titular da UFRJ. Publicou pela editora Record, em 2009, o livro MundoBraz – O Devir-Brazil do Mundo e o Devir-Mundo do Brasil
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