Sertão, a forte palavra

Neste texto pretendo trabalhar diferentes acepções da palavra “sertão” no livro, que desde o título o coloca como grande, associado às veredas, águas rasas, discretas, silenciosas, com carreiras, belíssimas, de buritis repondo também a dimensão do caminho estreito, referência sutil de rumo, oásis nas
regiões e nos tempos mais secos dos gerais, do cerrado, da caatinga. O meu desejo inicial era trabalhar o variável significado da palavra sertão nos níveis do romance, da geografia, da história e da política brasileiras e das questões filosóficas. Não foi possível em face das características da obra. Essas dimensões, e tantas mais, são indissociáveis no livro e os volteios do narrador vão amarrando pela memória as diferentes pontas do sertão, embora Riobaldo achasse que elas “nem não misturam”. Mas são astúcias rosianas… “A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância.”

Como Riobaldo é um narrador que vai alterando os assuntos, fica difícil, se não impossível, um acompanhamento temático, sistêmico, linear da sua fala que vai acompanhando os fluxos da memória, das reflexões, das dúvidas, do inconsciente. Melhor, então, é acompanhá-lo na sua aventura e relação com a palavra emergente, crescente sertão.

O cenário inaugural do Grande Sertão: Veredas onde se desenvolvem os acontecimentos vividos e narrados por Riobaldo Tatarana é uma realidade muito nossa, profundamente brasileira, e tem como referência fundamental o Rio São Francisco, que de “tão grande se compadece”, símbolo e expressão concreta da unidade nacional. O espaço territorial, tão bem mapeado por Alan Viggiano no seu livro Itinerário de Riobaldo Tatarana, é uma região que compreende o centro-norte de Minas, integrando, além do São Francisco, o Vale do Jequitinhonha, o sul da Bahia e o centro-leste de Goiás e Tocantins, incluindo os terrenos do Planalto Central sobre os quais se ergueu a capital do Brasil. Essa região forma um magnífico ecossistema, hoje muito machucado, exaurido e seriamente ameaçado de extinção: o cerrado. E forma, também, o pano de fundo do romance.

Já na primeira página, o autor, sempre se confundindo com o seu esplêndido personagem e narrador, contextualiza o sertão em termos geográficos e de espaços vazios, não ocupados, territórios confusos e difusos como sempre foi o complexo e não resolvido tema da ocupação de terra no Brasil. Explicita ainda a ausência total do Estado e da lei: “O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que
situado sertão é para os campos gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então, aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade”.

Feita essa apresentação aparentemente descritiva do sertão, eis que ele ganha novas proporções. Transcende as áreas externas e internas. A palavra sertão abre largo. Expressa todos, os mais diferentes territórios, visíveis ou sentidos, pressentidos, intuídos. “O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho (…) O sertão está em toda a parte.”

Guimarães Rosa apresenta, assim, o sertão sob os mais diferentes enfoques e sentidos. Primeiro, como vimos, o território não demarcado, mas real, existente, herdeiro direto das capitanias hereditárias, das sesmarias, do latifúndio, do coronelismo. É o lugar de onde veio, nas palavras insuspeitas de Francisco Adolfo Varnhagen no primeiro volume da História Geral do Brasil, “a mania de muita terra (que) acompanhou sempre pelo tempo adiante os sesmeiros, e acompanha ainda os nossos fazendeiros, que se regalam em ter matos e campos em tal extensão que levam dias a percorrer-se, bem que às vezes só a décima parte esteja aproveitada, mas se tivesse havido alguma resistência em dar o mais, não faltaria quem se apresentando a buscar o menos”.

A partir dessas vastas extensões improdutivas, o autor, sempre pelo discurso instigante de Riobaldo, vincula o sertão à dimensão existencial das pessoas e das comunidades e transborda o sertão para o Brasil, o mundo, os campos mais alargados da metafísica e do mistério.

Ao fazer a apresentação desse espaço geográfico indiviso, sem a presença da autoridade democrática e coesionadora do Estado, o autor apresenta uma realidade sociopolítica-espacial que durante anos ficou obscurecida em sua obra. Foi quase sempre considerado um escritor apolítico e indiferente aos grandes temas e desafios da sociedade brasileira. Leituras mais atentas desfazem essa imagem, como a da professora Heloisa Starling, no seu notável Lembranças do Brasil – Teoria Política, História e Ficção em Guimarães Rosa. Nesse livro, a professora projeta luzes preciosas e ajuda a tornar visível essa recôndita mas preciosa faceta da obra rosiana, que vem a ser sua refinada compreensão da história, da política e da precária e injusta organização social do Brasil. O sertão é também a terra onde prevalece a concepção hobbesiana do estado de natureza, situação constante de insegurança e de guerra, anterior ao pacto social que funda o Estado. É ainda, como nos mostra Heloísa Starling, o lugar do conflito que não encontrou espaços institucionais para ser processado dentro dos parâmetros normatizadores da lei, do diálogo e da negociação. A ausência da lei, palavra que tanto fascinava Zé Bebelo, torna o sertão espaço da violência: “Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é o mais forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado”.

Zé Bebelo, querendo impor a lei ao seu modo e promover o progresso, buscando, intuitivo e apressado, os contornos, ainda que primários, de um projeto nacional, vincula o sertão às dimensões do Brasil, ao confrontar os “que desonram o nome da Pátria e este sertão nacional”. O sertão se mostra como espaço da política e metáfora do Brasil.

No discurso que faz em sua defesa quando do seu julgamento – um dos momentos mais sublimes do livro – após ser vencido por Joca Ramiro e seus comandados, Zé Bebelo explicita com mais nitidez sua visão política a partir do sertão e da sua dialética sertaneja. O que ele quer é apoderar-se (superar a barbárie, normatizar, levar a presença civilizadora do Estado imbuído de suas responsabilidades sociais, das instituições, serviços e equipamentos públicos) e sair do sertão depois de cumprida a missão integradora, a presença da lei:

“coisa que eu queria era proclamar outro governo, mas com a ajuda, depois, de vós, também. Estou vendo que a gente só brigou por um mal-entendido, maximé. Não obedeço ordens de chefes políticos. Se eu alcançasse, entrava para a política, mas pedia ao grande Joca Ramiro que encaminhasse seus brabos cabras para votarem em mim, para deputado… Ah, este Norte em remanência: progresso forte, fartura para todos, a alegria nacional (…) A gente tem de sair do sertão. Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro…”.

Zé Bebelo quer melhorar o Brasil, tem anseios e sentimentos intuitivos de justiça e desenvolvimento: “o que imponho é se educar e socorrer as infâncias deste sertão”. Mas quer uma modernização conservadora, dentro dos marcos do velho coronelismo, com os votos encabrestados dos cabras comandados por chefes como Joca Ramiro.

A crítica social, o olhar atento sobre as multidões de excluídos e vitimizados, sempre espreita na fala no narrador: “Porque, num estado de tempo, já tinham surgido vindo milhares desses, para pedir cura, os doentes condenados: lázaros de lepra, aleijados por horríveis formas, feridentos, os cegos mais sem gestos, loucos acorrentados, idiotas, héticos e hidrópicos, de tudo: criaturas que fediam. Senhor enxergasse aquilo, o senhor desanimava (…) O sertão está cheio desses. Só quando se jornadeia de jagunço, no teso das marchas, praxe de ir em movimento, não se nota tanto: o estatuto das misérias e enfermidades”.

Mas as referências políticas e sociais da obra, por mais notáveis que sejam, não se reduzem a si mesmas e o livro tornou-se clássico, definitivo, universal. Sendo profundamente brasileiro, adota uma linguagem que força a cada momento os limites do cânon e transcende, no conteúdo, o tempo e o espaço na prospecção de temas e sentimentos permanentes, quase sempre não resolvidos. E aí, nessa conexão entre o particular, o situado e o universal, é que a palavra sertão emerge com grande força no quadro de uma obra que tem ainda a reforçá-la a singular cultura de seu autor. Guimarães Rosa sabia muito.

Dizer que o sertão está em toda parte é atribuir ao termo diferentes variações semânticas, é dar a essa palavra uma expansão que vai de áreas territoriais conflituosas aos espaços mais recolhidos da mente, do coração, da memória, do inconsciente, da imaginação, tudo aquilo que nos leva às perguntas permanentes em torno do mistério da nossa existência, individual e coletiva, dos seus limites.

Ainda nessa perspectiva material, o sertão como espaço físico, cabe registrar a integração entre o lugar e a pessoa que o habita e conhece. Assim como o sertão com as suas condições climáticas, a sua topografia, a sua aridez e vastidão, a relação entre os proprietários e os agregados, vaqueiros, jagunços, trabalhadores braçais, modula o homem como nos ensinou Euclides da Cunha n’Os Sertões, obra precursora e anunciadora do Grande Sertão: Veredas.

Aqui também o homem se impõe e projeta o seu pensamento e a ação sobre o meio em que vive. Leitor atento, dentre outras correntes filosóficas e espirituais, de Platão – o princípio da idéia – e da tradição cristã – no princípio era o verbo -, Guimarães Rosa acreditava que “… toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pensada, dada ou guardada, que vai rompendo rumo”. Mas o homem e sua palavra não estão dissociados do lugar, das condições materiais, embora possam transcendê-los: “Sertão sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso…”.

O sertão é espaço de disputas primitivas, ainda no estágio anterior ao Estado, pré-civilizatório do ponto de vista das instituições políticas e jurídicas, dos direitos e deveres da nacionalidade e da cidadania. Mas ao mesmo tempo já é, por outro lado, o lugar das idéias, das palavras, das mais altas reflexões e indagações existenciais e humanas que vão emergindo com a expansão da consciência, a construção do ser.

Vivendo o seu entardecer, o seu “despoder”, depois de ter sido o professor e jagunço Riobaldo, o Tatarana, o Urutu-Branco, o grande personagem rosiano reconhece que o sertão mudou (o Estado apareceu pelo menos mandando polícia para acabar com o jaguncismo e abrir algumas estradas). No entanto, continua sendo território imenso, indiviso, regiões distantes. Sertão como o lugar do deserto, no livro simbolizado no Liso do Suçuarão – onde se deram tantas e tão profundas conversões e vivências espirituais -, do silêncio, da quebra das comunicações, da ruptura com o mundo que não incorporou o sertão. “Mas o senhor sério tenciona devassar a raso este mar de territórios, para sentimento de conferir o que existe? (…) Sertão: estes seus vazios (…) Pediram notícias do sertão (…) o sertão nunca dá notícia”.

O distante, próximo sertão é, ainda, o lugar da fragilidade e da alegria: “O sertão tem medo de tudo (…) No sertão, até enterro simples é festa”. Nele, sempre presente a dualidade razão/loucura, pois que o sertão tem outros padrões próprios de racionalidade: “Ah, mas, no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo”. Uma fala bem enquadrada na escola de Erasmo de Roterdã e de Montaigne.

O mundo rosiano navega, como registramos, em muitas sabedorias, bibliotecas e culturas. Vai da tradição socrática, de Platão, de Aristóteles, de Plotino, a variadas vertentes da tradição cristã, portanto, boas raízes metafísicas; mas nunca traça rumo à certeza absoluta, sectária, fechada. Fica sempre o lugar da dúvida, das sombras, dos enigmas, dos entretons – “O que foi? O que é?”. “Jagunços em situação” é puro Heidegger e, com ele, a tradição do existencialismo, do ser aí. Outras tradições espirituais, como o budismo, marcam presença no vasto romance: “É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é…”.

No roteiro não-linear do Grande Sertão: Veredas, Riobaldo retoma, quando fala do seu primeiro encontro com Diadorim – o Menino -, o sertão como lugar da violência: “Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde o homem tem de ter a dura nuca e a mão quadrada”.

Logo Riobaldo repõe o sertão no campo das palavras germinais e expansivas. Sertão agora como metáfora da vida com suas alternâncias de insegurança e paz, obscuridade e discernimento: “Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo…”.

Nos giros memorialísticos de Riobaldo, o sertão torna-se o lugar da dúvida, do não-sabido, “onde o oculto do mistério se escondeu”, como diria Caetano Veloso. Riobaldo não está contando a história de “uma vida de sertanejo, seja se for jagunço (…) Jagunço é o sertão. O senhor pergunte quem foi que foi que foi o jagunço Riobaldo?”. Riobaldo é um sofisticado narrador que fala sobre a beleza e o enigma das coisas, a matéria vertente, e sabe “onde é bobice a qualquer resposta, é aí que a pergunta se pergunta”.

Essa busca do saber, do lado não revelado das coisas, dos desvãos das situações, das pessoas e da memória, essa inquietação socrática do não-saber, encontra no sertão a sua plenitude: “Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas. Veredazinhas”.

O sertão incorpora mitos e místicos dos mais variados cantos do Brasil e do mundo. Os mitos e os arquétipos estão visíveis na figura inatingível, quase sobrenatural, de Joca Ramiro ou do próprio Medeiro Vaz. Isso sem falar na personalidade indecifrável de Diadorim. Acrescem aos mitos as introspecções e manifestações religiosas, enriquecidas com as prospecções do inconsciente. O mundo das coisas esquecidas, confusas, mutantes, ensombreadas. Riobaldo narra para recuperar os fragmentos, as reminiscências, os desejos. O sertão torna-se o sem-lugar e todos os lugares na refrega existencial de cada um. O sertão está dentro e está fora, é o emergente, é a surpresa e o não-previsto: “Sertão sempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera (…). Agora o mundo quer ficar sem sertão. (…) se melhor não seja que tivesse de sair nunca do sertão”.

Ao mesmo tempo em que o sertão deve sair da condição de território bruto, sem lei, das paixões não-sabidas, e abrir-se às possibilidades dos conceitos, do conhecimento, da reflexão, da sabedoria e do acertado convívio social – ideal civilizatório de Riobaldo -, o sertão não pode por outro lado tornar-se um mero conceito, espaço triste, desencantado, por demais racionalizado. Há que se preservar o mistério e a grandeza do sertão, um pouco de boas doideiras! Um mundo sem sertão é um mundo empobrecido, previsível, sem lembranças que se fazem presentes, é o “desencantamento do mundo”, para usar a conhecida expressão de Max Weber. A essa concepção desencarnada, burocratizada da vida, Guimarães Rosa contrapunha a sua, esperançosa, sertaneja, sempre viva, “que a miúdo viça e enfeita”. “O mundo é mágico.”

A dimensão espiritual da obra de Guimarães Rosa tem sido objeto de importantes estudos. Deus e o diabo são referências permanentes. Afinal, a obra se insere na tradição fáustica de Goethe e Thomas Mann. Heloisa de Araújo Vilhena escreveu O Itinerário de Deus, obra de muita erudição e fina sensibilidade. Aqui nos interessa particularmente a associação que o autor faz entre Nossa Senhora e o mar. O mar, que nos termos da narrativa Riobaldo nunca viu, era sem fim. Como eram sem fim o sertão e os poderes de Nossa Senhora: “E da existência desse (do demônio) me defendo, em pedras pontiagudas ajoelhado, beijando a barra do manto de minha Nossa Senhora da Abadia. Ah, só ela me vale mas por um mar sem fim… Sertão (…) Digo isto ao senhor, e digo: paz”. Riobaldo invoca todas as Nossas Senhoras sertanejas. É um ecumênico, o sertão está em todos os credos.

O sertão continua forjando rumos, ampliando significados, indo e voltando, transcendendo o regional e a ele retornando para dar-lhe novos contornos na “luta renhida” e no encontro conflitivo e amoroso entre o homem e a terra, para lembrar mais uma vez a tríade euclidiana. O sertão emergindo nos crespos interiores dos humanos torna-se lembrança, memória, entra mais uma vez nos terreiros não medidos do inconsciente: “Os dias que são passados vão indo em fila para o sertão”.

Nas andanças pelos lugares onde se travam as batalhas e florescem sentimentos contraditórios, “nos arrancos do sertão”, Riobaldo vai fazendo, ao mesmo tempo, o percurso da guerra e de sua viagem interior. Integram-se o personagem, a natureza e o conflito. A extensão territorial é também a extensão interior de quem se deixa levar e ao mesmo tempo acolhe e elabora aquela imensidão, que se torna parte do seu ser: “O senhor sabe o mais que é, de se navegar sertão num rumo sem termo, amanhecendo cada manhã num pouso diferente, sem juízo de raiz? (…) Desde o raiar da aurora, o sertão ponteia. Os tamanhos”.

As fronteiras imaginárias dos territórios não demarcados, sejam do homem, sejam da terra, sejam dos campos da luta, são sempre variáveis. Retornam o tema e a presença de Deus numa abordagem mais imanente: “É nisto, que conto ao senhor, se vê o sertão do mundo. Que Deus existe, sim, devagarinho, depressa. Ele existe – mas que só por intermédio da ação das pessoas: de bons e maus. Coisas imensas do mundo. O grande sertão é a forte arma. Deus é um gatilho?”.

Numa obra das proporções do Grande Sertão: Veredas, não poderia faltar o tema da culpa, tão presente nos clássicos da tragédia grega, na tradição judaico-cristã e suas ramificações como o islamismo, o marxismo, a própria obra de Nietzsche. Encontra-se presente e elaborada na psicanálise, sobretudo, na vida e na obra monumental de Sigmund Freud. Riobaldo carrega culpas. A culpa do pacto; ele pode não ter ocorrido – “o diabo não há” -, mas Riobaldo se dispôs a fazê-lo. Viveu uma estranha e perigosa experiência. Transgrediu regras e limites humanos.

Culpa do amor – e que amor! – por Diadorim. Outras culpas: a relação com o pai, com Zé Bebelo. O sertão e a culpa se encontram: “tudo por culpa de quem? Dos malguardos do sertão”. Malguardos!

O sertão cresce como dimensão interior e existencial no encontro do homem com o seu pleno destino. A busca de Riobaldo de sua própria essência, vocação e liderança, o seu longo e complexo processo de formação no contexto de um espaço territorial desgovernado ganha novos focos e possibilidades quando Diadorim, amor e alter ego de Riobaldo, vai desvendando, na hora da crise, além das suas qualidades de guerreiro e exímio atirador já comprovadas, os crescentes sinais de liderança e chefia: “… de uns tempos, é meu pressentir: que você pode – mas encobre; que, quando você quiser calcar firme, com as estribeiras, a guerra varia de figura”. Riobaldo resiste: “eu era o contrário de um mandador”. Mas Diadorim tinha poderes.

Entre dúvidas e temores, começa a se firmar, estranho e contraditório, o futuro chefe, o Urutu-Branco, comandante dos “jagunços meus, os riobaldos”. Foi um processo. Riobaldo foi apalpando, sentindo as ebulições interiores, as condições do conflito que estavam vivendo, já então sob a liderança fragilizada, posta sob suspeita, de Zé Bebelo. Riobaldo vivia os seus momentos de espanto, momentos de sertão: “Rebulir com o sertão, como dono. Mas o sertão era para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; não era para à força se compor. Todos que malmontam no sertão só alcançam de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre debaixo da sela (…) Eu nunca tinha certeza de coisa nenhuma”. Exercer cargo de supremo comando e nunca ter certeza de coisa nenhuma são, de fato, coisas de difícil acerto. Se bem que, em épocas de tantas certezas vazias como a nossa, talvez fosse interessante… Mas devagar as convicções mais profundas de Riobaldo vão se impondo.

A liderança de Zé Bebelo cada dia mais fragilizada conduz aos caminhos mais confusos: “Nós estávamos em fundos fundos”. Mas a hora de Riobaldo não havia chegado: “Mas eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda”. Enquanto isso, a hora sertão se aproximava, o encontro direto com a dura realidade: “Sertão – se diz – o senhor querendo procurar não encontra. De repente, por si, quando a gente não espera o sertão vem. Mas, aonde há, era o sertão churro, o próprio mesmo”.

Riobaldo gostava de Zé Bebelo e sua personalidade sedutora o encantava. Começam a divergir sobre os caminhos e estratégias do sertão: “Zé Bebelo previa de vir, cá embaixo, no escuro do sertão, e, o que ele pensava, queria, e mandava; tal a guerra por confrontação; e para o sertão retroceder, feito pusesse o sertão para trás”.

Zé Bebelo continua com seus discursos cívicos, nacionais: “Ei, do Brasil, amigo (…) vim departir alçada e foro: outra lei – em cada esconso, nas toesas deste sertão (…) Zé Bebelo que esses projetos ouvisse, ligeiro era capaz de ficar cheio de influência: exclamar que era assim mesmo, para se transformar naquele sertão inteiro do interior, com benfeitorias para um bom governo, para esse ô-Brasil”. Às desconfianças pessoais e estratégicas, acresce um certo cansaço, desgaste com as falas discursivas de Zé Bebelo. O momento exigia outro comando, outra leitura do sertão. “Zé Bebelo, para mim, tinha gastado as vantagens”.

Quando “os prazos principiavam”, quando Riobaldo perde de vez a confiança na liderança e no discernimento de Zé Bebelo, começa por desqualificá-lo, em tom de blague e ironia, justo no seu desejo de organizar e pôr ordem no sertão: “os benefícios que os grados do governo podem desempenhar, remediando o sertão do desleixo”.

Já então revestido do poder de chefia, o Urutu-Branco ouve do Seo Ornelas, velho fazendeiro, palavras que expressam o sertão como território da antítese, dos contrários, começando por uma boa síntese: “O sertão é bom. Tudo aqui é perdido, tudo aqui é achado. O sertão é confusão em grande demasiado sossego…”.

No poder, Riobaldo viveu as grandes tentações: “Eu era o chefe. Vez minha de dar comando e estar por mais alto (…) Todos deviam de me obedecer completamente”. Sentiu o sertão sob seus pés. O coração de Riobaldo estava na dura disputa; a forte, envolvente, autojustificadora sedução do poder autocrático, tirânico, desprovido de sabedoria e compaixão. Assim há tantos exemplos, entre trágicos e caricatos, na ficção e na história, de cruéis ditadores, enlouquecidos pela arrogância e pela prepotência.

Mas o nosso bravo jagunço resistiu. Aprontou algumas, mais ameaçou do que fez, mas não se tornou mais uma besta na insensata nau dos poderosos que perdem a consciência dos seus próprios limites e fragilidades. Tudo por conta de uma vozinha frágil, bendita, nossa senhorazinha. Voz que emergia dos fundos do sertão da consciência: “Ah, um recanto tem, miúdos remansos, onde o demônio não consegue espaço de entrar, então em seus grandes palácios. No coração da gente, é o que estou figurando. Meu sertão, meu regozijo! Que isto era o que a vozinha dizia: ‘tento, cautela; toma tento Riobaldo: que o diabo fincou pé de governar tua decisão”. E a escolha, nessas horas, se impõe inescapável, peremptória: “Eu era o chefe. O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa…”.

O chefe Riobaldo, o poderoso Urutu-Branco, assume comandar as suas tropas, fazer a guerra, derrotar os Hermógenes, mas não abre mão de pastorear os seus sertões interiores. As opções, todavia, nunca são claras, estáveis, definitivas. O sertão tem variadas faces, interage com os humanos, está sempre em movimento, é sempre um vir a ser heraclitiano: “Mas o sertão está em movimento todo-tempo-salvo o que o senhor não vê (…) Sertão não é maligno nem caridoso (…) ele tira ou dá, agrada ou amarga, ao senhor, conforme o senhor mesmo”.

O sertão vai integrando seres, realidades, sonhos, recordações, fantasias, desejos. Assim, o sertão é também o lugar da sexualidade vivida, sublimada ou reprimida. A história, a psicanálise, sobretudo a experiência da vida nos ensinam que a sexualidade – prazerosa e delicada expressão humana -, associada ao poder, torna as duas tão mais perigosas quanto menos transparentes, verdadeiras e espontâneas. No Grande Sertão: Veredas, a sexualidade está à flor da terra e da pele. A relação com Diadorim é um volume à parte. A neta de Seo Ornelas perigou no caminho do comandante: “a boniteza dela esteve em minhas carnes”. Riobaldo disputava o lugar entre os grandes chefes: “Mas sou, de mim, o Urutu-Branco, Riobaldo que Tatarana já fui; o senhor terá ouvido? Aí o mais esse sertão tem de ver, quem mais se abre e mais acha”.

O sertão demoníaco do poder pede espaços: impor, dominar, violentar: “A mocinha essa de saia preta e blusinha branca, um lenço vermelho na cabeça (…) A mocinha me tentando, com seu parado de águas”. Riobaldo se superou. Afastou da sua chefia o poder de estuprar mocinhas e destruir famílias: “não perigou: no instante achei em minha idéia, adiada, uma razão maior – que é o sutil estatuto do homem valente. Aquela formosura, aquela delicadezazinha, então podem ser assim, em toda segurança, feito ela fosse, por um exemplo, filha minha (…) Mas eu não quis! Ah, há-de-o, quanto e qual não quis, digo ao senhor: e Deus mesmo baixa a cabeça que sim: ah, era um homem danado diverso, era, eu – aquele jagunço Riobaldo…”. O sertão masculino, guerreiro, é também feminino: “O sertão não chama ninguém às claras; mas, porém, se esconde e acena (…) Mas o sertão de repente se estremece debaixo da gente… E – mesmo – possível o que não foi. O senhor talvez não acha? Mas, e o que eu estava dizendo, mas mesmo pensando em Nhorinhá, por causa. Dói sempre na gente, alguma vez, todo amor achável, que algum dia se desprezou…”. E foi de uma bonita mulher da vida, no Verde-Alecrim, que o chefe Urutu-Branco recebeu a boa lição, quando não quis que ela acolhesse também um de seus cabras: “Tu achou a gente aqui, no afrutado. Tu veio e vai, fortunosamente. Tu não repartindo, tu tem?”. Diante de sábia interpelação, Riobaldo ponderou: “A doidivã era uma afiançada mulher. No sertão tem de tudo”.

O poder vai se acalmando, encontrando águas mais calmas, sempre mediando os desafios e apelos de fora com a boa prática socrática da reflexão e do autoconhecimento: “O sertão vige é dentro da gente (…) O senhor faça o que queira e o que não queira – o senhor toda-a-vida não pode tirar os pés. O senhor não creia na quietação do ar. Porque o sertão se sabe só por alto. Mas, ou ele ajuda, com enorme poder, ou é traiçoeiro, muito desastroso. O senhor…”. Há o sertão do destino, do imprevisível, do imponderável. Mas há também o sertão da nossa liberdade, escolhas, das profundezas de cada pessoa, a inquietação do ser que incorpora, como vimos, a tradição existencialista de Kierkegaard a Heidegger.

O sertão sendo assim a vida mesma é o universo e o além, os mundos daqui e dacolá, é esse Brasil imenso com as suas travas, a sua formação inacabada, extensões enormes, diferenças, pobrezas andantes, esquecidas e abandonadas, forças subterrâneas, horizontes sem fim; é cada lugar na sua plural singularidade, é o trem, uai, que põe mais perto do velho Riobaldo o médico de Sete Lagoas e que leva o sertão para a cidade. Sertão é o tempo que vai, e se perde e se recupera, fragmentado, confuso, enriquecido nas trilhas entrecruzadas das reminiscências e do inconsciente; é a história de cada um inserida na aventura comunitária, nacional e humana dos momentos e épocas que se sucedem. É também o futuro que se anuncia: “Sertão velho de idades. Porque – serra pede serra – e desses, altas, é o que o senhor vê bem: como é que o sertão vem e volta. Não adianta se dar costas. Ele beira aqui, e vai beirar outros lugares, tão distantes. Rumor dele se escuta. Sertão sendo de sol e os pássaros: urubu, gavião – que sempre voam as imensidões por sobre… Travessia perigosa, mas é da vida. Sertão que se alteia e se abaixa. Mas que as curvas dos campos estendem sempre para mais longe. Até envelhecer vento. E os brabos bichos do fundo dele (…) Como o sertão é grande (…) o sertão se abalava?”.

Os tempos eram de guerra, vida e morte, muito juntas, atreladas. Tempo de espera, horas, dias longos; vai se armando o cenário para o grande confronto no Paredão. A morte se prenuncia, espreita na linguagem simbólica dos pássaros que passam – urubu, gavião. Riobaldo volta a eles e incorpora a gaivota, implacável caçadora de peixes e bichos aquáticos, aves migrantes que vêm de longe, do beira-mar, fazer seus ninhos nas nossas minas serranas, montanhosas: “Sei o grande sertão? Sertão: quem sabe dele é urubu, gavião, gaivota, esses pássaros: eles sempre no alto, apalpando ares com pendurado pé, com o olhar remedindo a alegria e as misérias todas (…) O sertão é uma espera enorme”. Ser e tempo. O ser no tempo.

No meio da batalha, o sertão se torna um ente poderoso, divinizado. O senhor da guerra? Deus mesmo na simbologia bíblica do profeta Jonas? “Porque aprender a vida é que é o viver, mesmo. O sertão me produz, depois me enguliu, depois me cuspiu do quente do quente da boca…” Deus vomita os tépidos.

O sertão não é o demo, o mal na cosmovisão rosiana não tem a última palavra, ainda que seja na brutalidade da guerra: “eu ia denunciar o nome, dar a cita: … Satanás! Sujo! e dele disse somentes – S… sertão… sertão”. Urutu-Branco pergunta ao cego Borromeu: “Você é o sertão?”.

Finda a guerra, derrotados os Hermógenes, fechado o ato final da tragédia, morto Diadorim, recordando aquele momento, Riobaldo pergunta ao seu discreto interlocutor: “O senhor vê aonde é o sertão? Beira dele, meio dele?…”.

Depois da guerra, Riobaldo ultimou o jagunço que era: “Disse adeus para todos, simplesmente (…) Desapoderei”. Deu então para especular idéias. E entre tantas nos deixou essa inquieta questão sertaneja e com ela algumas picadas que buscam o seu variado e múltiplo sentido: territórios, vivências, sentimentos, lembranças, sonhos, possibilidades. Vida e morte. Renascimento. Palavra mágica, expandida, bem nossa. Do Brasil para o mundo, outros mundos. O sertão carrega amores. Espalha como o vento energias boas. Boas-novas: “Do fundo do sertão. O sertão: o senhor sabe”.

LEIA
Caderneta de viagens
Originalmente publicada em No Longe dos Gerais, obra do mineiro Nelson Cruz que refaz a histórica jornada de Guimarães Rosa, reproduz as vivências do autor pelos sertões como se fossem anotações numa caderneta de viagens.

No Longe dos Gerais, de Nelson Cruz (texto e ilustrações). São Paulo: Cosac Naify, 2004 (www.cosacnaify.com.br)


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