Sereias também amam

Tudo ia muito bem na Floresta Icamiaba, nas profundezas do Rio Tocantins. As sereias mais velhas cuidavam das recém-nascidas e da educação das mais jovens. Aquelas que estavam em período fértil, contavam as horas para subir à superfície e atrair suas novas vítimas – caboclos e pescadores que seriam, literalmente, usados para procriá-las e depois, sem dó nem piedade, descartados e afogados. Como deveriam ser todos os homens, segundo elas. Assim viviam em harmonia plena essas criaturas descendentes de mulheres que outrora sofreram com a opressão masculina e decidiram submergir nas águas do rio, fugindo da dor e do sofrimento causados pelo amor. Elas fazem parte da Nação Icamiaba. Sempre conduzidas pela sabedoria da “matriarca” Iara, responsável por manter a linhagem e dar continuidade às tradições de seu povo.

Ia tudo muito bem, até a noite em que Kiandra, uma sereia jovem – só havia parido três vezes -, que mais uma noite saiu para encantar outro homem, deparou-se com o negro Oxum, um escravo fugitivo em busca da sua terra prometida, os quilombos. Inebriada pela cor de sua pele e a aparência de seus cabelos, diferentes das dos outros caboclos, Kiandra apaixonou-se perdidamente e, a partir de então, passou a questionar as regras das Icamiabas. Entregue a esse amor proibido, ela enfrentou suas origens e abandonou um mundo seguro, sua família e amigas para perseguir um sonho. Por essa decisão, ela perdeu a cauda e ficou proibida de retornar ao seu povo.
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Através de uma lenda amazônica, e em um cenário feminino até sua última extensão, a antropóloga paulistana Deborah Goldemberg decidiu em seu primeiro livro, Ressurgência Icamiaba, da editora Demônio Negro, falar de um assunto universal: o amor, com todas as suas consequências, contradições e desafios. “Essa lenda amazônica me fascinou. Ela é muito atual. Nós, mulheres, somos cada vez mais independentes, moramos sozinhas, somos mães solteiras por opção. Acho que estamos nos tornando uma nação de Icamiabas”, diz. Para Deborah, Kiandra é a síntese de toda mulher, que, apesar de suas convicções feministas, ou femininas, busca o amor, independentemente da forma. “Nesse caso, talvez pela minha visão antropológica, vi uma maneira de falar também de esperança, através de um romance multicultural”, afirma a autora, que define seu trabalho como literatura transbrasileira.

Formada pela London School of Economics, ela atuou na área de desenvolvimento sustentável na ONU e no Banco Mundial, até se embrenhar na Amazônia, onde trabalhou com antropologia aplicada em projetos de desenvolvimento comunitário. Foi durante essa experiência que Deborah teve a ideia do livro, sua primeira novela, depois de já ter publicado crônicas, poemas e artigos em coletâneas. “Passei dez dias descendo o Rio Tapajós em um barco para pesquisar a linguagem local, a mata, a cor, o cheiro local. Foi incrível”, diz. Atuante no movimento literário paulistano – foi curadora do I Sarau das Poéticas Indígenas da Casa das Rosas, que aconteceu em abril passado -, ela prepara para breve outro livro, desta vez tendo o Mato Grosso como cenário. Enquanto isso, é possível acompanhar seu trabalho – e trechos de seus trabalhos – no blog ressurgenciaicamiaba.blogspot.com.


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